Era uma vez... ele há teorias e teorias
I - O mito fundador da Canção de Coimbra, por António M. Nunes
I - O mito fundador da Canção de Coimbra, por António M. Nunes
(o esboço original deste texto foi apresentado na galeria de exposições da editora Minerva Coimbra, em 17 de Abril de 2001, nas comemorações do 17 de Abril de 1969; foi ainda apresentado como lição na Universidade da Terceira Idade, intitulada “Canção de Coimbra. Das Origens à actualidade”, na Biblioteca do Museu Machado de Castro, Coimbra, no dia 25 de Fevreiro de 2003. A lição foi ilustrada pela Dra. Ana Sadio (guitarra) e duas cantadeiras do Grupo Folclórico de Coimbra que a meu pedido interpretaram Fado Atroador, Noite Serena, Fado de Coimbra, Ó Querida Gosto de Ti e Filhas do Guadalquivir)
As origens da Canção de Coimbra (CC), vista na qualidade de foro estético nascido em Coimbra após a Revolução Liberal de 1820, são relativamente obscuras. O que temos são arquivos falhos de documentos, cronistas que não se preocuparam em registar os acontecimentos, protagonistas que tardam em desenlaçar-se do anonimato. Os primeiros passos da CC mergulham na sombra, confundindo-se com a Música Tradicional de Coimbra.
De acordo com o relato mítico, a certidão de nascimento da CC começaria com Augusto Hilário da Costa Alves, nascido à Rua Nova, Freguesia da Sé, Viseu, em 7 de Janeiro de 1864, filho de António da Costa Alves e de Ana de Jesus Mouta. Filho de mãe solteira, Hilário foi abandonado na roda pela progenitora, pelas cinco horas da madrugada do mesmo dia 7 de Janeiro de 1864. Só em 8 de Junho de 1883 seria oficialmente perfilhado. Decorre da urdidura do mito que a “bastardia” que afectou o nascimento de Hilário também contaminou as origens da CC. Esta seria uma não filha de Coimbra, localmente perfilhada por Hilário, após a legitimação parental do próprio Hilário.
Além de Hilário, António e Ana tiveram outros dois filhos, António Pais e Carlos Alberto, em data anterior ao casamento. Ana dedicava-se às lides domésticas e auxiliava o marido no botequim anexo à casa de moradia na Rua Nova. Hilário frequentou o Liceu de Viseu e em 12 de Outubro de 1886 matriculou-se como aluno voluntário nos preparatórios médicos da Faculdade de Matemática da UC. Data de 3 de Outubro de 1892 a sua primeira matrícula na Faculdade de Medicina. Durante os dez longos anos de permanência em Coimbra, habitou sucessivamente a Rua da Trindade, Largo da Feira, Rua dos Estudos, Rua Larga, Largo do Observatório e Travessa de São Pedro.
Nos primeiros anos de Coimbra, Hilário acamaradou com o guitarrista-serenateiro Jaime de Abreu. Remontará a este período (1886-1889) a aprendizagem do bandolim de cordas de tripa e a participação nas serenatas estudantinas dirigidas por Jaime de Abreu. Nos tempos livres dedicou-se ao teatro amador, e em Março de 1887 apareceu ligado à Sociedade Serões Dramáticos de Celas. Tendo aderido ao protesto contra o Ultimato Britânico, colheu aplausos na peça O actor e seus vizinhos, comédia filantrópica exibida no sarau literário do Teatro Sousa Bastos em 12 de Março de 1890.
Sem abandonar a “carreira” de actor amador, o percurso de vida de Hilário mudou decisivamente no ano lectivo de 1890/1891. Formado em 1889, Jaime de Abreu saiu de Coimbra em Dezembro de 1890, deixando espaço aberto a Hilário. Ao longo de 1890/1891, Augusto Hilário frequentou os círculos de Manuel Mansilha, guitarrista que ensinou ao jovem viseense os rudimentos de dedilhação do cordofone. Hilário aventurou-se na dedilhação da guitarra e no canto serenil, iniciando o périplo dos teatros, casinos, praças e ruas.
Na Primavera de 1894 conviveu assiduamente com o guitarrista Antero da Veiga e numa noite de serenatas improvisou o Fado Serenata no Largo de São João de Almedina. Beberrão, boémio, galanteador, repentista de redondilhas, frequentador de prostíbulos, Hilário colaborou nas Fogueiras de São João da Alta, sendo muito popular entre as tricanas. Cabral de Almeida, em nota biográfica, divulgada no jornal Nova Geração, de 3 de Abril de 1896, empolava a faceta máscula do guitarrista, sugerindo-o como “enfeitiçador de tricanas”. Imagem que só na aparência revestia novidade, pois Jaime de Abreu já a cultivara na década anterior. Entre 7 e 14 de Julho de 1894 abrilhantou sessões de fonógrafo Edison na Associação Recreativa da Praça do Comércio (Praça Velha) e gravou ao vivo, em cilindros de cera, o Fado Serenata e outras árias. Entre Março e Julho de 1895 compôs os rudimentos do Último Fado.
Individualmente ou integrado no elenco da Tuna Académica (TAUC), Hilário percorreu diversas casas de espectáculos. Nos inícios de Março de 1895 actuou em Lisboa (Cf. Jornal do Comércio, de 8/03/1895). Na noite de 10 de Março de 1895 foi apoteoticamente consagrado no palco do Teatro D. Maria II, por ocasião da homenagem nacional a João de Deus Ramos. Por 2 de Junho de 1895 cantou “fadinhos e canções populares” no Ateneu de Lisboa, data em que lhe foi ofertada a derradeira guitarra. Nos ínícios de Agosto de 1895 actuou no Casino Mondego da Figueira da Foz, acompanhado ao violão pelo viseense Dr. Alberto Ponces de Carvalho (Cf. Correspondência de Coimbra, de 10/08/1895). Nos dias 21 e 22 de Março de 1896 acompanhou a Tuna ao Teatro Nabantino, em Tomar. Tocou e cantou ainda no Porto (Agosto de 1895), Viseu (Carnaval de 1893), Leiria (1/02/1896), e Espinho.
Barítono expressivo e de recorte ultra-romântico, abusando até ao limite dos vocalizos lamentosos e choramingões, Hilário foi basicamente um guitarrista de “sol-e-dó”. O seu desempenho, menos virtuoso do que o do seu homólogo activo no Porto, Reinaldo Varela, andou muito próximo daquilo que nos é dado escutar nos registos fonográficos de Avelino Baptista e António Batoque.
Hilário inseria-se numa tradição local onde os serenateiros eram chamados a desempenhar simultâneamente múltiplas funções:
-tocar de improviso, sentado com o cordofone sobre a perna esquerda, ou em andamento, com o instrumento supenso por um cordel. O esquema de digitação mais empregue nestas situações era o toque ao rasgado, ou o pontiado singelo, assente na alternância da tónia e dominante (vide gravações de Francisco da Silveira Morais e Paulo de Sá, nas vozes de Paradela de Oliveira e Elísio de Matos; idem, de Lucas Junot);
-improvisar quadras alusivas ao momento (céu estrelado, noite luarenta, enamoramento, beleza feminina), com recurso à quadra de sete pés;
-cantar a solo;
-improvisar melodias adequadas aos cenários vividos durante a “velada” nocturna.
O período tradicionalmente considerado a idade da fundação (1890-1896) nunca foi apresentado pelos cronistas da CC como “década de ouro”. Quanto às árias rotuladas de “grandes clássicos”, nenhuma é anterior a Manassés de Lacerda – activo em Coimbra entre 1901-1904 -, sendo todas elas cronologicamente posteriores à morte de Hilário.
A quem serviu a confusão entre a história da CC e a hagiografia romantizada de Augusto Hilário? As narrativas contadas pelos antigos estudantes de Coimbra a propósito da história da CC, no tocante às suas origens e percursos coincidem com o mito hilariano. Isto é, para compreendermos a tessitura do mito hilariano, afigura-se pertinente indagar como foi operada a gestão da imagem de Augusto Hilário após a sua morte. Como facilmente se pode constatar, todos os “contadores da sua estória” iniciam a hagiografia hilariana com o apócrifo “Fado Hylario Moderno”, espécime não anterior a 1904, e convertem invariavelmente a sua voz de barítono em primeiro tenor! Esta gestão tem sido “repartida” entre os cultores da CC e os fadistas activos em Lisboa, tendo os últimos inventado a sua própria versão literária, sendo a mais conhecida da lavra do letrista Gabriel Marujo (letra que tem sido invocada a titulo de fonte documental por estudiosos universitários como Maria Eduarda Cruzeiro, e entre 1976-1979 no contexto de “restauração da praxe”, nomeadamente a copla “Ai, o Hilário disse um dia”).
Hilário inventa um estilo vocal que lhe há-de sobreviver. A estética hilariana resvala para o melodrama xaroposo, uma lamentação incontida, um chorinho patético, uma invenção do cantar triste[1]. O chorinho hilariano parecia aproximar-se da estética usual no Fado de Lisboa, ilusão que ajudou a encurtar no plano simbólico as distâncias entre os dois géneros.
Cabral de Almeida, no Nova Geração, de 3 de Abril de 1896, recordou: “Ouvi o Hilário chorar ao som da sua guitarra, ao mesmo tempo que afirmava, rapazes, para mim a guitarra é a vida”. António Egas Moniz, aluno que foi de Medicina entre Outubro de 1891 e 31 de Julho de 1899, conheceu bem Hilário nas digressões da Tuna e nas serenatas da velha Alta. Os ais neumáticos, prolongados e lamentosos de Hilário faziam “delirar as tricaninhas gentis” e tiravam da cama os estudantes adormecidos[2].
Nem sequer nos é dado saber se Hilário mantinha traços da pronúncia viseense. Admitimos que sim, particularmente na enfatização das sibilantes. A melancolia hilariana era bem filha do seu tempo. Falava dos jovens vencidos pela vida, da morte. Nem só em Coimbra e Lisboa se carpiam fadistas e serenateiros. No longínquo Brasil, surgira pela década de 1880 uma forma vocal e instrumental lamentosa, a que se deu o nome de Chorinho. No México tornara-se moda os serenateiros chorarem as desilusões amororosas através do canto. O sofrimento passara a reclamar-se uma forma de prazer.
Com poucas excepções – Cândido de Viterbo, Francisco Caetano, Edmundo Bettencourt, Tomáz Alcaide, Agostinho Fontes, Manassés de Lacerda –a maioria dos cantores que entram na CC até aos anos de 1920 juram fidelidade inquebrantável à estética vocal hilariana.
Constituirá realmente o fado-serenata, entendido como subgéro da CC, uma radical novidade artística? Nos meios académicos, talvez. O “fado-serenata” hilariano era uma ária destinada a solista masculino, em compasso 2/4 e tom de Fá Maior, silábica, com uma só parte musical. Não só não tinha duas partes musicais, como acontece com o apócrifo “Fado Hylário Moderno” que tantos aplausos colheria no século XX, nem era estrófico (modalidade onde se pretendeu radicar a suposta “essência” da CC). Quer isto significar que eram necessárias pelo menos duas quadras de redondilha maior para se cantar integralmente toda a melodia sem repetições.
Uma das mais importantes novidades musicais desta época, a Balada de Despedida dos Quintanistas, fora estreada no Teatro Sousa Bastos, na noite de 24 de Março de 1892 (música do Padre Dr. João Antunes, letra de Alberto de Oliveira). A popularidade atingida pela balada de 1892 foi tal que rapidamente se tornou conhecida em todo o país, tendo gerado imitações nos liceus nacionais e na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Desta matriz derivam todas as baladas de despedida de quintanistas que ainda hoje se cultivam em Coimbra, sendo de salientar que as referidas baladas eram inicialmente estreadas em casas de espectáculos com solistas, coros e orquestra.
Filho da CC, pois nela se iniciou e dela se aproveitou para chegar aos grandes palcos, Augusto Hilário apresentou-se como fadista e como fadista foi entendido pela sociedade do seu tempo, sobretudo pela comunidade fadística lisboeta que passou a ler os convívios havidos em 1895 como um acto de vassalagem da CC à história do Fado de Lisboa (Assim, Luís de Ataíde, “Hylario”, jornal O Fado, nº 13, Anno 1, 9 de Julho de 1910, pág. 1). As suas quadras repentistas, posicionadas entre o gosto popular e os quadros mentais do Ultra-Romantismo, debitam as belezas da noite, o amor incompreendido, o desespero ante a juventude esvaída, a alucinação delirante dos caixões, vermes, mortalhas e corpos putrefactos.
Mas nem só de quadras se tecia a veia poética de Hilário, tendo este assinado abundantes décimas no mais acalorado estilo lisboeta. A CC começava a ser lentamente penetrada pelos referentes do decadentismo, da morbidez, do pânico da tuberculose. Havia quem morresse jovem, vitimado pela tísica e pela sífilis. Outros havia, que não morrendo jovens, se compraziam patologicamente em imaginar a morte. Um imaginar que era dor-prazer, expressa em caixões, vermes e mortalhas.
Aos 32 anos ainda se era considerado jovem em Portugal? Certamente que não. Tal como o seu amigo Antero da Veiga, Hilário foi considerado um trovador popular. A sua produção poética, simples e ingénua parecia traduzir “a alma do povo”. Em tempos de nacionalismo fervoroso, e no rescaldo do Ultimato Britânico de 1890, cantar redondilhas ao jeito popular parecia lenitivo redencionista.
Ausentes os registos documentais, a história da CC passa a ser confundida com o percurso de vida de um estudante morto aos 32 anos (Viseu, 3/04/1896). A morte de Hilário gerou impressionante histeria nacional, logo vertida em hilariomania. O Tango fez o mesmo com Carlos Gardel e o Fado de Lisboa com Maria Severa. Três géneros musicais que sendo diferentes, sonham com um passado idealizado. Morto jovem, mitificado e eternizado, Hilário constitui a cicatriz miraculosa e redentorista de um mundo perdido. Deificado, o rosto de Hilário paira sobre o devir da CC como mortalha de inexcedíveis virtualidades. Inultrapassável e insuperável, nada restaria aos vindouros que imitar uma estética congelada, uma espécie de eterno retorno que torna a CC refém de qualquer futuro[3].
O mito hilariano resiste ao mais empedernido cartesianismo nivelador da produção cultural, opondo-lhe o primado das emoções e sentimentos. Inumado no cemitério de Viseu (inaugurado em 1856), a campa de Hilário continua a acolher romagens, epitáfios e homenagens. O jazigo individual encena incessantemente a singularidade do morto, periodicamente rememorado e homenageado. Dissimulado o corpo, restam fotografias, uma guitarra, partituras, crónicas jornalísticas, uma biografia mitificada[4].
Após diversas romagens ao jazigo de Hilário (6/05/1964; 30/06/1979; 1/11/1987), a Academia de Coimbra persiste em não levantar o luto que carrega desde 1896, oficiando liturgias onde o morto se converte em invocação paradigmática para o presente.
Incorpora e tonifica o mito hilariano uma guitarrilha de Lisboa, de anatomia arcaica, oferecida pelos herdeiros ao Museu Académico de Coimbra, em 24 de Junho de 1967. De imediato convertida na “guitarra do Hilário”, sabemos de fonte segura que entre 1890 e 10 de Março de 1895 o cantor utilizou outras guitarras, sendo conhecida a fotografia de uma delas que se pode situar claramente no rescaldo da “guitarra inglesa”, com rosácea na boca e voluta em flor. A derradeira guitarra de Hilário foi-lhe ofertada por um grupo de sócios do Ateneu Comercial de Lisboa, em 2 de Junho de 1895, data de uma actuação do cantor naquela instituição. Agradecido, Hilário escreveu no envelope que trazia o cartão de oferta da guitarra a quadra “Já tenho mortalha nova/Para mais vos agradar/Oh vermes da minha cova/Oh virgens do meu altar”[5].
O cordofone, fabricado pelo construtor Augusto Vieira, tem caixa piriforme, tampo de casquinha, seis ordens metálicas, chapa de leque, escala em ressalto com 17 pontos, boca redonda e voluta de caracol. Tem quase dimensões de requinta, apresentando um comprimento total de 74 cms, 36,5 cms de largura de caixa e 5,5 cms de ilharga.
Para os veneradores de Hilário, mais do que o derradeiro cordofone dedilhado pelo cantor-guitarrista, a guitarrilha entrada no Museu Académico de Coimbra em 1967 é uma relíquia sagrada. Passou a ser vista com os mesmos ingredientes utilizados para compôr a imagem da não menos mítica Maria Severa e da sua falsa guitarra. Dito isto, talvez se consiga entender melhor o irresistível fascínio que a derradeira guitarra utilizada por Augusto Hilário tem merecido junto de certas franjas de entusiastas do Fado de Lisboa. Ela seria bem a prova documental irrefutável de que em 1895 Hilário se autoproclamou “fadista” perante os auditórios fadísticos lisboetas, e o elo de ligação da invocada transição do Fado de Lisboa para o chamado “Fado de Coimbra”, conferindo ao primeiro legitimidade para falar em nome da CC e narrar a sua “estória”.
O mito das origens da CC encerra ambivalâncias de difícil descodificação. Autoproposta como linguagem simbólica do Amor, a CC arrisca oficialmente laivos de erotismo claramente másculo. Hilário/Eros, símbolo de uma Sociedade Académica falocrática? À semelhança de Eloin e de tantos outros deuses geradores como Zeus, Hilário foi andrógino, na medida que em não necessitou de parceira para procriar o “filho”. Na teogonia hilariana, o criador é simultaneamente macho e fêmea, o que de acordo com os mitos primitivos não quer significar homossexualidade.
A contradição reside no facto de a prática da CC traduzir simbolicamente fortes laivos culturais femininos/matriarcais ocultados em imagens de virilidade. Afastados da mãe biológica, os estudantes regressavam ao colo de outra mãe: a Universidade, a Alma Mater, em cujas tetas, diziam, bebiam o leite do saber e da fertilidade. Ao longo de todo o século XIX, a entrada nesta segunda mãe espiritual fazia-se através da Porta Férrea e do ritual do canelão, disfarçando mal um incesto ritualizado. Ao longo dos anos de curso, os estudantes cultores da CC reproduziam consciente ou inconscientemente referentes matriarcais: Minerva, Sapiência, Alma Mater, a viola toeira, a guitarra, a Fonte do Castanheiro, a Lua, a Noite, as Estrelas, a Capa. Terminado o curso, os estudantes voltam a nascer, adultos e integralmente nus, rasgando as vestes juvenis. Lidam mal com o afastamento da Mãe e tentam regressar periodicamente em épocas festivas e jantares de curso (Cf. António M. Nunes, “As praxes académicas de Coimbra. Uma interpelação histórico-antropológica”, separata da Cadernos do Noroeste, Vol. 22, Braga, Universidade do Minho, 2004, págs. 113 e ss.).
Não deixa de ser curioso verificar que os cultores da CC irradicaram todos os instrumentos de conotação masculina (o bandolim, o violão de cordas de aço, o rabecão), tendo sublimado apenas elementos femininos (a guitarra, a viola). O discurso erótico subjacente às origens da CC querendo ser poderosamente viril, é em boa verdade masculino/feminino. Os temas cultivados, os poemas cantados, falam-nos do ancestral culto da deusa-mãe, da não aceitação da ausência materna, compondo imagens substitutivas (Maria de Nazaré, Alma Mater, Guitarra, Viola, Lua, Estrelas, Noite, Fonte, Rua, Janela, Morte, Saudade).
Compreender Hilário obriga a operar a recontextualização desta figura no seu tempo. A década de 1890 assistiu à afirmação do “reaportuguesamento” da arte em Portugal (Ramalho Ortigão, Alberto de Oliveira, Afonso Lopes Vieira), e da invenção do processo que conduziria às fictícias “casa portuguesa” e “guitarra portuguesa”. O nacionalismo encontrou forte costela musical nesta década, bem presente na produção coimbrã (ou destinada ao público conimbricense), com Antero da Veiga, António Rodrigues Viana, Condessa de Proença-a-Velha, José Viana da Mota, Alberto de Morais e Alexandre Rey Colaço (este com ligações a Antero da Veiga e ao arquitecto Raul Lino).
Como expressaram estes compositores o seu “amor” pela “nação”, neste caso mediado pela interpelação do regionalismo conimbricense, numa década de acentuados melindres anti-britânicos gerados pelo Ultimatum de 1890? Abandonada a Viola Toeira, cujo timbre e dedilhação poderiam remeter para um cunho estético regionalista, o regional não se poderia exprimir por via da tão celebrada guitarra. Tanto se utilizavam em Coimbra tipologias da chamada “guitarra de fado” (tipo Lisboa), como da Guitarra do Porto, além de variantes como as de duas bocas. Os violeiros e guitarreiros locais estavam mesmo neste período a inventar o primitivo modelo da Guitarra de Coimbra. A afinação natural, nada tinha de coimbrã, sendo utilizada no repertório fadístico convencional, nas serenatas, nos salões, nas romarias e nos bailes aldeãos.
No fundo restava fazer em Coimbra aquilo que o pintor José Malhoa, Silva Porto e o ceramista Jorge Colaço vinham a executar com imenso sucesso, para gáudio das elites citadinas, glosando teimosamente o pincel naturalista, quando o impressionismo e o simbolismo se haviam tornado moda: o regional poderia ser atingido pelo tema (título da peça), ou pela convocação de elementos musicais regionais (folclore: viras, marchinhas, chulas, fandangos, polcas), da feitura de quadras em redondilha maior, ou mesmo da “bricolage” de rapsódias como pretendeu anos mais tarde o ultranacionalista e colaborador do Estado Novo, Armando Leça.
Que repertório interpretava mais comummente Hilário? Todas as peças vocais do repertório hilariano foram transladadas em solfa no Cancioneiro de Muzicas Populares, dirigido por César das Neves e Gualdino de Campos (Porto, Tomo I, 1893; Tomo II, 1895; Tomo III, 1898), havendo notícia de “Às Estrelas”, “Filha do Guadalquivir”, “Fado Serenata do Hylario”, “O Ultimo Fado (do Hylario)”, “Fado Pósthumo do Hylario” (vulgo “Fado do 28”) e “Fado da Figueira da Foz”, podendo acrescentar-se sem grande margem de erro o grosso dos temas de serenata então em voga na cidade, também eles presentes no citado cancioneiro, a par de outros “recolhidos” pelo Dr. Manuel Maria Corte-Real (“Os Teus Olhos”, “Pudor e Compaixão”, “Canção das Morenas”).
E não andaremos longe da verdade se acrescentarmos que Hilário terá entoado a saga portuense da “Rosa Tyrana”, uma canastreira do antigo mercado do Bolhão, cega por enciumados amores do conversado. O repertório hilariano apresenta acentuado hibridismo em termos de assuntos literários, de compassos e de tonalidades. Algumas peças são autênticos fados corridos (“Às Estrelas”, “Fado da Figueira da Foz”), com a estranha particularidade de “Às Estrelas” ter duas partes musicais (a 1ª, da década de 1840, ainda com movimento coreográfico, e a 2ª um acrescento hilariano que contém a estrutura básica do “Fado Antigo” gravado por Paradela). Há igualmente canções fadográficas, como o “Fado Serenata”, o “Último Fado” e “Canção das Morenas”. Depois, insinuam-se temas oriundos de salões e teatros como “Os Teus Olhos” (letra de Garrett) e autênticas serenatas (“Filha do Guadalquivir”, de Adelino Veiga).
Afinal, se o repertório hilariano é conhecido e passível de reconstituição, porque razão nenhum grupo activo a partir de 1978 se lançou na sua reconstituição? Que utilização prática se fez da palestra realizada por Divaldo Gaspar de Freitas no Arquivo da UC em Julho de 1988 (Cf. “Origens do Fado de Coimbra dividem os investigadores”, Comércio do Porto, 2/08/1988; “Afinal de quem é o Fado Hilário?”, Jornal de Coimbra, 20/07/1988). Quem beneficiou da leitura pedagógica proposta por José Anjos de Carvalho e Fernando Murta Rebelo, “Evocação de Hylario na Coimbra do seu tempo. Origem e evolução do chamado Fado Hilário”, Lisboa, Edição da SHIP, 1998 (palestra ralizada em 13/12/1996)?
Chegados a este ponto, uma questão premente se nos impõe: teria a CC sobrevivido sem Augusto Hilário? A resposta só pode ser positiva. A CC teria continuado a sua afirmação/construção, porventura menos colada ao imaginário tomado ao vocabulário, gestos e ícones do Fado de Lisboa. O histérico triunfo da hilariomania afigurou-se demasiado fugaz. O seu estilo de digitação de guitarra em afinação natural, destituído de harmonização, ficou irremiavelmente condenado a partir de Artur Paredes. As suas lamentosas modulações vocais encontraram em António Menano, Lucas Junot e Paredela de Oliveira os derradeiros grandes sacerdotes.
Ironia do destino, aquilo que se canta em louvor de Hilário como sendo o “Fado Hilário” é em bom rigor um apócrifo não anterior a 1904! O mito hilariano vive muito da alimentação artificial de pretensas evidências que não são mais do que construções esteriotipadas que se nutrem de um aflitivo desinteresse pela verdade e pelos contributos da investigação. Podemos falar mesmo de uma obstinada recusa da verdade, reclamada em nome da manutenção de uma pseudo autenticidade.
[1] Augusto Morna, cantor de serenatas activo entre 1909-1913 recordava em 1955: “Era moda ter mágoas, e ser triste era um dos primeiros predicados para ser poeta...”. Cf. Augusto Morna, “Naquele tempo... que não foi o nosso!”, em Bodas de Diamante do Orfeon Académico. 1880. Coimbra. 1955, Coimbra, 1955, pág. 56.
[2] Egas Moniz, A nossa casa, 2ª edição, Estarreja, Câmara Municipal de Estarreja, 1987, págs. 290, 324, 327. (1ª edição de 1950).
[3] Dos muitos que escreveram sobre Hilário, convoco apenas Teixeira de Pascoais, memorialista que em rememoração de 1928 não deixava de comentar o seu próprio texto com um lúcido “que absurdo!”: Era o Hilário. Vi-o, pela última vez, à lus da Lua, naquela noite mitológica. Mas guardo, na lembrança, intacto, o belo painel nocturno. O luar não tem uma nódoa, nem o perfil do Hilário tem uma linha apagada. E a voz extraordinária, ouço-a ainda nas alturas daquela noite mitológica; uma dessas noites que não passam e pertencem (que absurdo!) ao dia de hoje. Teixeira de Pascoais, Livro de memórias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pág. 117.
[4] Em Arouca foi detectada na década de 1950 uma cantiga popular, “Ó Hilário, Pum!”, cuja letra satiriza o mito: Hilário, quando morreu/Disse à mãe, do coração/Que lhe botasse a guitarra/Ao cantinho do caixão. Vide Vergílio Pereira, Cancioneiro de Arouca, Porto, Edição da Junta de Província do Douro Litoral, 1959, pág. 725, com solfa e letra.
[5] Numa das suas actuações em Lisboa, Hilário deu a conhecer uma outra quadra mórbida, depois incorporada por Manassés de Lacerda no Fado Hilário Moderno: Ela há-de contar aos vermes/Já que eu não posso falar/Segredos luarizados/Da minh’alma a dormitar. Cf. D. João da Câmara, “O Hylario”, in Branco e Negro. Semanario Illustrado, Anno I, nº 1, 5 de Abril de 1896, págs. 12-13, com uma fotografia de Hilário.
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