segunda-feira, maio 09, 2005

A Guitarra de Coimbra em tempos de fim-de-tempo
(ca. 1965-ca. 1973).
Apontamentos e rememorações
*

Armando Luís de Carvalho HOMEM

Estudei em Coimbra apenas um ano: foi em 1967/68, na Faculdade de Direito. Não passando ao tempo de um rudimentaríssimo viola de acompanhamento, e ainda por cima caloiro, andei, naturalmente, na margem do que se fazia; mas não à margem, filho de quem era e comensal, nesse ano, de uma casa onde tinham quarto um cantor e um guitarrista.
Que situação fui encontrar ? Começarei por indicar grupos encabeçados por guitarristas já com nome na(s) década(s) anterior(es) ou princípios da presente, mas ao tempo com actividade discreta (ou então distante de Coimbra):

João Bagão (1921-1993)

Radicado em Lisboa, João Carlos Bagão Moisés brilharia consideravelmente na segunda metade da década de 60. Anos antes gravara em Espanha, com José Amaral [1919-2001] (g.) e Arménio Silva (v.), dois EP’s acompanhando José Paradela de Oliveira [1904-1970]. A partir de ca. 1965, com João Bagão colaboravam Ayres [Máximo Saraiva] de Aguillar (g.), Fernando Neto [Mateus da Silva], António [Simão] Toscano e João [Figueiredo] Gomes. Foi esta formação instrumental que assegurou dois LP’s de Luiz Goes (Coimbra de ontem e de hoje e Canções do mar e da vida), um EP de Alexandre Herculano [Gomes dos Santos] e mais um EP instrumental, com originais do próprio J. Bagão (onde o destaque vai para «Reencontro entre dois temas»). João Bagão e Luiz Goes asseguraram ainda (ca.1967-ca.1969) o programa Evocação de Coimbra, na Emissora Nacional/Lisboa (EN).

António Brojo (1927-1999)

Não aparecendo muito, por força da sua vida universitária [doutorara-se em 1961 na U. Porto e prosseguira carreira na então Escola Superior de Farmácia/UC; em 1972 atingiria a cátedra na já restaurada (1968) Fac. Farmácia/UC], António Pinho de Brojo não estava no entanto inactivo. Por volta de 1962 acompanhara, com António Portugal e Jorge Moutinho, um EP de João Barros Madeira. Mais para o meio da década, com António Portugal e Rui Pato, gravara um EP instrumental, incluindo «Variações em lá menor» de Jorge [Alcino] de Morais [«Xabregas»], «Marcha em Fá» de Artur Paredes, «Bailados do Minho» de Antero [Dias d’Alte] da Veiga e «Valsa em Sol» de Flávio Rodrigues. Pelos alvores da década de 70 teve alguma actividade com – e para além de António Portugal (g.) e Aurélio Afonso dos Reis (v.) – Jorge Gomes (g.) e Luís Filipe [Roxo Ferreira] / Manuel Dourado (vv.) e cantores como Alfredo Glória Correia. Os dois LP’s em que acompanhou José [Firmino Moreira] Mesquita na segunda metade da década terão, porventura, raízes nesta fase.

Jorge Tuna (n. 1937)

Médico desde 1961, pelos inícios da década de 60 ainda se mantinha em Coimbra ou, pelo menos, suficientemente próximo para ir gravando: dois EP’s instrumentais – destaque para as suas «Variações em lá menor», «em mi menor», «em si menor» e «em Lá Maior», para a também sua «Rapsódia de Fados» (magnífica immixtio, entre outros, de temas como «Balada do Outono», «Senhora do Almortão», «Saudadinha» e «Canção da Beira Baixa»; esta peça de JT foi durante anos o indicativo de abertura e fecho do programa Do Choupal até à Lapa, do ERC) e para o modo como interpreta «Variações de Coimbra» de Afonso de Sousa e «Rapsódia de Canções» de Artur Paredes – e mais um acompanhando João Barros Madeira (com Jorge Godinho [g.], Durval Moreirinhas / José Tito [vv.]); participação também no LP de promoção da primeira viagem do Orfeon Académico aos EUA (1962), acompanhando António Sousa Pereira, António Sutil Roque e J. Barros Madeira (com Jorge Godinho [g.], Durval Moreirinhas [v.]). Continuou também a colaborar em actividades dos organismos da Academia (até ca. 1966).
Pelos meados da década inflectira o seu estilo, ao mesmo tempo que adoptava uma formação musical mais simples, apenas com o complemento de Durval Moreirinhas. Já radicado em Lisboa e a iniciar carreira como cardiologista e docente da Faculdade de Medicina, Jorge Manuel Casqueiro Lopo Tuna gravou então, e até 1969, mais dois EP’s e um LP (este último muito pouco divulgado), os quais mostram toda a evolução inovante por que passara. Julgo especialmente dignas de relevo as peças «Variações em lá menor n.º 2», «Variações em Ré Maior», «Variações em fá sustenido menor», «Águas», «Danças», «Entardecer», «Prece» e «Os Amantes».

Eduardo e Ernesto de Melo (nn. 1939 e 1944)

Naturais de Manteigas, os irmãos Eduardo e Ernesto de Melo Lucas Coelho terão constituído uma das mais eficazes duplas de guitarristas que Coimbra algum dia conheceu. Mais velho, Eduardo precedeu também Ernesto em Coimbra (e na Fac. Direito), integrando inicialmente o grupo de António Portugal. Com este participou num EP de Casimiro Ferreira, em dois de José Afonso e em mais três (depois reunidos em LP) de Adriano Correia de Oliveira, com as duplas de violas Manuel Pepe / Paulo Alão, Paulo Alão / Jorge Moutinho e Durval Moreirinhas / Jorge Moutinho.
Ulteriormente formou grupo com seu irmão e com Durval Moreirinhas, passando a colaborar nos saraus do Orfeon Académico; deve-se-lhes a ‘descoberta’ como cantor de Fado, aí por 1963, do até então mero solista barítono José Miguel [de Mira] Baptista: com ele gravaram um EP e, sob a designação «Coimbra Quartet», um LP (Hilversum, Philips, 1964);
O «grupo dos Melos» foi um dos melhores consubstanciadores das novidades da década de 60: note-se que os dois irmãos possuíam formação musical, sendo Ernesto executante de bandolim e tendo Eduardo depois enveredado pela viola clássica. A utilização sistemática de acordes soltos de guitarra ligados por dedilhados de viola – e saliente-se que Durval Moreirinhas integra o núcleo de pioneiros na opção pelas cordas de nylon –, a feitura de acordes nos bordões de lá e de si – ou, em alternativa, no bordão de si e na(s) corda(s) fina(s) de lá –, a construção frequente de melodias a partir de grupos de 3 notas (uma ‘glória’ repartida com Jorge Tuna) ou a dedilhação coordenada indicador/polegar – uma aparente ‘aportação’ de Carlos Paredes – contam-se entre as inovações que ajudaram a consolidar. Entre os temas instrumentais que registaram em disco, realcem-se «Evasão» e «Variações em Lá» (de Eduardo de Melo), bem como o arranjo para a «Balada de Coimbra» patente no EP e no LP de José Miguel Baptista.
Motivos castrenses interromperam a estadia de Eduardo em Coimbra aí pelos meados da década. Ernesto lá permaneceu até 1968, ano em que se licenciou; creio ter sido nessa fase que, com António Andias e Durval Moreirinhas, gravou um notável EP instrumental (também para a Philips), incluindo «Valsa em Fá», arr. Flávio Rodrigues, «Morena» de Artur Paredes, «Bailados do Minho» de Antero da Veiga e «Chula», arr. A. Portugal.
Será pela viragem da década que, por uma última vez, «os Melos» darão que falar, mercê de participações – novamente a duo ou com António Andias – em saídas do Orfeon Académico (v.g. Japão/1970), cabendo sempre a viola ao «metronómico Durval» (José Miguel Baptista).

Octávio Sérgio (n. 1937)

Natural de Viseu, foi aluno de Armando de Carvalho Homem no Liceu local e admirador do seu estilo de executante desde essa fase (meados da década de 50). Ainda em Viseu formou os seus primeiros grupos, que integraram nomes como os de José M. Barros Ferreira, José Mesquita, António Rodrigues (vulgo «António das Águas»), «Manuel das Águas», Jorge Furtado e Rolando de Oliveira.
Cursou Ciências Físico-Químicas na UC entre 1957 e 1965, com uma solução de continuidade, por razões castrenses, em 1961/62. Acabou por se licenciar em 1966 na Fac. Ciências da UL. No período 1966-1068 residia em Lisboa, mas ainda ia por vezes à ALMA MATER, onde frequentava o Curso de Ciências Pedagógicas.
Octávio Sérgio de Matos Azevedo pertencera ao Orfeon Académico e ao Coro Misto, e integrara grupos com Jorge Gomes, David Leandro, António Nazaré, José e Nilton («Nito») Bárrio, Gabriel Ferreira e, mesmo na fase final, António Portugal, Rui Pato e Jorge Moutinho; nessa última fase participou no movimento da trova, com Adriano Correia de Oliveira e António Bernardino. Terá sido dos primeiros guitarristas a executar regularmente reportório de Carlos Paredes. Começou, além disso, a compor as suas próprias peças, num estilo causador de perplexidade no meio musical coimbrão do tempo. Como a saída de Coimbra foi seguida de uma pausa musical de cerca de 10 anos, todas essas peças se perderam, por natural esquecimento do próprio, que só muito mais tarde passou a utilizar sistematicamente a partitura.

Nuno Guimarães (1942-1973)

Completara em 1966 o 5.º ano de Filologia Românica, licenciando-se no ano seguinte com uma tese sobre Machado de Assis. Nos dois últimos anos da sua estadia em Coimbra, José Nuno Guimarães Guedes dos Santos gravara quatro EP’s 45 RPM, com Manuel Borralho (g.), Rui Pato / Rui Borralho / Jorge Rino / Jorge Ferraz (vv.), acompanhando os cantores José Manuel Santos (dois) e António Bernardino (outros dois); no total, são 8 os temas de sua autoria patentes nessas gravações, com especial realce para «Fado da Vida», «A Rosa e a Noite», «Cantar de Amor» e «O Tempo sem Sombras»; há ainda 2 temas de sua autoria num disco de Mário Soares da Veiga (com Hermínio Menino / Manuel Borralho [gg.], Jorge Rino / Rui Borralho [vv.]).
Raramente terá voltado a tocar depois de -67: veio Mafra, veio Angola e por fim o Ensino Liceal no Porto, numa altura em que o-fado-era-outro; vagos projectos de retorno às lides musicais com Manuel Borralho não houve tempo para os concretizar.
Deixou inéditas umas «Variações em lá menor» (que Octávio Sérgio conhece e interpreta) e umas «Variações em ré menor» (de que apenas se conhecem os compassos iniciais, tal como registados na Sociedade Portuguesa de Autores em 1964).

António Andias (n. 1946)

Aveirense, a passagem de António Andias da Paula por Coimbra não doi longa (ca.1963-ca.1967), cursando os «Preparatórios» de Engenharia, posto o que rumaria à Capital e ao I. S. Técnico. Frequentador da tertúlia do «ré menor», integraria grupos com Nuno Guimarães e Jorge Rino, e ainda com Hermínio Menino, Ernesto de Melo (com quem gravaria um EP instrumental, v. supra), Rui Pato e Durval Moreirinhas. Pertenceu à Tuna Académica, como executante de bandolim.
Radicado em Lisboa, aprofunda então a colaboração com o último dos violas mencionados. Deve-se-lhes um EP de Armando Marta (notáveis os arranjos para «Afagos, afagos» e «Modos de cantar»), o registo de um tema de Carlos Paredes («Melodia n.º 2») e outro de Gonçalo Paredes («Valsa») num LP miscelânico, uma face do LP de Luiz Goes Canções de amor e de esperança (realcem-se «Canção [quase] de embalar», «Canção pagã» e «Uma lenda de levante») e o garantir de uma segunda fase do programa Evocação de Coimbra (Programa 1 da EN, 1969-1970). Pela viragem da década participaria ainda em viagens do Orfeon Académico.
Quase não se viu nos últimos 20 anos. Mas saliente-se que foi que, com Durval Moreirinhas e José Miguel Baptista, abriu a (contestadíssima) serenata na Sé Velha que abriu o I Seminário sobre o Fado de Coimbra, tendo José Miguel Baptista interpretado «Balada do Encantamento»**.

* * *
Grupos em actividade plena por aqueles finais de década, poderei mencionar os seguintes:

António Portugal (1931-1994)

Manteve-se activo ao longo de todo o período considerado. Para além da colaboração com A. Brojo (v. supra), António Jorge Moreira Portugal esteve no centro do processo inicial do movimento da trova, com Adriano Correia de Oliveira e António Bernardino (e o papel decisivo dos poemas de Manuel Alegre). Com o primeiro gravou múltiplos EP’s, não raro com uma formação instrumental simplificada (AP / Rui Pato, AP / Jorge Moutinho); mas também acompanhou Adriano ou «Berna» com formações mais alargadas (eventualmente em reportório mais tradicional), v.g. AP / Eduardo de Melo / Paulo Alão / Jorge Moutinho ou AP / Eduardo de Melo / J. Moutinho / Durval Moreirinhas (acontece em três EP’s de Adriano, depois reunidos em LP; de realçar a inclusão aqui do instrumental «Chula», em Ré Maior***) ou ainda AP / Octávio Sérgio / Rui Pato (fizeram pelo menos uma actuação na RTP e participaram em múltiplos convívios na AAC), AP / Manuel Borralho / Rui Pato (acontece em dois EP’s de António Bernardino e num EP instrumental; este último inclui duas guitarradas de AP, «Apontamento» [elaborada como fundo para uma peça levada à cena por um dos organismos teatrais da Academia] e «Rapsódia» [interessante tratamento em torno, entre outros, dos temas «Josezito» e «Terra do bravo»], e ainda «Pavana» [ = «Canção de Alcipe», de Afonso Correia Leite (tema da banda sonora do filme Bocage, que entrara no património da Guitarra de Coimbra pelo menos a partir de Artur Paredes. António Portugal faz esta primeira gravação e retoma depois a peça na colectânea de LP’s Tempo(s) de Coimbra (ca.1985) e no CD Variações inacabadas (1994); com o título «Canção de Alcipe» existem versões de Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral)] e «Balada do Mondego», arr. Artur Paredes [Manuel Borralho corporiza aqui, pela primeira vez depois de Carlos Paredes, o belíssimo jogo de bordões na corda de ré no acompanhamento da frase A desta peça. A versão Artur Paredes / Carlos Paredes / Arménio Silva estava ao tempo fora do mercado e só nele repareceria no final da década de 70. Mas António Portugal possuía um dos raros exemplares do EP que efemeramente estivera à venda]) e AP / Francisco Martins / Jorge Moutinho (acontece em mais um EP de António Bernardino; façam-se ressaltar aqui os magníficos arranjos para «Ao morrer os olhos dizem» e para o «Fado da despedida» de um Curso Médico dos anos 30).
Em 1967/68 AP estava portanto activo e presente: fez uma actuação televisiva (com Francisco Martins e Rui Pato, acompanhando António Bernardino e Fernando Gomes Alves), onde executou «Rapsódia n.º 2» de Artur Paredes [Artur Paredes gravou originariamente esta peça (bem como «Passatempo») em 1957, com 2.ª guitarra de Carlos Paredes e viola de Arménio Silva; descontente com os resultados, fez retirar o disco do circuito comercial, regravando as duas peças, com algumas variantes. As gravações retiradas só voltariam à luz do dia vinte e pouvos anos mais tarde); a primeira versão da «Rapsódia» ressurge então com o título «Cantares portugueses»] bem como a Serenata Monumental da «Queima ds Fitas» (creio que com a mesma formação instrumental), acompanhando José Miguel Baptista e, de novo, Fernando Gomes Alves.
No ano seguinte acompanhou António Bernardino (com Francisco Martins e Luís Filipe) no álbum emblemático Flores para Coimbra [o tema que dá título ao álbum tem poema de M. Alegre e música de Joaquim Fernandes (da Conceição); este último, com formação de pianista, prestava ao tempo serviço militar na unidade sediada em Santa-Clara-a-Nova; foi depois jornalista do Jornal de Notícias; ulteriormente licenciou-se em História na FL/UP (1989), Escola onde obteve também o mestrado (1996) e o doutoramento em História Moderna (2005); exerce funções docentes na U. Fernando Pessoa / Porto; em 1988 musicou uma quadras que serviram de «Balada do 4.º ano de História» da FL/UP]. O «modus faciendi» de AP transparece sobretudo em temas como «Canto da nossa tristeza» ou «Eu canto para ti o mês de giestas», enquanto que o ‘estilo’ de Francisco Martins se detecta por exemplo em «Flores para Coimbra», «Trova da planície» ou «Guitarras do meu País».

Hermínio Menino (n. 1938)

Natural de Fornos de Algodres, Hermínio Ferreira Menino foi um caso não vulgar de longevidade musical em Coimbra (final dos anos 50 / princípios dos anos 70). Integrou múltiplas formações instrumentais e ajudou a ‘lançar’ múltiplos cantores e instrumentistas: tocou com guitarristas como António Andias, Manuel Borralho, Jorge Limpo Serra, José Bárrio, António Ralha, Luís Plácido, Manuel Melo da Silva, António («Toni») Alves e Luís Almeida, com violas como Jorge Rino, Rui Borralho e António José Rocha (fazendo às vezes o cantor Mário Soares da Veiga também uma ‘perninha’ neste instrumento) e colaborou com cantores como José Manuel Santos, José Miguel Baptista, João Farinha, Mário Soares da Veiga (a quem acompanhou num EP com Manuel Borralho / Rui Borralho / Jorge Rino), José Adelino Leitão e Pedro Natal da Luz. O seu grupo fez durante anos os saraus do Orfeon Académico; e também colaborou com a Tuna. Foi presença regular no programa Serenata de Coimbra do Emissor Regional Centro (ERC) da EN até 1973 (particularmente com os cantores Mário Veiga e José Adelino Leitão); e protagonizou também algumas actuações televisivas (pelo menos entre -68 e -72). Das formações de que fez parte, talvez a musicalmente mais sólida (e relativamente duradoura) tenha sido a que integrou «Toni» Alves e António José Rocha, fase em que o grupo se abalançou a reportório de Jorge Tuna (v.g. «Variações em mi menor» e «em si menor»).
HM não terá sido propriamente um criador. Mas foi (e continua a ser) um arranjador notável, ‘enroupando’ das formas mais inesperadas (e eficazes) temas por vezes arquiconhecidos, e isto com resultados particularmente conseguidos quando em palco. Aliás, uma das suas ideias fortes consiste no carácter (também) de «ópera académica» da Canção Coimbrã, com as necessárias consequências… A HM faltou apenas uma presença mais forte na discografia; para além do facto de (e salvo excepções) ter normalmente trabalhado com cantores não propriamente de primeiro plano.
Saliente-se a fechar que o «modus faciendi» de HM tem tido sequência no grupo Insolita Praxis (do pólo de Viseu da Universidade Católica), liderado por seu filho Jorge Menino, grupo com a característica (insólita ?) de incluir elementos femininos como executantes de viola, v.g. Helena France. (Um dia, há já uma dúzia de anos, considerei HM como «um caso singular de conservadorismo anarquizante»; e continuo a crer-me com razão…).

Manuel Borralho (n. 1943)

Estudante de Medicina, segundo de uma série de quatro irmãos onde existiam dois guitarristas (ele próprio e José, estudante de História) e um viola (Rui, também estudante de Medicina), na cave da residência de seus Pais funcionou uma autêntica tertúlia de cantores e instrumentistas, conhecida por «o ré menor». Para além disso, Manuel Gonçalves Borralho terá sido um dos beneficiadores do magistério de António Portugal, com quem participou em múltiplas gravações: dois EP’s de António Bernardino e um EP instrumental (cf. supra, observações sobre António Portugal). Integrou ainda formações com guitarristas como seu irmão José, Nuno Guimarães (com quem participou em quatro EP’s), Hermínio Menino (com quem participou em mais um EP) e José Ferraz de Oliveira, e com violas como seu irmão Rui, Rui Pato, Jorge Ferraz de Oliveira e Jorge Rino; e colaborou com cantores como António Bernardino (a quem acompanhou num total de quatro EP’s), José Manuel Santos [1942-1989] (a quem acompanhou em dois EP’s), Vítor do Carmo, João Farinha, José Alves Miranda, Fernando Gomes Alves e Mário Soares da Veiga (a quem acompanhou num EP). Participou continuadamente nos saraus da Tuna Académica, a que pertencia; e, por diversas vezes, no programa Serenata de Coimbra, do Emissor Regional Centro.

Luís Plácido (n. 1946)

Natural de Seia, Luís Plácido de Miranda Garcia cursou Direito a partir dos alvores da década de 60 e pertenceu à Tuna Académica, como executante de bandolim. Nos seus primeiros tempos de Coimbra integrou uma formação onde pontificavam Manuel Pais (g.) e Mário Sacadura (v.), e com eles terá gravado pelo menos um EP. Mais tarde formou grupo com José Delgado (g.) e com Fernando Plácido (v.), seu irmão. Nessa fase gravou três EP’s: um com Manuel Branquinho, outro com Manuel José Vaz Craveiro [futuro jurista, ficou célebre em Coimbra pelo amor às trupes e pelo ódio aos gatos (a quem regular e proficientemente dava caça); os dois factos só aparentemente se contradizem: no fundo, trata-se de actividades predadoras com especial incidência em matérias piloso/capilares…] e um terceiro instrumental, preenchdo com temas originais. Na sua fase final de Coimbra, tocou frequentemente com Hermínio Menino e ocasionalmente com Manuel Antunes Guimarães e «Toni» Alves. Entre os cantores que acompanhou mencionem-se ainda José Horácio Miranda, João Frada e Custódio Pinto Montes [actualmente (2005) conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça].

José Bárrio

Nome muito pouco lembrado, participou durante um bom par de anos nos espectáculos do Coro Misto; era normalmente acompanhado à viola por seu irmão Nilton Bárrio («Nito»). Entusiasta de Jorge Tuna, reproduzia inclusivamente a típica posição de tocar deste (pelo menos numa dada fase). O seu reportório compreendia igualmente Carlos Paredes («Variações em lá menor», «Danças portuguesas n.º 1», «Dança», «Raiz», etc.). Entre os guitarristas com quem colaborou contam-se Octávio Sérgio (pontualmente), Hermínio Menino e – mais duradouramente – Manuel Antunes Guimarães; acompanhou cantores como Paulo Sampaio, Custódio Pinto Montes, José Horácio Miranda, Mário Bigotte e Arménio Marques dos Santos. As ‘coroas de glória’ da formação J. Bárrio / M. Antunes Guimarães / N. Bárrio – que em 1967 chegaram a estar prontos a entrar em estúdio com Paulo Sampaio para a gravação de um EP; à última hora nada se concretizou – localizam-se nos anos de 1968 e 1969:

a) No primeiro daqueles anos, ao grupo competiu o sarau da Queima das Fitas, no Teatro Avenida. Para além de executarem «Raiz», de Carlos Paredes – atitude ainda não de todo ‘ortodoxa’ –, cometeram a ousadia de ‘fechar’ com «Trova do vento que passa», vocalizada por Paulo Sampaio; quase saíram em ombros…

b) Na Páscoa de 1969 fizeram a digressão do Coro Misto aos Açores. Os saraus ficaram memoráveis, mormente os de Ponta Delgada, onde com eles actuou o viola açoreano Dr. Eduardo Tavares de Melo.

Manuel Branquinho (1929-1989)

Regressado do Brasil em 1966, Manuel Duarte Branquinho retomou o Curso de Direito e reingressou no Orfeon Académico, onde rapidamente subiu a solista 1.º tenor e Presidente da Assembleia-Geral. Retomou também as lides musicais, mas com uma ‘hesitação’: cantor ou guitarrista ? Inicialmente pareceu predominar o primeiro termo da alternativa: gravou um EP com Luís Plácido / José Delgado / Fernando Plácido (inclui, por exemplo, «Fado Manassés» e «Balada do Encantamento»); comparado com os ulteriores trabalhos discográficos de MB, esta gravação é uma obra-prima ! Seduzido, porventura, por perspectivas de liderança, MB resolveu-se a tirar pleno partido das suas virtualidades, virando, em simultâneo, cantor e guitarrista; e assim iniciou uma prática com nulas tradições na Coimbra dos tempos imediatamente anteriores (isto deixando de lado os rudimentares bonecos de louça à venda na feira do Espírito Santo…). Formou grupo com Gabriel Ferreira (g.) e Jorge Gomes [!!!!!] (v.) e, numa segunda fase, com Francisco Dias (g.) e Manuel Dourado (v.). No Orfeon acabou por criar uma situação de atrito com o grupo de Hermínio Menino, levando à retirada deste; de 1968 a -70 aí ‘reinou’ então quanto á constituição instrumental do grupo de fados. Foi também presença regular no programa Serenata de Coimbra do ERC (o cantor que com ele alternava era normalmente Vítor Nunes). E, sobretudo, gravou diversos EP’s e um LP cuja manifesta falta de qualidade constituía um dos poucos pontos de consenso no meio coimbrão post-1969.

* *
Voltemos ao meu ano de Coimbra, 1967/68: Sem se estar já nas culminâncias da década – atingidas, porventura, no período 1962-1965 – a verdade é que o Canto e a Guitarra se afiguravam vivos e bem vivos. Por muito reais e profundas que fossem já as divisões no meio estudantil, a verdade é que a música ainda ia unindo o que noutros domínios já como tal se não encontrasse. Porque o certo é que quatro eram os Organismos Académicos a incluir o Canto e a Guitarra nas suas aparições públicas (Orfeon, Tuna, Coro Misto e o debutante Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra [GEFAC]). Na diversidade dos níveis de execução atingidos, múltiplos eram os estilos dos cultores do género, dos criadores aos meros executantes, dos eclécticos aos tradicionais, dos inovadores aos dificilmente enquadráveis em tipologias desta natureza. E vários eram os meios de difusão da mensagem: do disco (e, de facto, gravou-se muito naqueles anos) à RTP (normalmente duas/ três serenatas/ano), aos programas radiofónicos: Do Choupal até à Lapa (ERC, transmitido às 5.ªs feiras ao fim da tarde, repetido às 4.ªs feiras subsequentes, pelas 12.30 h; preenchido com material discográfico); Serenata de Coimbra (ERC, mensal, preenchido com gravações expressamente feitas em estúdio); e Evocação de Coimbra (Programa 1 da EN/Lisboa; também preenchido com material gravado em estúdio, numa primeira fase com L. Goes / J. Bagão / A. Aguillar / F. Neto / A. Toscano / J. Gomes e numa segunda com A. Marta / A. Andias / D. Moreirinhas, como se viu).
Ora o que ninguém por certo poderia imaginar, naquele Verão de 1968 em que academicamente troquei o Direito pela História, e residencialmente a minha Cidade-Natal pela Invicta, era a rapidez com que a breve trecho se ‘desmoronaria’ todo aquele universo ainda aparentemente sólido.
Mas ainda mais inimaginável seria que, quatro anos apenas decorridos sobre Abril, a Fénix renascesse. E em Maio, por sinal…

Lisboa, 7 de Setembro de 1998

* Anais da Universidade Autónoma de Lisboa/série História, V-VI (2000-2001), pp. 333-348. Texto redigido no Verão de 1998 por solicitação de José NIZA, funcionou como ‘fonte’ para a sua obra Um Século de Fado. Fado de Coimbra, vols. I-II, Alfragide, EDICLUBE, 1999. Ulteriormente serviu de base a uma conferência proferida na Escola Superior de Educação / Instituto Politécnico de Portalegre (1999/06/14).
** Cantou no entanto duas quadras que não são as mais habituais neste tema; concretizando:

Ouvi uma Ave Maria
E, por milagre de Deus,
Teus olhos poisam nos meus,
Já a noite parece dia.


Nossa Senhora das Dores
Tem sete espadas no peito,
Saudade tem sete letras
Que ferem do mesmo jeito.

*** Tema popular trazido para Coimbra nos anos 30 por António Carvalhal. AP (com E. Melo / Durval Moreirinhas / J. Moutinho) fez-lhe um arranjo memorável e que rapidamente entrou no reportório de diversos grupos, mormente no que toca o ‘diálogo’ das duas guitarras na frase das percussões em quaternário [trrrrrraaaan-taan-PUM-tan-PUM-tan-PUM; trran-tan-PUM-tan-PUM-PUM-PUM], que, qual refrão, surge a meio e no final da peça. Poucos anos mais tarde, a formação Ernesto de Melo / António Andias / Durval Moreirinhas gravaria de novo este tema, segunda as coordenadas da versão AP. Note-se que José Amaral (1919-2001) e Armando de Carvalho Homem (1923-1991) conheceram e executaram a versão António Carvalhal (que ostentava diferenças várias, inclusive na ordem das frases). A própria versão incluída por A. Brojo no CD Memórias de uma guitarra (1997, com Carlos de Jesus [g.] / Aurélio Reis / Luís Filipe / Humberto Matias [vv.]) se afigura ‘geneticamente’ anterior à versão paradigmática de AP; e, consequentemente, mais próxima desse OMEGA representado por António Carvalhal.

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