sexta-feira, abril 22, 2005

Armando de Carvalho Homem(1923-1991):

nota biográfica

Armando Luís de Carvalho HOMEM


Natural de Viseu – onde nasceu a 29 de Setembro de 1923 (freguesia Ocidental), sendo o mais novo de 6 irmãos –, no Liceu local fez o Curso Secundário (1933 ss.) e em 1940 chegou a Coimbra para cursar Ciências Físico-Químicas (terá Mestres como Anselmo Ferraz de Carvalho, António Jorge Andrade Gouveia, Fernando Pinto Coelho, Francisco da Costa Lobo, Gumersindo da Costa Lobo, Manuel Marques Esparteiro, Mário Silva e João Almeida Santos, entre outros).
Haveria na família antecedentes musicais ? E, se sim, ao nível dos antepassados ? É duvidoso: uma breve sondagem no Arquivo da Universidade dá-nos indivíduos de apelido «Carvalho Homem» cursando Leis (e, ocasionalmente, Cânones) e mais tarde Direito a partir de 1796, e isto deixando de lado outros, coevos ou mais remotos, naturais da mesma região (Viseu, Sátão, Ladário, Abrunhosa, Rio de Moinhos, Ferreira de Aves…) mas ostentando os apelidos pela ordem inversa («Homem de Carvalho») ou então apenas um deles («Homem»). Estudos de Geografia eleitoral dão-nos um António de C. H. a intervir politicamente na povoação de Abrunhosa do Ladário (freguesia de S. Miguel de Vila Boa, concelho do Sátão) em tempos de primeiro liberalismo (década de 1820), e as não muitas referências a esta e a outras individualidades como que configuram uma pequena aristocracia de notáveis locais, terratenentes «quantum satis», mas em quase todas as gerações enviando algum(ns) dos seus para Coimbra, a cursar predominantemente as áreas jurídicas em Oitocentos, com uma viragem para a Medicina e para a Philosophia Natural (e depois para as Ciências) na primeira metade de Novecentos. Homens de talentos musicais ? Bem gostaria de o saber. As memórias familiares registam essencialmente episódios de tipo romanesco / picaresco, bem como um humor «sui generis» traduzido no hábito de colocar alcunhas a tudo quanto era gente da terra, incluindo os mais novos da família: como amostra, reproduzo algumas que ainda ouvi – «o Tomé do Ó», «o Mata-Deus», «a Nhê-Nhê», «o Luís Mijão», «o Ginja», «a Campainha da Misericórdia», «o Verga», «o Padre Pinguinhas», «o Flor da Praça», «o Manel», «o Dr. Bácoro», «o Dom Joaquim», «o Jimbrinhas», «a Maria Marreca», «o Ti Farmácio», «o Tiros», «o Pote das Migas»…; para além disto, conservadores q.b., não careciam todavia de uma certa costela anti-clerical, que os levava a declamar, no silêncio das noites de Primavera e de Estio, sátiras dirigidas ao capelão (e, ao tempo, também mestre-Escola) – um clérigo de arqui-conhecidos ‘pecados da carne’… – de Nossa Senhora da Esperança (jóia local de arte barroca ainda aguardando o historiador que merece); reproduzo uma quadra retida pela minha rememoração:

Ora viva o Sôr Abade !
Quando põe seu carapuço
Lá dentro da sua sala
‘Té parece um bácoro ruço !...

Ao nível de Pai médico e de um tio jurista – acrescidos de mais um tio que cursou Philosophia sem concluir – é que ACH poderá ter já tido directos antecedentes, prolongados em dois dos irmãos mais velhos: Jaime de C. H. (1904-1976), que cursou Medicina nas décadas de 20 e de 30, foi executante de guitarra e de concertina e membro de agrupamentos do tipo das futuras Estudantina e Orchestra Pitagórica; estritamente guitarrista foi o irmão etariamente mais próximo, José Cardoso de C. H. (1916-1975), professor da Instrução Primária diplomado pela então Escola do Magistério Primário de Viseu e que em Coimbra cursou Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras; este, que ainda ouvi uma vez tocar nos anos 60, é que chegou a ser um executante regular, ousando mesmo peças de Artur Paredes (nomeadamente as «Variações em lá menor n.º 1»). Daqui terão vindo para ACH as primeiras letras instrumentais. Daqui e não só. Nos meses estivais, à casa de Abrunhosa – onde meu Avô José de C. H. (1877-1945) passou definitivamente a residir em finais da década de 20, exercendo como médico municipal e inspector sanitário de feiras e mercados rurais – muita gente afluía, incluindo um Director de Finanças da vizinha vila do Sátão (sede do concelho do mesmo nome e ostentando até 1951 a designação de Vila da Igreja), também executante. E não raro o silêncio de calmas noites era quebrado por vozes e instrumentos.
É com este background familiar e convivial – pautado portanto por toda uma cópia de varões façanhudos, ornados, por regra, de não menos façanhudos bigodes – que ACH chega a Coimbra em 1940 e vai habitar a «República Baco» (sediada, ao tempo, na Rua do Forno, artéria há muito desaparecida, sita em espaço onde está hoje o edifício de Física), ingressando um ano mais tarde na Tuna Académica como executante de viola; será, em 1943/44, Vice-Presidente de uma Direcção liderada por Aurélio Afonso dos Reis.
E a guitarra ? As informações de que disponho são algo vagas no que toca a cronologia da sua actividade neste campo. Os dados mais concretos e afirmativos provêm do testemunho do Dr. Augusto Camacho – que com o Dr. Ângelo Vieira de Araújo constituiu sem dúvida a dupla dos mais amigos-do-seu-amigo que teve no meio musical, e que em cada encontro me rememora momentos que com ele viveu, tudo com apreciável precisão de datas. [Fora do meio musical os seus grandes amigos foram Abílio Alves Bonito Perfeito, estudante de Filologia Clássica, mais tarde, e por longos anos, professor do Liceu da Guarda; e António Matias Filipe, seu Colega em Físico-Químicas]. E é justamente Augusto Camacho quem me fala de ter conhecido, sendo ainda aluno do Liceu D. João III mas frequentando já o meio musical, um guitarrista ligeiramente mais velho (Camacho nasceu em 1924), alto (1,83 m), extremamente magro e ostentando um «bigodinho» (obviamente contrastante em espessura – ao tempo – com os dos seus façanhudos avoengos); tocava relativamente pouco, mas mostrava-se aplicado; e uns 2 anos mais tarde estava um guitarrista feito. Este testemunho parece assim fazer contrastar uma fase inicial, em que ACH trabalha como «2.º guitarra» de António Cabral – grande solista que escassa nomeada acabou por deixar – e de João Bagão (1921-1993; com este último tocavam então os violas Prado e Castro [irmãos gémeos]), com a fase em que lidera grupos, nomeadamente o que constituiu com António Sobral de Carvalho. No tocante a violas, e para além dos já mencionados, recebeu a colaboração de Eduardo Tavares de Melo, Aurélio Reis e Mário Henriques de Castro (1918-?). E acompanhou cantores como Manuel Julião, Augusto Camacho, Napoleão Amorim, Anarolino Fernandes, Alcides Santos, «Nani» e Alexandre Herculano. Acrescentarei que houve 3 fados que sempre gostou especialmente de acompanhar: «Vento, não batas à porta», «Inquietação» ( = Quanto mais foges de mim…) e «Fado do 5.º ano médico, 1938» ( = Ó meu amor pobrezinho / Ó minha esguia andorinha …).

O termo da Guerra – justamente no ano em que ACH conclui a licenciatura – algo terá mexido com o meio musical coimbrão: é não muito depois que vão ter início, no Emissor Regional Centro (ERC) da Emissora Nacional (EN), os programas «Serenata de Coimbra», com transmissão directa (ao tempo) e periodicidade mensal. Não existindo ainda um estúdio capaz, as actuações/transmissões processavam-se ao ar livre, onde houvesse um mínimo de condições acústicas e de luminosidade (ou, pelo menos, de iluminabilidade): Sé Velha, sem dúvida (onde a tradição do Canto se localizava essencialmente na Porta Especiosa), mas também Penedo da Meditação, bancadas do velho Campo de Santa Cruz (onde uma vez uma inoportuna falha das precárias luzes apanhou ACH a meio das suas «Variações em lá menor»; todos os executantes se aguentaram e o público ouvinte de nada se apercebeu…) e outros locais. Os grupos de ACH e de José Maria Amaral (1919 -2001) foram pioneiros na participação em tal iniciativa e a primeira Serenata teve lugar na Sé Velha, ca. 1946 (testemunho de Augusto Camacho). Viria a tornar-se célebre a locução do futuro médico António Guimarães Amora, com expressões como:

- Senhoras e Senhores Ouvintes, algures de Coimbra vamos transmitir mais uma Serenata, com a colaboração de um grupo de estudantes. A abrir, as clássicas e inconfundíveis guitarras coimbrãs.

Estas «Serenatas de Coimbra» terão por outro lado contribuído para espevitar a veia criadora dos guitarristas: porque se muitos tinham já Artur Paredes (1899-1980) nos seus dedos, executar peças do Mestre em público já tinha mais que se lhe dissesse… É assim que, nos restantes anos de Coimbra (até 1948), ACH elabora as suas «Variações em ré menor» e «em lá menor», a «Valsa em lá menor n.º 1» e a «Miscelânea em Lá» (arranjo, sobre temas de Artur Paredes e João Bagão); foi este (ou pelo menos parte dele) o repertório que executou em tais actuações radiofónicas, acrescido de «Fado Hilário» (instrumental). Em 1946/47, tanto ACH como José Amaral ficaram sem os respectivos «2.os guitarras», saídos de Coimbra; e resolveram unir esforços para garantir a continuidade das «Serenatas». Também na digressão a Espanha do Orfeon Académico (Primavera de 1947) se conjugaram: o naipe instrumental foi constituído por J. Amaral, ACH, Sobral de Carvalho e Tavares de Melo, solando alternadamente nos saraus os dois primeiros mencionados. Em 1947/48 é a vez de José Amaral deixar Coimbra, e com ACH toca nesse ano o terceiranista de Farmácia António Pinho de Brojo (1927-1999), que anteriormente colaborara com João Bagão e José Amaral .

Mas a vida prática fazia entretanto valer os seus direitos: licenciado na época de Outubro de 1945, ACH já não pôde ingressar de imediato no Estágio Pedagógico. 1945/46 será assim ano de ensino num Colégio particular, na Régua. 1946/47 e 1947/48 serão tempos de regresso a Coimbra, estagiário no Liceu Normal D. João III, aluno de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras (onde teve como Mestres, entre outros, Joaquim de Carvalho, Sílvio de Lima e o belga Émile Planchard, então nos primeiros tempos da sua longa docência em Portugal) e, para compor orçamento, professor e explicador do Ensino Particular.

Concluído o Exame de Estado, é colocado, como professor agregado, no Liceu Passos Manuel (Lisboa). Consumado meses depois o concurso para professor auxiliar, é transferido para o Liceu Alexandre Herculano (Porto) e aí permanecerá até ao termo de 1948/49.
Em 1949/50 inicia funções no Liceu Nacional de Viseu (onde estudara nos anos 30) e aí ficará até 1956. No Natal de 1949 casa com Maria Alcina Marques Pereira Gomes [de Carvalho Homem], também beirã (natural de Oliveira de Frades) e farmacêutica diplomada pela então Escola Superior de Farmácia/UC no mesmo ano de 1945; do casamento nascerão dois filhos.

Os tempos de Viseu permitirão alguma continuidade das lides guitarrísticas: pelos anos iniciais da nova década cria-se a Associação dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Viseu (AAALNV), de que é um dos fundadores e membro dos primeiros Corpos Gerentes; e nos seus anos de arranque a novel colectividade realiza regularmente saraus académicos; ACH está logicamente na linha da frente para os indispensáveis «Fados e Guitarradas de Coimbra»; formou grupo com o seu antigo Mestre de Matemática (e ao tempo Colega) Augusto Serrão (g.) e com o filho deste, José Serrão (v.). Não tenho lembrança directa de cantores, apenas uma memória ténue – para além de individualidades residentes na Cidade – dos nomes de Fernando Rolim e Napoleão Amorim como participantes em saraus da AAALNV. Note-se ainda que em Viseu foram alunos de ACH Octávio Sérgio, José Mesquita e José M. Barros Ferreira, entre outros futuros nomes do firmamento coimbrão.
Já os anos de 1956/57 e de -57/58 serão de total paragem musical. Colocado em Ponta Delgada no primeiro daqueles anos (e ascendendo então a professor efectivo dos Liceus, 7.º Grupo), na viagem de barco para os Açores (no velho paquete Lima, transformação de um navio alemão ancorado no Tejo em 1916 e então requisitado pelo governo português – causa próxima da entrada na I Guerra Mundial – e em mãos portuguesas ficado no fim do conflito, a título de «despojos de guerra»; devidamente transformado, fez a carreira dos Açores até à década de 60) um acidente destruiu a guitarra, tornando musicalmente infrutífero o reencontro açoreano com Eduardo Tavares de Melo, licenciado em Direito e a residir na sua Terra-Natal. Braga, onde ensinou no ano subsequente, não foi ainda o lugar nem o momento de remediar o desastre.

O Porto, para onde se transferiu em 1958 (novamente para o Liceu Alexandre Herculano, onde ensinou até à reforma por tempo de serviço [Setembro de 1984, em vésperas de completar 61 anos]), seria a urbe do renascer dos dedos: em princípios de 1959 adquiriu uma nova guitarra na CASA DUARTE (à Rua Mouzinho da Silveira); o instrumento acabou por revelar-se dos melhores que daqueles construtores (há muito desactivados) algum dia saíram, isto segundo testemunhos múltiplos desde que, a partir de 1991, passei a tê-lo na minha posse. E foi o paulatino retomar da execução, na solidão do seu escritório pessoal. Contactos exteriores foram raros. E será um bom tema de indagação o procurar saber porque é que nunca houve movimento algum de aproximação por parte dos instrumentistas portuenses (ou vice-versa). Porque é que duas Academias sitas em urbes separadas por 120 km têm vivido, nesta matéria, tendencialmente de costas voltadas, a ponto de individualidades coimbrãs que passaram também pelo Porto propenderem a omitir tal coisa das suas biografias ? O 2.º volume da obra coordenada por José Niza está repleto de exemplos… Porquê em Coimbra, e ainda hoje, o sobreviver de tendências maximalistas que sobranceiramente ignoram o Canto e a Guitarra academicamente praticados alhures ? E porque é que os académicos portuenses ‘censuram’ as referências a Coimbra, falando de «Fado Académico» e não interpretando temas com vocabulário geo-topográfico (Coimbra, Santa Clara, Igreja de Santa Cruz, Sé Velha, Mondego, Penedo…) ou então mudando a letra ? Porque é que nas várias ocasiões em que debaixo do mesmo tecto tive ex-UC’s e ex-UP’s, uma qualquer ‘barreira’ invisível teimava em manter-se, ainda que os progressos do conhecimento recíproco tendessem a atenuá-la ? E porque é que ACH, que só nos anos 70 finais conheceu António Sutil Roque, António Sousa Pereira ou José Horácio Miranda, por exemplo, com eles lidou de imediato como se longo fora o conhecimento, ao mesmo tempo que cordialíssimos eram sempre os reencontros com José Amaral, João Bagão, António Brojo, Aurélio Reis, Alcides Santos, os irmãos Prado e Castro ou (qual primus inter pares) Octávio Sérgio, e isto por muito que fosse o tempo decorrido desde o último encontro ? Questões para reflectir e, talvez um dia, algo escrever…
Só nos Verões de 1963 a 1965, de férias em Espinho, voltou a ter algum contacto mínimo com outros instrumentistas e cantores, no âmbito das confraternizações que alguns espinhenses ilustres (v.g. o já citado Napoleão Amorim ou o advogado Dr. Amadeu Morais [† 1987], seu colega de República) organizavam no termo do mês de Agosto; nessas noites espinhenses percorriam-se alguns lugares centrais da hoje Cidade, finalizando-se com uma serenata às turistas estrangeiras sediadas no parque de campismo e rematando com a execução da «Balada de Coimbra» no pórtico da Câmara Municipal.

Foi pelo Verão de 1964 que comecei a acompanhá-lo, possuindo já um domínio mínimo de posições numa rudimentar viola então adquirida. Rudimentar era também, obviamente, o meu acompanhamento; e assim se manteria até ca. 1969, quando, já com 1 ano de Coimbra, pertencendo ao tempo ao Orfeão Universitário do Porto (OUP) e em vias de adquirir tudo quanto era disco de Canto e de Guitarra (45 ou 33 RPM) e de possuir uma boa viola construída pelo portuense DOMINGOS CERQUEIRA (com oficina à Rua Costa Cabral, nas imediações do antigo Cinema Júlio Dinis), me fui dando conta de que acompanhar o solo da Guitarra era bem mais exigente do que até então me parecera; e, por outro lado, havia especificidades daquele solista concreto que tornavam inadequadas as ‘receitas’ que, no meu processo de aprendizagem discográfica, eu ia obtendo. Mas isso foi problema que só com o passar dos anos eu soube resolver. Descontados entretanto, ainda nos anos 60, alguns serões no escritório de Engenharia de Napoleão Amorim (à Rua da Fábrica; aí conheci o guitarrista Manuel Antunes Guimarães e o cantor Paulo Sampaio), durante muito tempo limitámo-nos a tocar em casa, não raro horas seguidas e com várias voltas ao repertório. E não mais do que isso: raros continuaram a ser os contactos musicais exteriores de ACH (apenas num dado momento, já na década subsequente, Mário Freitas – com quem eu tocava no OUP desde 1972 – começou a aparecer lá por casa). Até porque, estudantilmente, a conjuntura post-1969 (e, concretamente no Porto, post-1971) pouco ou nada motivava. E profissionalmente ACH tornara-se orientador de Estágios (1969-1976) e mais tarde (1975-1978) Vice-Presidente do Conselho Directivo da sua Escola; e ainda em 1980-1982 integraria uma Comissão para a Revisão dos Programas de Física, nomeada pelo ministro Vítor Crespo. A timidez e a natural discrição em tudo quanto à sua arte dizia respeito faziam o resto…


Musicalmente, algo entretanto iria mudar, mas apenas a partir de 1977. A esse tempo, a sensação de que algo estava a querer renascer levava, aqui e além, ao reflorescimento de pequenas tertúlias: vizinho de ACH na Rua do Amparo, o advogado e guitarrista Dr. Eduardo Teixeira Portela conseguiu durante alguns anos (1977 ss.) reunir em sua casa, nas tardes de sábado, individualidades tais como:

§ o grande executante portuense Alexandre Brandão (1909-2004; já evocado neste blog, post de 2005/03/26);

§ o advogado (também guitarrista) Dr. Amândio Marques, natural de Mangualde, nome muito pouco lembrado, mas que teve a sua projecção na década de 20, gravando inclusive temas originais; no Porto, para além da sua actividade profissional, foi longos anos Presidente da Casa da Beira Alta; ao tempo já consideravelmente idoso, estava naturalmente bastante esquecido da sua arte; mas ainda conseguiu repor em dedos uma das peças que gravara;

§ o professor liceal (também guitarrista) Dr. Armando Morais (1915-1996), ao tempo em comissão de serviço na Faculdade de Letras, devendo-se-lhe aí, em boa parte, o arranque do grupo de Filologia Germânica (1972);

§ ACH;

§ e outros ainda, menos assíduos; eu próprio várias vezes lá passei.

ACH recebeu com entusiasmo a notícia da realização do 1.º Seminário sobre o Fado de Coimbra, em Maio de 1978. Entusiasticamente lá compareceu – não o pude acompanhar, já que tinha sido pai na antevéspera… – e participou na Serenata, integrado num grupo portuense (Manuel Cunha Gomes / Viriato Santos [gg.], Aureliano Veloso / Prado e Castro [vv.]), acompanhando Alcides Santos e Napoleão Amorim («Vento, não batas à porta» e «Fado da Sugestão», respectivamente).
Foi na sequência deste Seminário que compôs as suas «Variações em mi menor», na base da alternância tónica/dominante (começo e fim em Sol M, desenvolvimento central em mi m, segundo o ‘paradigma’ da peça de Artur Paredes no mesmo tom); surgirá também a «Valsa em lá menor n.º 2» [indicativo]; a veia criadora, inactiva desde os anos 40, ressurgia; e o ulterior trabalho com José Horácio Miranda daria ainda lugar a diversas introduções de fados.
Outra consequência do Seminário foi o dar regularidade a algo já pontualmente iniciado: trabalhar a três com Mário Freitas, meu antigo Colega no OUP e ao tempo já médico, em fase de «Serviço à Periferia». Foi labor nada fácil e de avanço lento, mas o certo é que paulatinamente fomos erguendo interpretações das peças de ACH com «2.as guitarras» diferentes do trivial e marcando bem a qualidade e a individualidade de Mário Freitas como executante / acompanhante.
Postas algumas peças em dedos, comparecemos naturalmente aos 2 Seminários subsequentes, executando o «ré menor» na Serenata do 2.º (1979) e a «Valsa em lá menor n.º 1» no ano seguinte. Em 1983 (5.º Seminário) executámos todo o repertório instrumental no convívio que marcou a tarde do último dia, no Edifício Chiado; Mário Freitas apresentou «Noite de Estrelas» [valsa em lá m], do brasileiro Dilermando Barbosa, em arranjo para guitarra do seu Mestre Alexandre Brandão (1909-2004).
Pensou-se naturalmente em gravar: o mercado re-apresentava-se de feição e eu próprio conheceria em 1981 a experiência de participação no LP Guitarra Portuguesa: Raízes de Coimbra, de Octávio Sérgio. O repertório instrumental que tínhamos dava certinho para um EP 45 RPM; só que esta espécie discográfica estava em vias de extinção, num mercado dividido entre os LP’s e os singles. Para um LP havia que pensar em conteúdo vocal e instrumental: pensámos em José Horácio Miranda – que ocasionalmente já acompanháramos – e que, residindo em Penafiel e em vias de ser colocado na Inspecção de Ensino, se deslocava frequentemente ao Porto; acedeu, e de ca. 1982 a ca. 1985 trabalhámos intensamente. Às vezes aparecia também Paulo Alão, que residia em Paços de Ferreira; era para mim um prazer tocar a duo com este grande senhor da viola, possuidor além do mais de um estilo que tornava quase intuitivos os efeitos conjugados das duas violas; mais ocasionalmente o cantor António Sousa Pereira, advogado no Porto; e ainda amigos diversos de Miranda ou Alão, que pediam para aparecer; ou vizinhos de prédio, que longe de se molestarem com o «barulho» – podíamos tocar e cantar à vontade até por volta da 1. h. –, antes ficavam a ouvir na varanda ou, se o tempo o não permitia, batiam ocasionalmente à porta, pedindo para assistir a um bocadinho. E a porta, obviamente, estava sempre aberta…
Trabalhámos intensamente, como disse. José H. Miranda tinha no repertório fados apenas gravados por António Menano (v.g. «Fado Saudades», «Morena», «Fado da Mentira» [versão original]…); e tinha também uma especial atracção por algum Edmundo Bettencourt (v.g. «Fado dos Olhos Claro») e por múltiplos temas de (ou celebrizados por) Luiz Goes em diversas épocas: «Dobadoira» (tema executado em Ré Maior, com interessante trabalho de Mário Freitas), «Fado da Promessa», «Poema para um Menino» (arranjo meu, protagonismo de Mário Freitas), «Canção para Quase Todos», «Viagem de Acaso», «Balada dos meus Amores» e sobretudo «Última Canção de Amor» (arranjo meu, com interessantes trabalhos inicial e final de ACH e de MF inter-estrofes; juntamente com «Dobadoira», é a peça que mais me dói ter ficado inédita neste arranjo…). Nunca nos abrindo muito a saídas, ainda actuámos no Liceu Alexandre Herculano aquando de um almoço de Natal (Dez.84) e em Santo Tirso, por ocasião das 2.as Jornadas sobre o Município na Península Ibérica (Fev.85).


Depois… foi a não-concretização de qualquer projecto discográfico. As minhas andanças pré-doutorais (até 1985), o processar da carreira de Mário Freitas (hoje um distinto cirurgião e internista), os contextos pessoais e familiares…
A rematar, os problemas de saúde que afectariam ACH a partir de 1988, e que ditariam o seu desaparecimento em 31 de Outubro de 1991, cerca de um mês depois de completar 68 anos.
Ficaram as precárias gravações de alguns ensaios. Postas em mãos competentes, conheceram já transposições para CD (por Manuel Mora e Octávio Sérgio) e para partitura (por Octávio Sérgio e por José dos Santos Paulo, neste caso com intenção didáctica).
Ficou também, qual espelho do gosto suscitado pelos temas, a sua execução pública por diversos guitarristas (o «ré menor» por uma série de executantes [António Brojo, que gravou a peça nos anos 50 e a regravou nos 90, no seu derradeiro trabalho em CD; Octávio Sérgio; António da Cunha Pereira, num LP dos anos 80, da responsabilidade de um grupo de antigos elementos do OUP; Luís Plácido; Alexandre Bateiras…]; o «lá menor» por Octávio Sérgio e Teotónio Xavier; e o «mi menor» e a «Valsa em lá menor n.º 1» por Octávio Sérgio, que tem frequentemente tocado o primeiro destes dois temas em saraus dos AOUC).
Os acasos de um destino irão porventura conferir uma notoriedade musical póstuma a quem, dos anos 50 aos 80, essencialmente procurou ser um competente profissional do ensino da Física e da Química a jovens estudantes liceais ?

Lisboa, 17 de Abril de 2005



Post-Scriptum, a propósito de «Serenatas» e de «Fados e Guitarradas»: Um investigador como António M. Nunes tem salientado e bem o que falta fazer no tocante a estudos sobre o vocabulário significante no âmbito do Canto e da Guitarra de Coimbra. O facto é que serenata se reporta a actividades musicais de ar livre, ainda que essa tenha sido a designação dada ao programa mensal do ERC surgido nos anos 40. Fados e guitarradas, em contrapartida, é sobretudo significante de actuações em palco. As duas coisas têm as suas diferenças também na ordem do repertório e até na postura dos executantes:


§ porque se uma actuação de ar livre pressupõe essencialmente o canto, capas traçadas e – em tempo de acompanhamentos de grande simplicidade – instrumentistas tocando de pé com apoio de guitarras e violas sobre a coxa (em tal postura foi ACH caricaturado por TOSSAN no Livro dos Quartanistas de Ciências, 1944),

§ já uma actuação de palco compreende o canto e os solos instrumentais, eventualmente em momentos diferentes do sarau e até com posturas diferentes dos instrumentistas; justamente nos anos 40 (influência dos programas radiofónicos «Guitarradas de Coimbra» que Artur Paredes [com Carlos Paredes e Arménio Silva] estava a levar a efeito na EN/Lisboa ?), a última parte dos saraus dos organismos musicais de Coimbra abria com as «Guitarradas»: 3 ou 4 números, executados com os instrumentistas sentados mas de capa pelos ombros; a fechar, os «Fados de Coimbra», com todos os participantes de capa traçada, independentemente da postura dos instrumentistas; nos anos 80 os concertos do «Quarteto de Guitarras de Coimbra» (António Brojo / António Portugal / Aurélio Reis / Luís Filipe) com cantores como José Mesquita, Alfredo Glória Correia, António Bernardino, Luís Marinho e mais pontualmente Fernando Rolim, Fernando Machado Soares, Luiz Goes e Napoleão Amorim chegaram a ‘ressuscitar’ esta prática, com os números instrumentais constituindo uma secção bem delimitada das actuações.



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