quarta-feira, abril 20, 2005


Nuno Guimarães e a Guitarra de Coimbra nos anos 60: impressões perante uma re-audição de cinco 45 RPM *


Armando Luís de Carvalho HOMEM



Porto, início dos anos 70. Para quem de há muito se encontra na «Galáxia Sonora» coimbrã os tempos não vão propriamente fáceis. Houve Maio, houve Abril/69; e em breve haverá Abril/71 (contestação à que será a última [até 1979] «Queima das Fitas» no Porto). A Tradição morreu, por retrógrada e reaccionária ? O «Fado de Coimbra» acabou ? Há quem ache que sim, e não faltarão algumas ‘almas bem intencionadas’ a aconselhar-me uma ‘transferência’ para o «Fado de Lisboa» [Tais ‘almas’, sem excepção, foram até há bem pouco convictos (?) quadros do cavaquismo. De um modo geral, tratava-se, ao tempo, de licenciados (ou quase) em Economia. O ‘substracto’ intelectual respectivo pode avaliar-se por este episódio: nos alvores dos anos 70 surgiram na Comunicação Social escrita (particularmente na Vida Mundial) os primeiros alertas face à iminente demolição em Lisboa de edifícios em tempos galardoados com o Prémio Valmor. As ‘almas’ em causa reagiam como segue: «Se o edifício deixou de ser rentável há que substituí-lo !». Tocante, não é ? Desta massa se fazem os Cadilhes e os cadilhos (e, também, os trocadilhos) desta Terra]...
Não julgo, no entanto, essa a solução [Que fique claro que o que atrás deixo escrito apenas tem um objectivo: o de explicitar a incomodidade então sentida por quem, não sendo do Regime, pretendia viver a normalidade possível; não se vendo, além do mais, reflectido num Movimento Associativo praticamente ‘partilhado’ entre as propostas do PCP e as da extrema-esquerda do tempo (sem esquecer alguns núcleos de ultra-direita, muito localizados, é certo, mas não raro extremamente agressivos; e se não veja-se o ocorrido aquando dos dois julgamentos do pároco de Macieira da Lixa, P.e Mário Pais de Oliveira [1970 e 1973]), facilmente se arriscava a ‘apanhar de todos os lados’; inclusivamente no plano musical: os ‘duros’ da Tradição achavam que já não era bem Fado (sempre seria melhor o «Passarinho da Ribeira»...); os ‘duros’ da Contestação achavam insuficiente...]. Com alguns (poucos) companheiros de andanças vou continuando a trilhar o meu/nosso caminho. Caminho que passa pela audição atenta da discografia dos anos 60. Numa Academia portuense onde quase por regra a prática do «Fado de Coimbra» consiste em recepção/reprodução de temas (predominantemente dos anos 30/ 50), mais do que criação de um subuniverso próprio, o caminho poderia, e no imediato, passar ainda pela reprodução, mas do que de mais recente tivesse sido feito pelos grandes nomes de Coimbra. Foi pois esse o caminho que me propus, na (excelente) companhia de nomes como os dos cantores Paulo Sampaio, Hernâni Pinto, Júlio Domingues (que tão cedo nos deixaria [† 1974]), Luís Sobral Torres e Joaquim Barbosa Ferreira e os dos guitarras Manuel Antunes Guimarães e Mário Freitas. Cenário: o Orfeão Universitário do Porto [OUP] (e mais efemeramente o Coral de Letras). É desses anos que datam os meus contactos com a então recente discografia de Nuno Guimarães. Muito aprendo com os sons de Rui Pato, Jorge Rino, Rui Borralho e Jorge Ferraz. Alguns dos temas serão por nós ‘tirados’ (de ouvido...) e objecto de execução reprodução (com a fidelidade possível): Paulo Sampaio cantará n vezes o «Fado Corrido» (versão Rui Pato) e «Adeus Minho Encantador» e Luís Sobral Torres encarregar-se-á de «Anjo Negro», «A Rosa e a Noite» e «Fado da Noite» (também interpretado por Júlio Domingues). Como se vê, a presença de NG era forte. (E mal sonhávamos nós que ele residia no Porto, ensinando no então Liceu Normal D. Manuel II; e menos ainda que iria morrer em Ag.º/73, quando nos encontrávamos na Venezuela, em digressão do OUP). Porquê essa força ? Talvez porque havia ali a base vigorosa da raiz coimbrã mais autêntica, associada às novidades de uma geração por vezes tão ignorada (e não raro mal-amada). Procurando concretizar:

I. O EP Fado Corrido de Coimbra: António Bernardino é particularmente ‘interpelante’ pela própria reinterpretação do tema que lhe serve de título. ‘Fugindo’ à tradicional alternância de 1.ª e 2.º de lá menor, o tema assenta numa sequência harmónica com ecos não só de alguns trabalhos de Carlos Paredes, como de um universo rocky que terá a sua expressão mais acabada no tema «The House of the Rising Sun» (versão de The Animals, 1964). Para além disto, uma «introdução» dedilhando coordenadamente o polegar e o indicador (o que, aliás, também acontece na «introdução» do «Fado das Águias», em si menor). Mas não ficam por aqui as capacidades interpelatórias deste disco. Com efeito, «Sé Velha» e «Mar Largo» (velhos temas de Carlos de Figueiredo e de Paulo de Sá, respectivamente) ostentam «introduções» com um percurso da escala que vai do bordão de lá a agudíssimas notas na corda do mesmo tom (uma oitava acima, obviamente), numa abrangência não muito vulgar, valha a verdade, até porque tecnicamente ‘exigente’. Para além do que (e no caso concreto da «introdução» de «Sé Velha»), uma sequência si menor / ré menor / Lá Maior / dó sustenido menor não se vê propriamente ‘todos os dias’...

II. Coimbra Antiga: Fados por José Manuel dos Santos situa-se um pouco na linha do anterior. Particularmente notável se apresenta o arranjo do «Fado das Penumbras» (tema de Paradela de Oliveira), com uma belíssima «introdução» magnificamente ‘cantada’ pelas duas guitarras. «Adeus Minho Encantador» e «Fado Manassés» (de Paulo de Sá e Manassés de Lacerda, respectivamente), apresentam introduções com dedilhação de viola ligando acordes de guitarra. Talvez fosse agora longa a discussão sobre quem introduziu esta prática (bem como, mutatis mutandis, a das dissonantes / diminutas) no acompanhar do Canto e da Guitarra de Coimbra. Alguns apontamentos nos surgem já no LP Coimbra Quintet, de Luiz Goes / António Portugal / Jorge Godinho / Manuel Pepe / Levy Baptista (1957), concretamente no final da «introdução» de «Serra d’Arga» e numa passagem das «Variações em lá menor» de António Portugal; da plausível responsabilidade de Manuel Pepe, esses contributos pioneiros têm a particularidade de surgirem ainda com utilização de cordas de aço. A passagem ao nylon é uma ‘glória’ presumivelmente partilhada por executantes como Paulo Alão, Jorge Moutinho, Durval Moreirinhas, José Niza, Rui Pato (e todos eles estiveram directa ou indirectamente ligados ao arranque do movimento da balada / trova e às primeiras gravações de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira nesta linha) e ainda António Ferreira Alves (acompanhante de Artur Paredes e Carlos Paredes). O certo é que nos trabalhos com a marca de NG isso se afigura um processo já corrente e normal. Finalmente neste EP, a «introdução» de «Canção da Beira» mostra-nos de novo a tal abrangência de escala que por si só define um Mestre.

III. Serenata de Coimbra / José Manuel dos Santos é talvez o trabalho mais surpreendente para quem escuta. Quatro temas originais, quatro interpretações notáveis, quatro arranjos por vezes ‘de cortar a respiração’... «Fado da Vida» e «Elegia à Mãe» são «fados» stricto sensu, (i.e., duas quadras repetindo a melodia), ambos em si menor, ambos com «introduções» de dedilhado de viola ligando acordes de guitarra. «Anjo Negro» (em mi menor) tem ainda uma estrutura de repetição; mas o compasso (ainda que quaternário) já não é propriamente o de «Fado». Por último, «A Rosa e a Noite» revela-se um trabalho ímpar:

(a) É a utilização de dedilhados de viola;

(b) é a dedilhação polegar / indicador na guitarra;

(c) é o raro partido que se tira das virtualidades do facto de se dispor de duas violas;

(d) é, finalmente, um poema de todo fora das tradicionais quadras (e do inerente efeito de repetição), ao qual a melodia e a harmonia correspondem sem sair de um universo sonoro de Coimbra...; verdadeiramente fora de série !

IV. António Bernardino será porventura a realização mais ‘difícil’. De novo quatro temas originais cantabili fora dos ‘espartilhos’ do Fado. E a revelação ao universo dos ouvintes de um dado bem conhecido dos Amigos e Companheiros de NG: a sua simplicidade e a sua humildade, que o levam neste trabalho a ‘apagar-se’ como executante face ao talento de Rui Pato.

Já lá vão quase 25 anos. De então para cá, o que havia morreu e renasceu. Muitos cantores e guitarristas interromperam e retomaram a actividade. Diversos novos valores se afirmaram. Mas boa parte da geração dos anos 60 não mais se viu nem ouviu. Uns porque não calhou (Eduardo e Ernesto de Melo, António Andias...). Outros (como NG) porque já cá não estão. Ao longo destes anos, muitas vezes tenho reincidido na audição dos temas em causa. E uma sensação me fica: por brilhante que seja alguma produção discográfica saída do final dos anos 70 para cá, a verdade é que os cinco EP’s com a mão (ou a inspiração) de NG permanecem ao nível do que de melhor se gravou na Coimbra de todos os tempos. Por vezes com deficiências de prensagem (caso de I.), outras vezes com excesso de eco (caso de III.), sem embargo, os trabalhos em causa, quase a completar três décadas de existência, mantêm uma juventude admirável, que torna qualquer nova audição como que uma re-descoberta. Um notável sentido rítmico (mais ‘contido’ na formação NG / Manuel Borralho, mais ‘nervoso’ na formação Hermínio Menino / Manuel Borralho) e uma espantosa capacidade de entrosamento das duas violas (particularmente em I. e em II., maxime nos temas «Fado da Vida», «Anjo Negro», «A Rosa e a Noite» e «Fado Manassés»), entre outras coisas, fazem destes trabalhos pequenas obras-primas, marcos incontornáveis do Canto e e da Guitarra de (e em) Coimbra e insubstituíveis ‘manuais’ de aprendizagem para quem a faça com atenção ao legado dos nossos maiores.
Obrigado, Nuno ! Nunca nos conhecemos pessoalmente. Mas Você permitirá por certo ao simples mortal que sou que formule o voto de que algum compilador atento supere em breve o obstáculo dos direitos editoriais e reponha no mercado os testemunhos do seu Talento Imperecível...



Porto, 19 de Maio de 1996

* In Recordando Nuno Guimarães: o poeta, o músico, 1942-1973, [Catálogo da Exposição patente na Junta de Freguesia de Perosinho em Jan./Fev.97], coord. Abel Morais COUTO, Gil GUEDES, José Ferraz de OLIVEIRA e Armando Luís de Carvalho HOMEM, com «Prólogo» de Francisco Barbosa da COSTA, Vila Nova de Gaia, Câmara Municipal, 1997, pp. 18-23. Também reproduzido no desdobrável que acompanha o CD (ed. na mesma altura) que reproduz a discografia a que NG ficou ligado na década de 60; Recordando Nuno Guimarães: Fados e Baladas de Coimbra, coord. José Ferraz de OLIVEIRA, DSA-CD-401, Porto, Discoteca Santo António, 1997. Os discos em causa são os seguintes: Serenata de Coimbra: José Manuel dos Santos, EP AM 4.039, ed. OFIR/Discoteca Santo António, s.d. (tal como os restantes); instrumentistas: NG / Manuel Borralho (gg.), Rui Pato / Jorge Ferraz (vv.); contém os seguintes temas (todos da autoria de NG): «Fado da Vida», «Elegia à Mãe», «Anjo Negro» e «A Rosa e a Noite»; Coimbra Antiga: Fados por José Manuel dos Santos, EP AM 4.069; instrumentistas: NG / Manuel Borralho (gg.), Rui Pato / Jorge Rino (vv.); contém os temas «Adeus Minho Encantador», «Fado das Penumbras», «Canção da Beira» e «Fado Manassés»; Fado Corrido de Coimbra: António Bernardino, EP AM 4.101; instrumentistas: NG / Manuel Borralho (gg.), Jorge Rino / Rui Borralho (vv.); contém os seguintes temas: «Sé Velha», «Mar Largo», «Fado Corrido de Coimbra» e «Fado das Águias» (os dois últimos com arranjos de Rui Pato); e António Bernardino, EP AM 4.102; instrumentistas: NG / Rui Pato; contém os seguintes temas: «Cantar de Amor» (ainda que no disco figure, por lapso, «Cartas de Amor»; correcção introduzida por Gil Guedes), «Canção dos Marinheiros», «Tempo sem Sombras» e «Saudade». Em disco há mais 2 temas de NG, cantados por Mário Soares da Veiga no EP AM 4.116 Contos Velhinhos: trata-se de «Balada Triste» e «Fado da Noite»; os instrumentistas são Hermínio Menino / Manuel Borralho (gg.) e Jorge Rino / Rui Borralho (vv.); o tema «Tempo sem Sombras» (poema de António Torrado) foi novamente gravado por António Bernardino na Antologia Tempo(s) de Coimbra: oito décadas no Canto e na Guitarra, ed. JORSOM, 1985, disco 4, lado A, faixa 2; instrumentistas: António Brojo / António Portugal (gg.), Aurélio Reis / Luís Filipe (vv.).

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