Texto de Virgílio Caseiro incluído no seu livro “Novas canções para Coimbra”
Considerações Analíticas Gerais
Independentemente de discussões prolongadas de investigação sobre a génese do fado de Coimbra, ligando-o ( ou não ) ao lundum[1], às modinhas[2] ou às serenatas setecentistas e oitecentistas, a verdade é que este género musical começa a aparecer, como forma e estilo, por meados do século dezanove, e desde logo como forma de expressão muito ligada à população académica, embora não exclusivamente a ela.
Por esta altura, a frequência universitária não possuia ainda um estatuto de acesso democraticamente franqueado e as diversas dificuldades sociais tornavam-no quase exclusivo aos filhos da média e alta burguesia, esta em imparável ascenção desde meados do século XVIII.
Por outro lado, a abertura do país ao gosto operístico italiano, feita a partir do reinado de D. João V e posteriormente solidificada com o envio de compositores portugueses para Itália, ( Marcos Portugal, Sousa Carvalho, António Teixeira, etc. ) veio tornar mais forte o gosto pelas árias de bravura em língua italiana e dar-lhes uma divulgação considerável ao nível dos principais centros urbanos.
Tendo em linha de conta, por um lado, as condições de oriundidade de ingresso na Universidade e, por outro, os hábitos de audição de ópera italiana das classes sociais a que o ingresso era permitido, não parece descabido poder adiantar ainda, como mais uma hipótese de génese do Fado de Coimbra, radicalmenrte diferente do de Lisboa, a sua ligação ao gosto das árias para solistas, sendo destas um filho pobre, ditado pelas limitações criativas e interpretativas dos jovens que vinham até Coimbra e aqui caprichavam em inventar novas melodias para lhe acompanharem as noites, a boémia e o cortejar.
Por esta janela de observação muito mais lógica, se descortina o tipo de melodias que nos chegaram até hoje vindas do final do século XIX e princípios do XX, e que acabaram por caracterizar o Fado de Coimbra, como um género musical quase sempre composto por duas quadras, servidas por igual melodia, acompanhada por sequência de arpejos ou acordes e onde, por sistema, o ponto mais alto, mais esperado e de maior tensão "romântica" gravita à volta de uma nota suspensa e agudíssima, se possível servida por um "ai", onde as potencialidades de voz do tenor[3] deslumbram pela leveza, cristalinidade e óbvia bravura vocal.
Com o chegar da década de 60, muita coisa de novo foi escrita e repensada, principalmente ao nível do conteúdo da mensagem literária e da forma musical. Aparece assim, por um lado, a poesia de intervenção social, o discurso subtil de militância política e a denúncia de mal-estares; por outro, surge como forma a balada, rejeitando a guitarra portuguesa e apadrinhando o acompanhamento único da viola. No entanto, no plano harmónico, pouco de significativo se alterou, não sendo contudo de deixar de referir a importância conseguida na época e posteriormente continuada, da harmonia modal, com recorrência ao acorde do 7º grau dessensibilizado. Durante este período é indispensável referir o contributo harmónico e melódico isolado da obra cantada pelo Dr. Luiz Goes que bem pode ser entendida como uma verdadeira revolução de intenções poéticas e de concretizações musicais. As suas soluções harmónicas são, de facto, de uma incomparável riqueza, descobrem novos caminhos modulantes e atribuem à guitarra um papel muito mais activo e dialogante, que até a esta época, com o solo vocal.
Volvida a década de 60 e afastados de Coimbra os seus mais directos responsáveis criadores, pouco de relevante tem vindo a ser feito que possa determinar uma brecha no estilo coimbrão ou apontar para novas soluções. As possíveis causas já foram dadas a conhecer na introdução a este volume.
O presente trabalho, a par de obras de perfeita consonância com a tradição composicional coimbrã, como seja o caso de "Tempos Idos", "Depois de teres partido", "1º Fado de Abril",, "Vivi um sonho" e "Esperança", apresenta outras obras onde se pretende romper com as mais vulgares soluções estilísticas e de encadeamento harmónico. Estão neste caso canções como "Fado de Abril", "Amar Incerto", "Pensamento Livre", "Um Lago" e "Fugi".
Neste segundo caso, as soluções mais usadas são o recurso a acordes da tonalidade, alterados cromaticamente, o equívoco da tríade diminuta e sua resolução, o jogo maior - menor conseguido através do acorde intermédio do terceiro grau, a sustentação de uma melodia recto-tonal como suporte de um encadeamento modulante e a utilização das notas da melodia como elemento de conflito tonal ao acompanhamento ou alongamento do acorde a outras estruturas.
Quanto à forma ela resultou principalmente da mensagem poética e do que esta aconselhava. Não houve, em caso algum, uma intenção prévia de subjugação a formas tradicionais estabelecidas que configurassem a obra mais facilmente com a designação de fado.
As presentes canções são apresentadas em tonalidades de médio registo, podendo contudo ser transpostas para os tons mais convenientes em função do timbre, amplitude e plasticidade vocal do executante. Aliás esta prática tornar-se-á obrigatória para todas elas, caso venham a ser cantadas pelas habituais "vozes de Coimbra".
O anterior facto não pode deixar de ser também tomada em conta em relação ao já adiantado na Introdução, ou seja a ausência, na presente obra, de introduções e separadores instrumentais. E porquê ? Porque a liberdade de construção para estas partes, já afirmada, encontra aqui uma razão acrescida. Sabe-se que a guitarra portuguesa, fruto das suas características tímbricas e de afinação, permite resolver enquadramentos harmónicas, em determinados tons[4], que inviabiliza, quase por completo, em outros. Assim, uma introdução estruturada especificamente para uma tonalidade pode não resultar para outra, fruto das limitações de âmbito do instrumento, sua personalização técnica e até do correcto apoio e exploração dos bordões na definição pretendida para o tecido harmónico.
Por último, uma sucinta atenção à problemática da dinâmica e da agógica.
Em relação à dinâmica, pouco ou mesmo nada se avançou como solução ou simples indicação, por aquela parecer óbvia, se entendida na sequência da linha melódica, ou seja, é a altura pontual dos sons, conjugada com o registo vocal do intérprete, que irá determinar, com natural obrigação, a dinâmica mais aconselhável para cada passagem.
Para a agógica, não foram indicados andamentos iniciais, porque o discurso melódico os torna também evidentes. Indicaram-se contudo, ao longo das obras, mudanças de andamento, "acelerandos" e "ritardandos", já que aqui eles caracterizam o efeito estético pretendido. No entanto nunca foi perdida de vista a vontade de deixar as partituras o mais abertas possíveis, para daí poder vir a tirar heterogenia e actualidade interpretativa.
[1]- Lundum ou Lundu - Género musical brasileiro dançado ligado à expressão negra e hipoteticamente "importado" para Portugal, que depois de assimilado e transformado, teria influênciado e contribuído para a moldagem do nosso género musical Fado, não sendo contudo ainda claro, para os defensores desta hipótese, o tipo real de influência estilística e se ele teria a ver exclusivamente com o Fado de Lisboa, ou se teria a ver genericamente com todo o fado.
[2]- Outro género musical muito em voga a partir de finais do séc. XVIII, estruturalmente composto à semelhança das árias de ópera italiana e construído, geralmente, para uma ou duas vozes solistas com acompanhamento de instrumento de teclas ou corda dedilhada, por exemplo cistre ( também chamado guitarra inglesa e depois guitarra portuguesa ). A temática poética era variada, mas os temas sensuais e amorosos davam razão de ser ao maior número de composições. Eram bastantes vezes interpretadas como serenatas, indistintamente cantadas por homens ou mulheres, estas a começar neste final de século a ganhar justo direito à sua constante, mas morosa, emancipação. Quer pela temática, quer pela forma e contexto interpretativo, quer ainda pelo acompanhamento instrumental, as Modinhas são muitas vezes indicadas como lógicas melodias de influência no Fado. E é pela voz de Beckford, no seu diário de viagem de 1891, que até nós chega a sua caracterização das Modinhas: "Uma espécie original de música, diferente de quanta tenho ouvido,a mais sedutora, a mais voluptuosa que imaginar se pode, a mais calculada para fazer perder a cabeça dos santos e para inspirar delírios profanos..." E é ainda Beckford, na mesma fonte: "Duas senhoras idosas, de categoria, D. Joana de Menezes e a marquesa de Penalva, dizem que o Santo António apareceu e lhes ordenou que mandassem levantar um muro em torno do seu convento para afastar certos lascivos menestreis do sexo feminino que passam a noite a dedilhar a guitarra de baixo das janelas dos frades e a gorjear imundas modinhas".
[3]- Nunca um Barítono ou um Baixo, a quem nunca foram reconhecidos tímbres de privilégio para a interpretação do Fado! Possivelmente isto ficar-se-á a dever ao facto de que, tal como nos hábitos operísticos italianos, acabava por ser sempre o Tenor ou o Soprano a tomarem conta das árias de maior impacto e virtuosísmo.
Como por meados do séc. XIX o acesso das mulheres à Universidade não era ainda um facto consolidado, os sopranos não poderiam ainda jogar a sua cartada e restava assim aos tenores deter a hegemonia vocal interpretativa e deleitarem os ouvintes e muito principalmente as ouvintes, com estas belas melodias de recorte arioso e sabor operístico! Não serão estas razões um punhado lógico a desenvolver e a ter em conta na génese do Fado de Coimbra?
[4]- É sabido como é diferente a execução, pelo que dela resulta de homogénio, quando evolui à volta de tons como Ré, Lá, Sol e Mi, por exemplo, e como empobrece em tonalidades como Si, Dó # ou Sol #. É evidente que é argumentável que um correcto estudo da guitarra e o desenvolvimento de toda uma técnica superior a ela aplicada, concerteza derrubará, ou pelo menos minimizará, estas limitações. Com certeza que sim. Mas esta não é ainda a actual verdade, e as obras e interpretações, resultam, de facto, do domínio coevo. Para além disto há outros factores, por certo múltiplos factores, condicionantes. (Ex.: o brilho conseguido para uma melodia na 2ª corda, dificilmente será igualado na 3ª; o apoio ressonante conseguido pela 5ª ou 6ª corda soltas não é comparável ao conseguido quando pressionada em algum traste, etc.).
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