terça-feira, junho 28, 2005

Era uma vez ... ele há teorias e teorias

III. “In Principio” era o evolucionismo, por António M. Nunes
(lição proferida em 25 de Fevereiro de 2003, na Biblioteca do Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra, a pedido da Universidade da Terceira Idade)

Até 1978 não suscitou dúvidas entre os teóricos do Fado a classificação da CC como produto subordinado do Fado de Lisboa.
Torna-se necessário recuar até finais do século XIX e operar uma revisitação dos modelos biologistas e positivistas em voga para se entender as linhas de força de um tal discurso. É que a influência dos modelos centífico-biológicos monogenistas, aplicados à análise das práticas culturais, foi determinante para a construção de um mito que, sendo visceralmente ideológico, não radicou em sólidas bases musicais.
O problema dos géneros (ou tipos) foi redifinido no século XIX, à luz dos novos dados da biologia e da medicina. Etimologicamente género significa família, agrupamento de seres ou indivíduos portadores de características comuns. Com este sentido, género, grangeou sucesso no campo da história natural. Na segunda metade do século XIX, e por extrapolação, passou a ser aplicado ao campo das ciências sociais e humanas.
O género divide-se em espécies, e estas em subespécies ou formas.
A emergência, afirmação e processo de estudo de um dado género pode cindir-se em três momentos cruciais: a) certos objectos ou produtos dotados de traços semelhantes agrupam-se sob uma denominação geral; b) esta denominação converte-se em paradigma estável, depreendida do exame das similitudes observáveis na série de produções sujeitas a cotejo; c) todas as obras produzidas são comparadas com o tipo, por forma a serem enquadradas na categoria geral e confirmarem o paradigma.
Quando, muito tardiamente, se começou a reconhecer existência ao “chamado Fado de Coimbra” – produto singular na cidade, que não se confundia com a música tradicional cultivada pelos seus habitantes - , não restaram quaisquer dúvidas. Não se tratava de um género literário-musical autónomo, mas sim de exótica variação de um género préexistente conhecido por Fado (de Lisboa).
A questão fundamental é saber como chegaram aqui o musicólogo Ernesto Vieira e os jornalistas João Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel.
A proposta de utilização de tipologias aplicadas às artes estava definida por Hippolyte Taine desde 1867 (De l’idéal dans l’art, Paris, Germer Baillière, 1867, págs. 81-83). Dito por palavras mais simples, o estudioso dos fenómenos artísticos deveria estabelecer classificações idênticas às empregues pelos botânicos (Hippolyte Taine, Philosophie de l’art, Paris, Librairie Germer Baillière, 1872, pág. 21).
Em finais do século XIX e inícios do século XX, pululava entre as elites portuguesas a ideia de que a identidade nacional estaria em crise.
Organicistas e positivistas defensores de uma autêntica profilaxia nacional, deparavam-se com a crescente proliferação de um género musical suspeito: o Fado de Lisboa. Ali pareciam vicejar meretrizes, faquistas, criminosos, alcoólatras, contaminados pela sífilis, o erotismo, o prazer desregrado. O Fado de Lisboa era um campo temido e incompreendido, onde o racionalismo e o positivismo não conseguiam penetrar. Falava-se da Severa e do Conde de Vimioso como “casos singulares”, numa convocação de mundos possíveis que pareciam tolher qualquer lógica de verificação. De certa forma, o voyerismo oitocentista era ainda uma espreitadela romântica, fascinada pela loucura, sífilis, delinquência, morbidez e patologias várias.
Alguns cultores do Fado forjavam letras inquietantes, apostrofando a monarquia, o rei, o clero, a corrupção política, a vida miserável dos grupos marginais, glorificando o republicanismo, o socialismo e os direitos do operariado. Pior do que tudo isso, certas letras exaltavam Satanáz.
Muitos dos intelectuais portugueses que escreveram sobre as eventuais origens do Fado, estavam marcados por pressupostos biológico-racionalistas e deterministas. Não se curava de inteligir ideossincracias e diferenças, mas de codificar racionalmente. A quase totalidade dos discursos antifadófilos, produzidos sobre as origens, afirmação, expansão e função do Fado de Lisboa são de teor eugénico e moralista. O recurso à musicologia só interessava na estreita medida em que poderia corroborar a morbidez e papel nefasto de tal género junto do povo. O que aconteceu foi uma deslocação de uma manifestação cultural para o campo científico, campo manipulado pelas representações ideológicas dos alvitristas do Fado. Contrariamente ao que então se pensava, o cientismo, na sua agressividade totalitária, não explica todo o cultural e social.
A agravar a situação, os estudos musicológicos indiciavam uma origem estrangeira para o Fado: o lascivo lundum afro-brasileiro. Em tempos de crença pessimista na decadência da “raça”, o factor estrangeiro assumia elevada importância, pois a identidade nacional autóctone nada teria a ver com a invasão de géneros musicais exógenos. O Fado, saído das tabernas e prostíbulos, nada mais era que um vírus social a extirpar. Daí, também, o longo ataque dos folcloristas contra o Fado. Não menos importante para a compreensão das condenações e apreensões então vividas pelos moralistas, olhando ao caso lisboeta, o Fado era visto como um cancro citadino, numa época em que certos literatos procediam abertamente à diabolização da sociabilidade urbana.
O “povo” sadio e tumefacto de energias destinadas a retemperar Portugal estaria nos campos/aldeias. Os cultores do Fado, acantonados nas tabernas e prostíbulos da velha Lisboa, esses não eram “povo” mas “escória” humana.
Na óptica dos primitivos estudiosos do Fado, a realidade era entendida monisticamente. O todo tinha precedência sobre as partes. Ia-se a Herbert Spencer buscar a ideia da passagem do homogéneo ao heterogéneo, com trânsito dos estádios “inferiores” para os “superiores”.
Aliás, a evolução da natureza dava a impressão de incluir um certo grau de diferenciação. Estabelecido o tipo, importaria, à luz dos estreitos quadros mentais da época, debuxar aquilo que permanecia constante na variação. Acrescentava-se a Spencer a leitura apressada das obras de Ernest Haeckel – definição de um tipo primiévico a partir do qual se gerara uma evolução sujeita a leis naturais.
Da mesma forma que Haeckel dizia ter encontrado no “Pithecantropus Alalus” (homem macaco mudo) – na realidade pura invenção – o elo de ligação entre o macaco e o homem, Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel viram em Augusto Hilário a ligação directa e consumada entre o Fado de Lisboa e o “chamado Fado de Coimbra”. Mas não se curava apenas de assinalar variedades à Lamark. Chegara o momento de filiar as espécies umas nas outras (Darwin).
Extrapolando dados das ciências naturais, o Fado de Lisboa era agora visto como um corpo biológico. O seu funcionamento orgânico admitia a existência de partes que lhe eram subordinadas (o chamado Fado de Coimbra). Ora, do ponto de vista biológico, a relativa autonomia dos orgãos não pode ferir o todo que é o corpo. As partes constitutivas de um corpo são ancilares, fenecendo-lhes liberdade plena.
A CC nada mais seria que um orgão dotado de relativa autonomia, conforme as necessidades permitidas pelo corpo (Fado de Lisboa).
O Fado evoluira, não em termos de ruptura, mas para se conservar e aperfeiçoar. De tal aperfeiçoamento resultara o chamado Fado de Coimbra. Glosando René Quinton e Le Danteck, a pretensa “evolução” observada em Coimbra não alterava o fundo da espécie. A pseudo evolução tinha uma função precisa: reforçar o valor cultural e social do Fado, visto ser cultivado por uma elite social constituída por estudantes universitários. De acordo com René Quinton e a sua “lei do meio vital”, diríamos que o Fado de Lisboa, uma vez transposto para Coimbra, se mantivera igual a si próprio.
Era extremanente sedutor escrever que um género (genótipo) então considerado quístico e virulento gerara um herdeiro culturamente sadio (quando o grosso dos estudos sobre a hereditariedade negava os descendentes sãos. Recorde-se o clássico estudo do norteamericano Richard Dugdale sobre as patologias hereditárias da Família Jukes, 1877). Ali estava a prova irrefutável de como um produto considerado socialmente maléfico e patológico se redimira por via de Coimbra. Ora, a fazer fé nos dogmas do evolucionismo, a partir do momento em que o Fado se aperfeiçoou por via da sua “transformação” no “chamado Fado de Coimbra”, o Fado deixou de existir como produto patogógico que era!
Por conseguinte, escrevia-se e pensava-se dogmaticamente que Fado só existia um, o de Lisboa. No que respeitava à sua natureza e essência, o Fado mantinha-se constante, variando apenas algumas qualidades acessórias. O biologismo aplicado à leitura das origens do Fado tornara-se explicação autosuficiente e paracientífica, convertendo os seus estudiosos numa espécie de médicos do social. Os primeiros estudiosos do Fado procuravam fazer a anatomia da sociedade e dos seus males, comprazendo-se aqui e além com uma Severa ou um Hilário.
Postas as coisas desta forma, não supreende que Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel tenham incluído a CC pelo meio das suas histórias do Fado, negando-lhe identidade e autonomia. Ou que tenham recenseado nos seus inventários de cantores, instrumentistas e fados, nomes e títulos que pouco ou nada tinham a ver com o Fado. As datas, nomes, títulos temáticos, representavam para Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel o mesmo que as células e neurónios significavam para os biólogos e médicos.
À primeira vista podem ser apontadas plurímas similaridades entre objectos da civilização material, espécies animais e vegetais, produtos culturais e espirituais. Mas, tais redes de similaridades não transformam um ser humano num chimpanzé, o Fado de Lisboa na CC, o Tango no Fado de Lisboa.
As propostas de investigação utilizadas por Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel assentam em classificadores rectilíeos de banda estreita. Os dois jornalistas coleccionaram fados e fadistas com o mesmo empenho com que os evolucionistas do século XIX catalogavam borboletas, lapas, caranguejos, e apetrechavam reptilários para efeitos de dissecação laboratorial.
Lamentavelmente, a CC não foi imune a esta maré de dislates, onde biologismo e darwinismo social fizeram razias triunfais. O estigma lançado sobre a CC entre finais do século XIX e inícios do século XX é, antes de mais, um equívoco pretensamente científico, determinístico e causal (as qualidades do Fado de Lisboa ou tipo matricial transferir-se-iam para o sucedâneo). À luz desta visão instrumentalizada e mecanicista, que tem tanto de violentadora como de virtual, reduz-se o sócio-cultural ao biológico, forjam-se similitudes.
Estranhamente, estes relatos ficcionais conseguiram escapar a qualquer lógica de verificação durante quase cem anos. Aprisionada num enclave dourado, transformada em reserva de caça do Fado de Lisboa, a CC, viu-se privada de identidade e de autonomia.
Numa época em que a linguagem das ciências naturais fixava o conhecimento do sócio-cultural, a retórica analógica negava perversamente as diferenças. A estas práticas discursivas, ou a estes “saberes” ideologicamente orientados, chamaríamos hoje “linguajares”. Linguajares preconceituosos que passaram ao lado de qualquer problematização estético-musicológica, minados pelo finalismo tautológico e autista.
Bem mais grave, a hiperbolização do dogma pseudocientífico grangeou autoridade moral, de tal arte, que extrapolando as chamadas leis da selecção natural, o mais forte (Fado de Lisboa) reclamava despojar agressivamente o mais fraco. Os discursos produzidos pelos primeiros curiosos do Fado, reclamando-se autosuficientes, encerram ambivalências e vulnerabilidades. Ora exaltam, ora condenam, por via da patologização.
O problema das origens da CC tem uma importância relativa, não devendo ser erigido à categoria de questão maior. A perseverar-se no emprego do paradigma das ciências naturais, o biológo argumentaria que as espécies podem sofrer localmente mutações no núcleo genético, originando alterações morfológicas. Por extrapolação, poderíamos efectivamente continuar a dizer que um produto cultural original se pode transformar, seja por anagénese, seja por gladogénese.
Assim: quem considera que o Fado de Lisboa reuniu condições genéticas para se transformar num outro género musical, continuará a sustentar esta hipótese; quem considerar redutoramente a guitarra como critério incontornável das práticas fadísticas, tenderá a ver no foro musical coimbrão um “fado”.
O problema das origens da CC não é, em si mesmo, derimível em função de postulados biologistas e palentologistas. Não se trata de classificar e de arrumar por camadas geológicas, por sucessão de faunas e de floras, nem de imaginar uma qualquer filogenia, por forma a estabelecer uma árvore genealógica coerente (mais desenvolvimentos em Ana Leonor Pereira, Darwin em Portugal. 1865-1914, Coimbra, Almedina, 2001).
E se o naturalismo não procede, muito menos se poderão aceitar os derivados do darwinismo social. Os “mecanismos” que regem a natureza não são os mesmos que “regem” os fenómenos sócio-culturais.
Na sua vulnerabilidade e arrogância, os discursos ideológico-biologistas provocaram danos quase irreparáveis ao ser da CC, ainda bem palpáveis no crepúsculo do século XX: a) negando-lhe a autonomia e o direito à identidade; b) servindo-se dela para reforçar o valor do Fado de Lisboa, todas ou quase todas as vezes que em Portugal se moveram campanhas para denegrir o Fado; c) privando-a de vocabulário próprio; d) arrastando-a para polémicas antifadísticas alheias ao seu ethos; e) fazendo crer, em proveito próprio, que as diferenças entre os dois paradigmas eram apenas de grau e não de natureza (postura que entre finais do século XX e inícios do século XXI “legitimaria” a utilização da Guitarra de Coimbra por cerca de 50% dos agentes lisboetas e a inclusão da obra de Carlos Paredes nas histórias do Fado em 2004).
A arbitrariedade do paradigma consagrado nos últimos cem anos é bem a velha metáfora do cão que o dono passeia preso pela trela. Cumpre ao dono refrear os ímpetos do canídeo, ora encurtando ora alongando a trela. A “folga” concedida foi do estilo “vara curta”, pois a corda apenas revelou liberalidades no tocante ao “meio ambiente regional” (o meio físico e social faria variar o produto original) e ao quilate poético-literário (a invocada superioridade literária coimbrã).

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