Breve perfil do Arquitecto Florêncio Neto de Carvalho (1924-1981)
Filho único de abastados proprietários ribatejanos, Florêncio Neto de Carvalho nasceu em 14 de Janeiro de 1924 na freguesia e Concelho de Alpiarça, distrito de Santarém. Era filho de Florêncio Carvalho, republicano e anticlerical (“Padres, de ganadaria nenhuma!”), vizinho de José Relvas, e de Francisca Parreira Neto, de ocupação doméstica. O pai era rendeiro do Eng. Álvaro Simões, ministro de Estado na Primeira República, que apadrinhou o bebé Florêncio na pia baptismal.
Efectuou a instrução primária em Alpiarça, tendo frequentado entre 1935 e 1942 o Liceu Sá da Bandeira, em Santarém. Neste último estabelecimento de ensino concluiu o 7º Ano de Ciências com a média final de 14 valores. Boémio, “bon vivant”, apaixonado pela lezíria, cavalos e touradas, Florêncio foi um assanhado coleccionador de revistas equestres e tauromáquicas, enquanto fazia uma perninha nos garbosos forcados amadores da terra. Em termos políticos e religiosos, Florêncio herdou uma formação familiar vicinal marcadamente republicana e anticlerical. E porque no Liceu de Santarém se reproduzia um certo culto em torno da cultura académica coimbrã, que ia desde a prática das serenatas ao uso da capa e batina, o jovem Florêncio deu consigo metido em serenatas. Remonta a esta sua fase iniciática a improvisação melódica do famigerado tema “Lá longe ao cair da Tarde”, inspirado nos dotes de uma farmacêutica de cabelos alourados (“vejo nuvens d’oiro que são os teus cabelos”), estabelecida em Alpiarça.
A partir de 1942, em pleno cenário de guerra, Florêncio frequentou o curso de Preparatórios de Engenharia, primeiro em Lisboa, depois em Coimbra. Breve foi a sua primeira passagem pela UC na primeira metade dos anos quarenta, pois em 1948 pediu transferência para o Instituto Superior Técnico (Lisboa). Nesse mesmo ano interrompeu os estudos, por doença, e longe dos bancos académicos se manteve até 1951.
No início do ano escolar de 1951 voltou a matricular-se na UC, no curso de Ciências Geofísicas, da Faculdade de Ciências. O regresso a Coimbra permitiu-lhe retomar o convívio com os amigos ligados à prática das serenatas e cantorias. Participou activamente em diversas récitas, ao lado de instrumentistas e cantores como Manuel Branquinho, Pinho Brojo, Luiz Goes, Fernando Rolim. Esboçou caricaturas para livros de curso, participou activamente nas garraiadas da Queima das Fitas e desenhou cenários para o TEUC. Neste período frequentou assiduamente a República Palácio da Loucura, na Rua Antero de Quental, e não havia centenário ou festança em que não cantasse de parceria com Fernando Rolim e Camacho Vieira. Os amigos admiravam-lhe o rosto bonacheirão, o caminhar à Charlot de tempos a tempos carregado pela obesidade, as noites brancas de conversas infinitas.
Desempenhou importante papel na consolidação da Tertúlia do Calhabé (1951-1954), o afamado grupo de António Pinho de Brojo, como ensaiador de cantores, exigente nos acompanhamentos, selectivo ao nível das temáticas, exigindo a compreensão e declamação dos textos, enquadrando os jovens cantores em estilos prévios. O papel atribuído a Florêncio, no sentido de conduzir a CC para caminhos de maior exigência e qualidade, nunca foi devidamente estudado. Está sobejamente provado que não possuía formação musical, o que por si só não constitui factor determinante para a exclusão de uma postura de maior investimento qualitativo. O Engenheiro Mário Henriques de Castro, executante de violão aço no grupo de António Brojo, recorda em traços sucintos a figura e o papel então desempenhado por Florêncio: “não era um grande cantor, sendo dotado de voz roufenha, afectada pela rouquidão”. “Era extraordinário como compositor, sendo disso exemplo o “Lá longe ao cair da tarde”, cuja letra deu brado em Coimbra, tal a excelência do conteúdo do poema. O Florêncio aparecia nos ensaios do nosso grupo com frequência, e o seu grande protagonismo consistiu em ensinar boas técnicas de entoação e modulação vocal aos outros cantores. A ele se deve, em grande parte, fruto de particular intuição, a transmissão das técnicas de respiração, os pianíssimos, os fortes, os crescendos, a transição de frases. De todos os instrumentistas do nosso grupo só o Aurélio Reis sabia música e solfejo, pois tocara clarinete na Filarmónica da Pampilhosa”.
De qualquer das formas, não subsistem dúvidas quanto à qualidade do desempenho do grupo liderado por António Brojo entre 1951 e 1954, presente nas “serenatas” do Emissor Regional e no lote de discos 78 r.p.m. gravados em 1952.
São desta segunda fase coimbrã de Florêncio, as melodias “Vento não batas à porta” e “Esmeralda Verde”.
Florêncio não gravou quaisquer discos, mediante os quais seja possível aquilatar da sua voz. Sabe-se, no entanto, que era um cantor dotado de timbre e volume muito similares aos exibidos pelo guitarrista-cantor António de Almeida Santos. Isto é, uma voz próxima de segundo tenor, frágil, pouco extensa, sem grande expressividade interpretativa, minada por ciclos de rouquidão. Os achaques decorrentes da doença também não lhe permitiam forçar as cordas vocais, impondo limitações que o cantor procurava superar com recurso a expedientes como o sentido do ritmo, a afinação, a entoação sentimental, truques muito do agrado dos corações femininos (declarações da esposa).
No período referido, o cantor-compositor voltou a interromper os estudos e aplicou os seus dotes artísticos na idealização dos cenários do TEUC, grupo dramático em maré alta, devido ao investimento e engenho do Doutor Paulo Quintela. Em 1952 conheceu a “actriz” do TEUC e estudante de Letras Maria Lucília Abreu, oriunda de Seia e ainda aparentada com a família de António Almeida Santos. Iniciado o namoro, Lucília e Florêncio celebram casamento no Porto. Do enlace nasceu uma filha, e o jovem casal decidiu estabelecer-se na casa de família em Alpiarça. Apesar de ter concluído a licenciatura, Lucília não trabalhou nos primeiros anos de casamento, para se dedicar em exclusivo à família e à filha. Sem emprego e com o curso por concluir, Florêncio viveu dos rendimentos familiares.
Em meados da década de cinquenta, o casal fixou residência em Lisboa. Foi durante os primeiros anos de casamento que a personalidade de Florêncio começou a sofrer importantes transformações ideológicas, no sentido de uma consciencialização que o fez aproximar do ideário de esquerda. O jovem estouvado, entre humanista, idealista e artista, falho de sentido material, ganhava sentido prático da vida. Durante os longos períodos de doença lera sofregamente autores e obras que o atraíam cada vez mais para o mundo das artes e humanidades. O convívio com o sogro, Rudolfo Almeida Abreu, homem culto e feroz opositor ao regime de Salazar, tornou-se um elemento decisivo no processo de viragem. No fundo, foi graças às longas conversas travadas com o sogro que Florêncio descobriu a sua verdadeira interioridade e a sua vocação profissional, após anos de inscrições, interrupções e transferências de cursos. O professor primário Rudolfo Almeida Abreu chegou a ser preso pela PIDE na década de 1950 e foi defendido no Plenário do Porto pelo advogado republicano Dr. António Macedo. Absolvido, recebeu uma indemnização de 70.000$00, num processo que fez aproximar Florêncio dos círculos da família da esposa.
Em Outubro de 1957, aos trinta e três anos, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto. Seis anos volvidos, em 1963, terminou o curso de Arquitectura, com média de 14 valores. Aluno distinto e premiado em 1962 (Prémio Mota Coelho), Florêncio iniciou em Outubro de 1963 o seu estágio de arquitectura, por um período de sete meses, no atellier do distinto arquitecto Carlos Loureiro.
Concluído o estágio profissional, em meados de 1964, começou a trabalhar como técnico de condicionamento de ar na Sociedade de Equipamentos Industriais, Lda., graças aos seus conhecimentos de Matemática e Termodinâmica. Entretanto, desde um de Abril de 1967 iniciou serviço, na qualidade de arquitecto contratado, na Repartição de Construção de Casas da Câmara Municipal do Porto. Em Junho de 1968 apresentou-se à prova final do curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto, com um relatório de estágio orientado pelo arquitecto Fernando Távora sobre o Estudo de Renovação do Barredo, tendo obtido a classificação de 16 valores.
Até à data do seu falecimento na cidade do Porto, em 26 de Janeiro de 1981, Florêncio de Carvalho, desenvolveu a sua actividade profissional na Câmara Municipal do Porto. Nas horas de lazer dedicou-se à pintura, caricatura, colecção de recortes de jornais alusivos à Revolução de 1974, desenho de moradias particulares, poesia, montagem de exposições, colaboração com o Grupo de Teatro Experimental do Porto, e direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense.
Entre 1972 e 1975 foi assistente da Escola de Belas Artes do Porto, e de 1973 a 1975 docente do Instituto de Arte, Decoração e Design. Assinou diversos artigos sobre problemas de habitação, publicados na “Revista do Norte” e em “O Primeiro de Janeiro”. No final da década de 1970 participou activamente nos Seminários do Fado de Coimbra (1978 a 1980), tendo cantado na serenata do primeiro certame.
Num dia frio de Janeiro de 1981 rumou ao cemitério de Nevogilde, no Porto, este ribatejano que tendo sido marido, pai, professor, ficou sempre interiormente vagabundo de si mesmo e do seu lápis de artista.
I-Principais trabalhos de arquitectura e artes
-levantamento do alçado da escarpa da Sé do Porto, com vista ao Estudo de Renovação Urbana do Barredo;
-moradia do Dr. Daniel Avelino, em Alpiarça;
-moradia de D. Clarisse Guimarães, no Oásis do Mindelo;
-moradia de Francisco Martins, na Rua da Bélgica, Vila Nova de Gaia;
-moradia de Odete Santos, na praia de Vila do Conde;
-moradia do Engenheiro Vieira Alberto, em Coimbra;
-moradia do Engenheiro Luís Durães, em Caminha;
-casa própria, no Porto;
-casa própria, na praia do Mindelo;
-moradias geminadas para Monteiro da Costa, na Rua Rei Ramiro, Gaia;
-bloco de habitações, na Rua Capitão Pombeiro, Porto;
-bloco de habitações, na Rua Francos, Porto;
-pavilhão polivalente para a Associação dos Construtores Civis;
-capela do Padrão, Matosinhos;
-urbanização LECANORTE, em Verdinho, Gaia;
-cenógrafo, luminotécnico e caracterizador do TEUC em diversos espectaculos realizados em Portugal, Alemanha, Itália e Espanha, durante a 2ª Delfíada de Teatro de 1952;
cenógrafo e caracterizador do Grupo Experimental de Teatro de Lisboa (direcção de António Pedro), e Teatro Estúdio do Salitre (direcção de Gino Saviotti);
-encenação e montagem no Grupo Experimental do Porto (direcção de António Pedro e Correia Alves);
-direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense (premiado em 1961 com a peça Camões no Rossio);
-participação em todas as Exposições Magnas da ESBAP, realizadas entre 1958 e 1963;
-participação na Exposição Arquitectos e Artistas, realizada na ESBAP em 1972;
exposição individual de desenhos e pintura, na Associação Portugal Europa (Porto), em 1979;
-colaboração na montagem da Exposição do Ano Internacional da Conservação do Património Europeu, ocorrida no Museu Soares dos Reis;
-montagem da Exposição das Cidades Geminadas com Liège em 1978, e Exposição do Ano Internacional da Criança (1979, Turim), promovidas pela Câmara do Porto;
-participação no colóquio A Cidade e a Criança, realizada em Turim e Milão em Abril de 1979;
-montagem da Exposição Nacional de Desenhos Infantis, no Clube dos Fenianos, em 1979;
-participação nos Seminários do Fado de Coimbra, realizados em 1978 e 1979;
-autor das medalhas, “Comemoração do 25º aniversário do Clube Invicta de Pesca Desportiva”, e “Prof. Doutor Paulo Quintela”;
-autor do logotipo do Rotary Club Porto/Douro
II-Temas de Coimbra
No curriculum vitae, assinado e datado de “Porto, 7 de Maio de 1980”, página três, o Arquitecto Florêncio de Carvalho reclama-se “autor das músicas e textos de vários fados de Coimbra, editados em disco (...)”, embora não especifique quais sejam esses temas. Gravados em disco apenas se conhecem três temas da autoria de Florêncio, respectivamente Lá Longe ao Cair da Tarde (vulgo Balada de Florêncio), Vento não batas à Porta e Esmeralda Verde.
Vejamos os respectivos títulos e textos em fixação definitiva:
LÁ LONGE AO CAIR DA TARDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1942
Lá longe, ao cair da tarde
Vejo nuvens d’oiro
Que são os teus cabelos
Fico mudo ao vê-los
São o meu tesoiro
Lá longe ao cair da tarde.
Lá longe, ao cair da tarde
Quando a saudade
Se esvai ao sol poente
Como canção dolente
De uma mocidade
Lá longe, ao cair da tarde.
Quanto à melodia, a viúva, Dra. Lucília Abreu, informa ter ouvido ao marido que esta balada fora composta nos tempos em que estudou no Liceu Sá da Bandeira de Santarém (1935-1942). O título deve corresponder ao incipit (1º verso da 1ª estrofe, tal qual era habitualmente designado pelo autor). Tema arqui-regravado e de tal maneira banalizado que apenas aconselhamos os registos de António de Almeida Santos (1961) e Joaquim Matos (1981).
VENTO NÃO BATAS À PORTA
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: 1ª quadra de Júlio Brandão, adaptada por Florêncio; 2ª quadra de Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1951
Vento não batas à porta
Que ela julga que sou eu!
Saudades da mocidade
(Ai) De um amor que já morreu.
Não vás contar tuas mágoas
Às pedrinhas do ribeiro;
Chorando ao pé de quem chora
(Ai) Chora a gente o dia inteiro.
Ária estrófica de tipo classizante, estruturada em introdução, 1ª quadra, separador, 2ª quadra e conclusão. A melodia corresponde à segunda estadia do cantor em Coimbra, iniciada em 1951. Foi composta entre 1951. A versão mais conhecida corresponde ao registo efectuado em 1952 por Fernando Rolim.
ESMERALDA VERDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1952
Conheço a “esmeralda verde”
Verde de água marinha;
Nenhum verde é como o verde
Dos teus olhos Joaninha.
Conheço a “esmeralda verde”
Verde da água marinha.
(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim;
Saudades da mocidade
Que eu trago dentro de mim.
(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim.
Espécime singelo, concebido propositadamente para imitar as composições populares (quantos falsos populares não tem a CC?), pretendeu ser uma evocação de Joaninha, a famosa protagonista de “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett. A gravação que mais respeita a versão original é a efectuada por Fernando Rolim em 1960.
Filho único de abastados proprietários ribatejanos, Florêncio Neto de Carvalho nasceu em 14 de Janeiro de 1924 na freguesia e Concelho de Alpiarça, distrito de Santarém. Era filho de Florêncio Carvalho, republicano e anticlerical (“Padres, de ganadaria nenhuma!”), vizinho de José Relvas, e de Francisca Parreira Neto, de ocupação doméstica. O pai era rendeiro do Eng. Álvaro Simões, ministro de Estado na Primeira República, que apadrinhou o bebé Florêncio na pia baptismal.
Efectuou a instrução primária em Alpiarça, tendo frequentado entre 1935 e 1942 o Liceu Sá da Bandeira, em Santarém. Neste último estabelecimento de ensino concluiu o 7º Ano de Ciências com a média final de 14 valores. Boémio, “bon vivant”, apaixonado pela lezíria, cavalos e touradas, Florêncio foi um assanhado coleccionador de revistas equestres e tauromáquicas, enquanto fazia uma perninha nos garbosos forcados amadores da terra. Em termos políticos e religiosos, Florêncio herdou uma formação familiar vicinal marcadamente republicana e anticlerical. E porque no Liceu de Santarém se reproduzia um certo culto em torno da cultura académica coimbrã, que ia desde a prática das serenatas ao uso da capa e batina, o jovem Florêncio deu consigo metido em serenatas. Remonta a esta sua fase iniciática a improvisação melódica do famigerado tema “Lá longe ao cair da Tarde”, inspirado nos dotes de uma farmacêutica de cabelos alourados (“vejo nuvens d’oiro que são os teus cabelos”), estabelecida em Alpiarça.
A partir de 1942, em pleno cenário de guerra, Florêncio frequentou o curso de Preparatórios de Engenharia, primeiro em Lisboa, depois em Coimbra. Breve foi a sua primeira passagem pela UC na primeira metade dos anos quarenta, pois em 1948 pediu transferência para o Instituto Superior Técnico (Lisboa). Nesse mesmo ano interrompeu os estudos, por doença, e longe dos bancos académicos se manteve até 1951.
No início do ano escolar de 1951 voltou a matricular-se na UC, no curso de Ciências Geofísicas, da Faculdade de Ciências. O regresso a Coimbra permitiu-lhe retomar o convívio com os amigos ligados à prática das serenatas e cantorias. Participou activamente em diversas récitas, ao lado de instrumentistas e cantores como Manuel Branquinho, Pinho Brojo, Luiz Goes, Fernando Rolim. Esboçou caricaturas para livros de curso, participou activamente nas garraiadas da Queima das Fitas e desenhou cenários para o TEUC. Neste período frequentou assiduamente a República Palácio da Loucura, na Rua Antero de Quental, e não havia centenário ou festança em que não cantasse de parceria com Fernando Rolim e Camacho Vieira. Os amigos admiravam-lhe o rosto bonacheirão, o caminhar à Charlot de tempos a tempos carregado pela obesidade, as noites brancas de conversas infinitas.
Desempenhou importante papel na consolidação da Tertúlia do Calhabé (1951-1954), o afamado grupo de António Pinho de Brojo, como ensaiador de cantores, exigente nos acompanhamentos, selectivo ao nível das temáticas, exigindo a compreensão e declamação dos textos, enquadrando os jovens cantores em estilos prévios. O papel atribuído a Florêncio, no sentido de conduzir a CC para caminhos de maior exigência e qualidade, nunca foi devidamente estudado. Está sobejamente provado que não possuía formação musical, o que por si só não constitui factor determinante para a exclusão de uma postura de maior investimento qualitativo. O Engenheiro Mário Henriques de Castro, executante de violão aço no grupo de António Brojo, recorda em traços sucintos a figura e o papel então desempenhado por Florêncio: “não era um grande cantor, sendo dotado de voz roufenha, afectada pela rouquidão”. “Era extraordinário como compositor, sendo disso exemplo o “Lá longe ao cair da tarde”, cuja letra deu brado em Coimbra, tal a excelência do conteúdo do poema. O Florêncio aparecia nos ensaios do nosso grupo com frequência, e o seu grande protagonismo consistiu em ensinar boas técnicas de entoação e modulação vocal aos outros cantores. A ele se deve, em grande parte, fruto de particular intuição, a transmissão das técnicas de respiração, os pianíssimos, os fortes, os crescendos, a transição de frases. De todos os instrumentistas do nosso grupo só o Aurélio Reis sabia música e solfejo, pois tocara clarinete na Filarmónica da Pampilhosa”.
De qualquer das formas, não subsistem dúvidas quanto à qualidade do desempenho do grupo liderado por António Brojo entre 1951 e 1954, presente nas “serenatas” do Emissor Regional e no lote de discos 78 r.p.m. gravados em 1952.
São desta segunda fase coimbrã de Florêncio, as melodias “Vento não batas à porta” e “Esmeralda Verde”.
Florêncio não gravou quaisquer discos, mediante os quais seja possível aquilatar da sua voz. Sabe-se, no entanto, que era um cantor dotado de timbre e volume muito similares aos exibidos pelo guitarrista-cantor António de Almeida Santos. Isto é, uma voz próxima de segundo tenor, frágil, pouco extensa, sem grande expressividade interpretativa, minada por ciclos de rouquidão. Os achaques decorrentes da doença também não lhe permitiam forçar as cordas vocais, impondo limitações que o cantor procurava superar com recurso a expedientes como o sentido do ritmo, a afinação, a entoação sentimental, truques muito do agrado dos corações femininos (declarações da esposa).
No período referido, o cantor-compositor voltou a interromper os estudos e aplicou os seus dotes artísticos na idealização dos cenários do TEUC, grupo dramático em maré alta, devido ao investimento e engenho do Doutor Paulo Quintela. Em 1952 conheceu a “actriz” do TEUC e estudante de Letras Maria Lucília Abreu, oriunda de Seia e ainda aparentada com a família de António Almeida Santos. Iniciado o namoro, Lucília e Florêncio celebram casamento no Porto. Do enlace nasceu uma filha, e o jovem casal decidiu estabelecer-se na casa de família em Alpiarça. Apesar de ter concluído a licenciatura, Lucília não trabalhou nos primeiros anos de casamento, para se dedicar em exclusivo à família e à filha. Sem emprego e com o curso por concluir, Florêncio viveu dos rendimentos familiares.
Em meados da década de cinquenta, o casal fixou residência em Lisboa. Foi durante os primeiros anos de casamento que a personalidade de Florêncio começou a sofrer importantes transformações ideológicas, no sentido de uma consciencialização que o fez aproximar do ideário de esquerda. O jovem estouvado, entre humanista, idealista e artista, falho de sentido material, ganhava sentido prático da vida. Durante os longos períodos de doença lera sofregamente autores e obras que o atraíam cada vez mais para o mundo das artes e humanidades. O convívio com o sogro, Rudolfo Almeida Abreu, homem culto e feroz opositor ao regime de Salazar, tornou-se um elemento decisivo no processo de viragem. No fundo, foi graças às longas conversas travadas com o sogro que Florêncio descobriu a sua verdadeira interioridade e a sua vocação profissional, após anos de inscrições, interrupções e transferências de cursos. O professor primário Rudolfo Almeida Abreu chegou a ser preso pela PIDE na década de 1950 e foi defendido no Plenário do Porto pelo advogado republicano Dr. António Macedo. Absolvido, recebeu uma indemnização de 70.000$00, num processo que fez aproximar Florêncio dos círculos da família da esposa.
Em Outubro de 1957, aos trinta e três anos, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto. Seis anos volvidos, em 1963, terminou o curso de Arquitectura, com média de 14 valores. Aluno distinto e premiado em 1962 (Prémio Mota Coelho), Florêncio iniciou em Outubro de 1963 o seu estágio de arquitectura, por um período de sete meses, no atellier do distinto arquitecto Carlos Loureiro.
Concluído o estágio profissional, em meados de 1964, começou a trabalhar como técnico de condicionamento de ar na Sociedade de Equipamentos Industriais, Lda., graças aos seus conhecimentos de Matemática e Termodinâmica. Entretanto, desde um de Abril de 1967 iniciou serviço, na qualidade de arquitecto contratado, na Repartição de Construção de Casas da Câmara Municipal do Porto. Em Junho de 1968 apresentou-se à prova final do curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto, com um relatório de estágio orientado pelo arquitecto Fernando Távora sobre o Estudo de Renovação do Barredo, tendo obtido a classificação de 16 valores.
Até à data do seu falecimento na cidade do Porto, em 26 de Janeiro de 1981, Florêncio de Carvalho, desenvolveu a sua actividade profissional na Câmara Municipal do Porto. Nas horas de lazer dedicou-se à pintura, caricatura, colecção de recortes de jornais alusivos à Revolução de 1974, desenho de moradias particulares, poesia, montagem de exposições, colaboração com o Grupo de Teatro Experimental do Porto, e direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense.
Entre 1972 e 1975 foi assistente da Escola de Belas Artes do Porto, e de 1973 a 1975 docente do Instituto de Arte, Decoração e Design. Assinou diversos artigos sobre problemas de habitação, publicados na “Revista do Norte” e em “O Primeiro de Janeiro”. No final da década de 1970 participou activamente nos Seminários do Fado de Coimbra (1978 a 1980), tendo cantado na serenata do primeiro certame.
Num dia frio de Janeiro de 1981 rumou ao cemitério de Nevogilde, no Porto, este ribatejano que tendo sido marido, pai, professor, ficou sempre interiormente vagabundo de si mesmo e do seu lápis de artista.
I-Principais trabalhos de arquitectura e artes
-levantamento do alçado da escarpa da Sé do Porto, com vista ao Estudo de Renovação Urbana do Barredo;
-moradia do Dr. Daniel Avelino, em Alpiarça;
-moradia de D. Clarisse Guimarães, no Oásis do Mindelo;
-moradia de Francisco Martins, na Rua da Bélgica, Vila Nova de Gaia;
-moradia de Odete Santos, na praia de Vila do Conde;
-moradia do Engenheiro Vieira Alberto, em Coimbra;
-moradia do Engenheiro Luís Durães, em Caminha;
-casa própria, no Porto;
-casa própria, na praia do Mindelo;
-moradias geminadas para Monteiro da Costa, na Rua Rei Ramiro, Gaia;
-bloco de habitações, na Rua Capitão Pombeiro, Porto;
-bloco de habitações, na Rua Francos, Porto;
-pavilhão polivalente para a Associação dos Construtores Civis;
-capela do Padrão, Matosinhos;
-urbanização LECANORTE, em Verdinho, Gaia;
-cenógrafo, luminotécnico e caracterizador do TEUC em diversos espectaculos realizados em Portugal, Alemanha, Itália e Espanha, durante a 2ª Delfíada de Teatro de 1952;
cenógrafo e caracterizador do Grupo Experimental de Teatro de Lisboa (direcção de António Pedro), e Teatro Estúdio do Salitre (direcção de Gino Saviotti);
-encenação e montagem no Grupo Experimental do Porto (direcção de António Pedro e Correia Alves);
-direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense (premiado em 1961 com a peça Camões no Rossio);
-participação em todas as Exposições Magnas da ESBAP, realizadas entre 1958 e 1963;
-participação na Exposição Arquitectos e Artistas, realizada na ESBAP em 1972;
exposição individual de desenhos e pintura, na Associação Portugal Europa (Porto), em 1979;
-colaboração na montagem da Exposição do Ano Internacional da Conservação do Património Europeu, ocorrida no Museu Soares dos Reis;
-montagem da Exposição das Cidades Geminadas com Liège em 1978, e Exposição do Ano Internacional da Criança (1979, Turim), promovidas pela Câmara do Porto;
-participação no colóquio A Cidade e a Criança, realizada em Turim e Milão em Abril de 1979;
-montagem da Exposição Nacional de Desenhos Infantis, no Clube dos Fenianos, em 1979;
-participação nos Seminários do Fado de Coimbra, realizados em 1978 e 1979;
-autor das medalhas, “Comemoração do 25º aniversário do Clube Invicta de Pesca Desportiva”, e “Prof. Doutor Paulo Quintela”;
-autor do logotipo do Rotary Club Porto/Douro
II-Temas de Coimbra
No curriculum vitae, assinado e datado de “Porto, 7 de Maio de 1980”, página três, o Arquitecto Florêncio de Carvalho reclama-se “autor das músicas e textos de vários fados de Coimbra, editados em disco (...)”, embora não especifique quais sejam esses temas. Gravados em disco apenas se conhecem três temas da autoria de Florêncio, respectivamente Lá Longe ao Cair da Tarde (vulgo Balada de Florêncio), Vento não batas à Porta e Esmeralda Verde.
Vejamos os respectivos títulos e textos em fixação definitiva:
LÁ LONGE AO CAIR DA TARDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1942
Lá longe, ao cair da tarde
Vejo nuvens d’oiro
Que são os teus cabelos
Fico mudo ao vê-los
São o meu tesoiro
Lá longe ao cair da tarde.
Lá longe, ao cair da tarde
Quando a saudade
Se esvai ao sol poente
Como canção dolente
De uma mocidade
Lá longe, ao cair da tarde.
Quanto à melodia, a viúva, Dra. Lucília Abreu, informa ter ouvido ao marido que esta balada fora composta nos tempos em que estudou no Liceu Sá da Bandeira de Santarém (1935-1942). O título deve corresponder ao incipit (1º verso da 1ª estrofe, tal qual era habitualmente designado pelo autor). Tema arqui-regravado e de tal maneira banalizado que apenas aconselhamos os registos de António de Almeida Santos (1961) e Joaquim Matos (1981).
VENTO NÃO BATAS À PORTA
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: 1ª quadra de Júlio Brandão, adaptada por Florêncio; 2ª quadra de Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1951
Vento não batas à porta
Que ela julga que sou eu!
Saudades da mocidade
(Ai) De um amor que já morreu.
Não vás contar tuas mágoas
Às pedrinhas do ribeiro;
Chorando ao pé de quem chora
(Ai) Chora a gente o dia inteiro.
Ária estrófica de tipo classizante, estruturada em introdução, 1ª quadra, separador, 2ª quadra e conclusão. A melodia corresponde à segunda estadia do cantor em Coimbra, iniciada em 1951. Foi composta entre 1951. A versão mais conhecida corresponde ao registo efectuado em 1952 por Fernando Rolim.
ESMERALDA VERDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1952
Conheço a “esmeralda verde”
Verde de água marinha;
Nenhum verde é como o verde
Dos teus olhos Joaninha.
Conheço a “esmeralda verde”
Verde da água marinha.
(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim;
Saudades da mocidade
Que eu trago dentro de mim.
(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim.
Espécime singelo, concebido propositadamente para imitar as composições populares (quantos falsos populares não tem a CC?), pretendeu ser uma evocação de Joaninha, a famosa protagonista de “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett. A gravação que mais respeita a versão original é a efectuada por Fernando Rolim em 1960.
III- Documentos e fontes
Testemunho oral, prestado pela Dra. Lucília Abreu a António M. Nunes, em Fevereiro de 2000 e 5 de Julho de 2000.
Processo Curricular (do Arquitecto Florêncio de Carvalho), Porto, 7 de Maio de 1980.
Teatro degli Studenti dell’Università di Coimbra, Setembre 1952 (programa).
Theatergruppe der Coimbraer Studenten, 1952 (programa).
Teatro de los estudiantes da la Universidad de Coimbra, 1952 (programa).
“Visitas guiadas e projecção de filmes na Exposição do Património Arquitectónico Europeu”, in O Primeiro de Janeiro, de 16 de Março de 1977.
“I participanti al convegno dei sindaci delle grandi città del mondo”, in Torino Notize, nº 5, de Maio e Junho de 1979.
“Serenata na Sé Velha. Ponto alto do Seminário sobre o Fado de Coimbra”, in Jornal de Notícias, de 21 de Maio de 1978.
“O fado de Coimbra ou a propósito do semi-silêncio dos rouxinóis do Mondego”, in Expresso, de 11 de Fevereiro de 1978.
III Seminário do Fado de Coimbra, 24 e 25 de Maio de 1980 (programa).
Diversas fotografias cedidas pela Dra. Lucília Abreu.
Testemunho oral prestado pelo Eng. Mário Castro, em 31 de Maio de 2000
Testemunho do Dr. Fernando Rolim, em Setembro de 2004.
Entrevista prestada pelo Prof. Doutor António Brojo a António Nunes em Junho de 1992.
CORREIA, João de Araújo – “Florêncio Neto de Carvalho. Evocação”, Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto, Nº 10, Outubro de 1997.
Ficheiros e documentos do Coronel José Anjos de Carvalho
IV – Agradecimentos
Dra. Lucília Abreu, Coronel José Anjos de Carvalho, Dr. Augusto Camacho Vieira, Doutor António Pinho de Brojo, Dr. Fernando Rolim.
António Manuel Nunes (texto de 2000, actualizado em Maio de 2005)
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