segunda-feira, agosto 01, 2005

Tradições Académicas Portuenses:
Breves notas, vividas, de uma ‘História’ em criação
*

Armando Luís de Carvalho HOMEM

À memória do Doutor Luís Vasco
Nogueira Prista († 2004), lente
de Farmácia, universitário
«à part entière»

I. Dos Clérigos ao Carregal: um Estudo na Cidade

É uma praça. Como tantas outras. Quadrangular. Trapezoidal, digamos. E orientada, grosso modo, segundo os pontos cardeais. Nos vértices e num dos lados paralelos vêm convergir outras praças e diversos arruamentos; enquanto que outro dos lados é todo ele preenchido pela embocadura de mais uma rua, que vai estreitando, qual funil, para terminar num pequeno largo. Diversos nomes teve já a nossa praça: Largo do Carmo, Praça da Universidade, Praça Gomes Teixeira. Mas para o habitante médio da Cidade tem sido, e por certo será, «os Leões», nome advindo da brônzea fonte ornada de quatro regorgitantes espécies da soberana espécie que lhe está ao centro.
Desloquemo-nos para a placa central da praça; contornemos a fonte pelo lado Leste e, voltando-lhe as costas, olhemos para Sul: à nossa frente, ‘monopolizando’ esse lado, está um maciço edifício onde alternam o cinzento da pedra, o branco da tinta e o verde dos portões. Para os mais idosos dos habitantes do Burgo, é, ainda hoje, «a Universidade». O qualificativo nunca teve total razão de ser. Berço de uma das mais antigas Escolas Superiores portuenses (a Academia Politécnica, na raiz da Faculdade de Ciências), jamais o edifício terá albergado a totalidade do Ensino desse nível, quer antes, quer depois de 1911. Não tendo nunca total razão de ser, não tendo hoje (salvo por ‘inércia’ terminológica) qualquer razão de ser, o qualificativo teve no entanto, e por muito tempo, suficiente razão de ser: albergando a Faculdade de Ciências, naquela Casa sediavam também a Reitoria e diversos Serviços Centrais (o que aconteceu até aos anos 70); e o Salão Nobre respectivo foi durante décadas a «sala dos actos» do Estudo Geral portuense.
Quanto ao mais, tudo se processava por ali perto: no largo ao fundo da referida rua em funil situava-se a Faculdade de Medicina (sucessora da Escola Médico-Cirúrgica), tendo ao lado um hospital, também Escolar. Dos Clérigos ao Carregal: num limitado espaço, duas das Escolas ‘fundadoras’, os Serviços Centrais, as sedes dos Organismos estudantis, cafés e restaurantes de frequência acentuadamente universitária, pensões, residências, casas alugando quartos... Tudo, ou quase tudo, nesse limitado espaço, acrescido de dois eixos que o prolongavam: por Cedofeita, até à Rua dos Bragas (sede, até 2001, da Faculdade de Engenharia); pelo Rosário / Boa Hora, até à Rua Aníbal Cunha (sede da Faculdade de Farmácia); pelo caminho ficando uns tantos lares e as sedes dos Serviços Sociais e Desportivos. E mesmo as Escolas de mais tardia fundação (e tomando os anos 70 como terminus ante quo) aí se iriam situar: Economia (1953; funcionou na «águas-furtadas» da Faculdade de Ciências até ao Outono de 1974) e Letras (1962; a este respeito não deixa de chocar a localização ‘excêntrica’, na Quinta Amarela [a caminho do então suburbano Carvalhido], da Faculdade de Letras em parte do seu primeiro tempo de vida [1919 ss.]. ‘Excenticidade[s]’ [que outras houve...] sempre impeditiva[s] de uma perfeita integração da Escola na UP; e à[s] qual[is] não será estranho o seu fim [1928-1931], sem glória nem grandeza).
Dos Clérigos ao Carregal (e prolongamentos)...: num limitado espaço todo um viver estudantil. Que a dado momento se terá plasmado em práticas bem próprias: o uso de um traje, o comemorar condigno do final do ano lectivo e do termo dos cursos, o preenchimento dos tempos livres (?) com determinadas actividades artísticas – mormente teatrais e musicais, sendo de salientar dentro destas últimas certas formas de música vocal-instrumental (tunas, orquestras de tangos), as danças e cantares regionais ou, finalmente, um determinado género, tipicamente estudantil, assente numa dada forma de cantar e num típico suporte instrumental: o «Fado de Coimbra». ‘Imitação’ dos comportamentos estudantis da mais antiga Universidade portuguesa ? Um ‘purista’ afirmá-lo-ia sem hesitar. Mas tudo depende do que se entender por ‘imitação’. No fundo, será de surpreender que uma comunidade estudantil, vivendo numa Cidade não-universitária mas confinando-se espacialmente, ‘reproduzisse’ certas práticas ? O mesmo não se ia passando em tantos Liceus da Província (mormente no Interior-Norte e Centro) e, mesmo no Porto, no mais ‘provinciano’ dos seus Liceus masculinos (o Alexandre Herculano) ? Nada tem pois, quanto a mim, de menos ‘digno’ que o Porto tivesse a tradição que foi tendo[1], os Organismos que se foram criando (um Orfeão, uma Tuna, uma Orquestra Universitária de Tangos [estas duas mais tarde integradas no Orfeão], um Teatro Universitário [1948], mais tarde um Coral de Letras [1966]), que esses Organismos procurassem um público ‘médio’, no País ou fora dele: as «digressões» processavam-se aonde quer que houvesse «núcleos de Portugueses espalhados pelo Mundo» – África(s), Brasil, Estados Unidos, pontualmente Venezuela; na Europa ficavam-se pela vizinha Espanha: a ‘descoberta’ do Velho Continente viria bem mais tarde: com efeito, só no final dos anos 70 os Organismos musicais começariam, com certa regularidade, a deslocar-se a países europeus, já para actuar junto de comunidades de emigrantes (e aqui havia apenas o precedente do Orfeão, França/1967), já para participar em Festivais de Coros ou de Folclore (e aqui o papel de pioneiro cabe ao Coral de Letras, Escócia /1970 e Itália/1971).

II. O Estudo Pela Cidade...

Mas um dia... já nem tudo vai estar entre os Clérigos e o Carregal. Uma população escolar que cresce, exigências científicas e pedagógicas que acrescem... O espaço universitário distende-se. E ainda que pelo caminho tenham ficado projectos de expansão na zona histórica (cadeia da Relação, mosteiro de S. Bento da Vitória...), o ‘crescimento’ verificar-se-ia alhures: com a construção do Estádio Universitário, logo prolongada pela instalação do Jardim Botânico na Casa Andresen (anos 40/50), esboça-se o pólo do Campo Alegre; e o da Asprela inaugurar-se-á em Junho de 1959 com o Hospital de S. João, nova sede da Faculdade de Medicina. E pela Cidade iriam também surgir novas residências...
E, depois, a comunidade estudantil dos anos 60 já não iria ser a mesma. Repare-se: o traje académico, na feição que adquirira no início do século XX (uma batina estudantil está próxima de uma sobrecasaca oitocentista), andava em paralelo com o uso quotidiano do «traje de passeio» (leia-se: fato e gravata). E o jovem comum propendia a afastar-se de tal vestuário. Consequência: as marcas exteriores de uma certa Tradição começam a sair do quotidiano e a só surgir em Abril / Maio, aquando da «Queima». Os próprios membros dos Organismos Artísticos tenderam então a envergar a capa e batina apenas aquando de apresentações públicas, qual ‘traje de cena’, como a casaca dos músicos «clássicos». E mesmo as actividades destes Organismos estavam em vias de deixar de dizer algo a boa parte da população estudantil, em tempos de declínio de interesse pela música coral, de ‘explosão’ do pop/ rock ou de posse, cada vez mais frequente, de uma formação musical autêntica por estudantes universitários[2]. Por outro lado, o «Fado de Coimbra», num meio muito mais intérprete que criador [3], tendia a estagnar; quaisquer tentativas de fazer algo de diferente[4] – e falo por experiência própria – chocavam com a difícil receptividade do público, a começar pela própria ‘primeira fila’ que eram os Colegas de Organismo; sempre ‘caía melhor’ o «Passarinho da Ribeira»...
Finalmente, o ‘radicalizar’ de posições na viragem dos anos 60 para os 70 levou a esquerda estudantil à contestação global da Tradição, identificada com «conservadorismo / reaccionarismo / elitismo / marialvismo castrado»..., quando não com adesão ao regime político do tempo; contestação larvar a partir de 1968; contestação frontal a partir de 1971: em Abril deste último ano, e na sequência de acontecimentos que aguardam ainda o seu narrador, teria lugar, em clima extremamente tenso e com cumprimento de apenas uma parte do programa, a última «Queima das Fitas». Clima tenso, mas que logo se distendeu; aparentemente, afinal, as Tradições pouca falta faziam...; e quase todos os que em –71 as defenderam logo se desinteressaram[5]. E tudo pareceu terminar...

III. Um Estudo a cada Esquina da Cidade ?

Assim, 1974 não vai representar nada em matéria de Tradições Académicas, desaparecidas, como se viu, cerca de 3 anos antes. A década de 70 é portanto, praticamente toda ela, de ‘vazio’ nesta matéria.
E é nos anos 70 que a Universidade do Porto se expande decisivamente, esboçando o facies actual: cresce a sua população, fundam-se Escolas e Serviços, projectam-se e constroem-se edifícios, tudo em torno dos três pólos já indicados. Ao mesmo tempo que ao Porto se estende a Universidade Católica, que na Cidade surge o Ensino Superior Privado e Cooperativo e que diversas outras Escolas se criam ou reconvertem, vindo a dar origem ao Ensino Superior Politécnico; e, também aqui, a iniciativa estatal se tem visto complementada pela privada e cooperativa. E todas as novas (ou transformadas) Escolas foram tendendo a aderir a práticas e festejos entretanto ressurgidos (mormente a «Queima das Fitas»), ‘federando-se’ a diversidade dos Estabelecimentos na reaparecida designação de «Academia do Porto».
Tal ressurgimento teve as suas primeiras manifestações na Primavera de 1977, quando o Orfeão Universitário e Associação dos Antigos Orfeonistas da UP comemoraram os seus 65.º e 10.º aniversários, respectivamente, com 2 Saraus, realizados no Rivoli e no Coliseu. Estas iniciativas foram pacíficas (o Orfeão só em 1976 não realizara o seu Sarau Anual no Rivoli). O mesmo se não dirá de algo ocorrido no ano seguinte: estudantes de algumas Faculdades lograram realizar uma «Semana Académica»; apesar de contestada, a iniciativa teve continuidade, logo em 1979 se recuperando a designação «Queima das Fitas». Ressurgimento este, portanto, em termos não propriamente pacíficos. No fundo, e por banda de sectores estudantis (e político-partidários) opostos, uma contestação à contestação de uns tantos anos antes... Nesses primeiros tempos, as restauradas Tradições estão assim longe de unir a população estudantil, bem pelo contrário.
E hoje, mais de uma dúzia de anos decorrida ?
Para alguém com a minha idade (40 anos), o meu percurso estudantil (Liceu Alexandre Herculano / Faculdade de Direito de Coimbra / Faculdade de Letras do Porto) e a minha vivência das tradições musicais a sensação é, não raro, de alguma perplexidade. Os anos de interrupção fizeram perder a memória de comportamentos, práticas, símbolos; ‘codificação’ não existia; a bibliografia era escassa e inencontrável; e a transmissão oral (perguntar ao pai, ao avô, ao irmão mais velho, a algum professor mais antigo...) não resolve tudo... Daí que alguém do meu tempo amiúde se veja confrontado com práticas, por assim dizer, ‘exóticas’: das ‘fantasias’ vestimentais, a peditórios na via pública para... viagens de finalistas (!!!!), até ao ‘ressuscitar’ do menos simpático dos aspectos da Tradição – o gozo aos caloiros (a «praxe» stricto sensu), coisa de ténue prática no Porto (salvo no Orfeão Universitário), que de qualquer modo desaparecera das Faculdades muito antes de 1971 e que hoje se exerce em termos não raro pouco dignificantes, chegando-se inclusivamente (coisa impensável há 30 ou 40 anos) a perturbar o funcionamento de aulas ! Por outro lado, o número dos indivíduos e instituições abrangidos por este universo de comportamentos é hoje consideravelmente mais lato: onde tínhamos uma Universidade com umas tantas Faculdades temos hoje uma «Academia» com uma multidão de Escolas: estatais, privadas e concordatárias, universitárias e politécnicas. É corrente, nos mais díspares locais da Cidade, cruzar-me, em certas épocas do ano, com grupos de estudantes trajados ao rigor, ostentando insígnias de cores inesperadas; de onde, a natural pergunta: – Que Escola ou Instituto por aqui se localizará ?!
Numa «Academia» com uma tal dimensão e dispersão serão ‘lógicas’ manifestações unitárias ‘monstras’, como um Cortejo mantido em dia de normal laboração, ou uma serenata «monumental» que já chegou a realizar-se na Avenida dos Aliados, precedida de’passagem’ de música rock (gravada), não sei se para ‘criar ambiente’ ?!
Um ‘veredicto’ final condenatório ? Só que um criador cultural, e logo no âmbito das Ciências Humanas e ainda por cima historiador, tem que manter a serenidade das suas apreciações. Por isso finalizarei com duas sucintas notas, serenas:

a) Se uma população de milhares e milhares de estudantes – e mesmo descontando o factor ‘propaganda’, que leva as Escolas jovens a reproduzir práticas com uma longa tradição nas mais antigas – assume determinados comportamentos é porque eles lhe dizem algo. Não caiamos agora no simplismo do diagnóstico de «alienação» (de tantos milhares...) ou, nos tempos que correm, em elementares acusações de estratégias partidárias, conservadoras ou não.

b) Em certas semanas lectivas, alguém que é docente universitário há mais de 18 anos, que enquanto estudante viveu as Tradições e com mágoa assistiu ao seu desaparecimento, vê-se rodeado de alunos, finalistas, nomeadamente, que lhe pedem um autógrafo nas fitas, o apadrinhamento da imposição da cartola, lhe parodiam as aulas na «sessão de serrote», lhe solicitam a presença em múltiplos encontros de confraternização... Um tal docente, vivendo um ofício de árduo exercício num ambiente não raro propenso a tensões, não pode, nessas semanas, deixar de se sentir acrescidamente compensado, deixar de sentir... «uma terna consolação» (Eça de Queiroz).

Porto, Primavera de 1991

* Boletim da UP, 9 (1991, Jun.), pp. 29-33. As observações que este artigo consubstanciou integravam-se na preparação de um volume – Universidade do Porto (1911-1991): História, Estórias – a coordenar pelo autor e a publicar em 1992, no âmbito das actividades do Projecto ALMA MATER (coord. Luís V. N. Prista) e da FUNDAÇÃO GOMES TEIXEIRA (coord. do Vice-Reitor Eduardo Oliveira Fernandes). Nos meses finais de 1991, estes dois Mestres (que em mim depositaram inesquecível confiança) desvincularam-se dos cargos e funções que exerciam; de onde, a não-concretização do projecto. De qualquer modo, reitero agora os agradecimentos então feitos pelas colaborações que recebi: Reitoria, Fundação Gomes Teixeira, Órgãos Directivos das diferentes Escolas, Serviços e Organismos da UP, Dr.ª (hoje Prof.ª Doutora) Amélia Polónia da Silva (Fac. Letras) e Dr.ª (hoje Prof.ª Doutora) Amélia Ricon Ferraz (Fac. Medicina).

[1] Deixo de lado toda e qualquer explanação ‘erudita’ sobre a cronologia de tais Tradições: com isso se não compadecem os limites de espaço, o tempo breve que tive para redigir este texto e o carácter mais vivencial do que histórico-sociológico que lhe quis imprimir. Direi, no entanto, que as raízes são remotas, anteriores, até, à criação da Universidade. Como renuncio a qualquer abordagem das (problemáticas) especificidades da Tradição portuense: não raro esse tipo de preocupação redunda num nada saudável ‘bairrismo’; salientarei apenas, e a esse propósito, a maior precocidade na adaptação do traje académico ao uso por estudantes do sexo feminino; porque, com efeito, os Organismos portuenses foram mistos mais cedo; salientarei também uma ‘originalidade’ portuense que consistia no uso frequente da pasta com fitas ou grelo sem o traje académico; e salientarei ainda que, encravada numa grande Cidade, a população estudantil nem sempre terá sido vista do melhor grado fora dos limites da sua micro-«cidade universitária»: de longa data, por exemplo, os portuenses ‘vernacularmente’ se queixavam dos engarrafamentos de trânsito provocados pelo Cortejo da «Queima das Fitas», isto nos anos 50, bem antes de outras formas de contestação.
[2] Uma ‘saída para a crise’ terá então estado na melhoria do reportório e da preparação vocal dos coros universitários, agora crescentemente voltados para a polifonia, para J. S. Bach ou para a música popular com harmonizações de Fernando Lopes-Graça, isto num processo iniciado ca. 1967 por Günther Arglebe no Orfeão e por José Luís Borges Coelho no Coral de Letras e prosseguido mais tarde por Mário Mateus (1973 ss.) no primeiro destes Organismos.
[3] E se alguns guitarristas e cantores de ‘Velha Escola’ ainda procuravam seguir a lição de Artur Paredes / Edmundo Bettencourt, a grande maioria ficava-se pelo mais ‘cinzento’ repertório coimbrão dos anos 40/50; no máximo da modernidade, chegar-se-ia ao conteúdo do álbum Coimbra Quintet, gravado em Madrid para a PHILIPS em 1957, por Luiz Goes / António Portugal / Jorge Godinho / Manuel Pepe / Levy Baptista.
[4] V.g. incluir no reportório temas do ‘último’ Luiz Goes (discografia 1967 ss.), de José Miguel Baptista, de José Manuel dos Santos ou de António Bernardino, e isto para já não falar das «trovas» de M. Alegre / Portugal / Adriano, as quais mantinham o suporte da guitarra, contrariamente às «baladas» de José Afonso.
[5] Só o Orfeão manteve, e por mais algum tempo, o uso da capa e batina; ainda que em 1972 ou –73 usar o traje na rua pudesse comportar a audição de alguns ‘piropos’...

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