sábado, novembro 05, 2005


Segundo dia das III Jornadas de Temática Musical promovidas pela AATUC. Avelino Correia, moderado por Heitor Peixoto, vai usar da palavra. Segue-se o texto da sua conferência, amavelmente cedida para este Blog.
-
TAUC
UMA QUESTÃO DE CONCEITO ENTRE AS ORIGENS E AS MEMÓRIAS

As memórias que os finais da década de 70 e princípios da de 80 me trazem são, por um lado a razão de continuar parte deste emblema, por outro a necessidade de procurar respostas ou simplesmente questionar o conceito.
Os Festivais de Tunas na Huesca de 1980, Sevilha de 1982 e iguais certames em Santiago, por exemplo, mantêm a imagem da inquietação que me tem acompanhado neste percurso em que ainda escuto a crítica embuçada acerca da austera diferença tantas vezes pseudo, pseudo, pseudo... com que nos apresentávamos no seio daqueles que sim, nunca perderam a goliardia; transformaram-na, no sentido da acção dinâmica que a evolução social impõe e em que a música pode igualmente sofrer mudanças.
Sobre o pouco que se sabe acerca da origem histórica das Tunas é consensual que, sobretudo nos estudos de investigadores espanhóis, este fenómeno de importante relevância como movimento sócio-cultural tem as suas raízes na prática de alguns clérigos medievais que, tendo abandonado a vida religiosa e portadores de excepcionais dotes poéticos e musicais se entregavam a uma vida de boémia e prazeres mundanos de toda a espécie. A estas personagens, cultivadoras da contrafacção da música religiosa, tantas vezes a transformando directamente em signos de verdadeira leviandade moral, era dado o nome de Goliardos.
O séc. XII, com a criação de Estudos Gerais nas principais cidades europeias desencadeia uma forte movimentação de estudantes que, tal como os referidos clérigos, percorriam as povoações tocando, cantando, comendo e bebendo num divertimento polvilhado de não menos desacatos e provocações amorosas.
“Foram, na verdade, os estudantes os sucessores, os herdeiros, os continuadores da goliardia, quando, por finais da Idade Média, se esbateu o fenómeno dos clérigos refractários errantes e permaneceram apenas, na vida boémia e ambulante, os escolares, que durante tantos séculos com aqueles se confundiram, quer na vida boémia propriamente dita, quer na essência conceptual”. (Sardinha 2005: 83)[1]
Grande parte destes escolares, de reduzidas capacidades económicas e à semelhança dos referidos clérigos, andava de terra em terra cantando e tocando, normalmente em pequenos grupos, animando as gentes, fazendo serenatas, namorando solteiras e casadas, e pedindo para seu sustento dinheiro ou géneros. Sendo a sopa o prato vulgarizado e principal sustento das gentes rurais, era também uma dádiva comum levando a alcunhar os estudantes (pobres) de Sopistas.
A Península Ibérica conviveu durante séculos com estes grupos de estudantes boémios e galanteadores tendo a partir de certa altura passado a designá-los por tunas. Razões para esta nova designação, embora sem um justificado fundamento, só podem prender-se com o significado de Tuna mais ou menos consensual em vários dicionários, como tendo a ver com vida ociosa, vadiagem e mais recentemente a referência directa aos grupos musicais de estudantes. Tome-se como exemplo o Vocabulário Português e Latino do padre Bluteau que, em 1713 dá o significado de “andar à tuna” como “andar maganeando”.
Num texto de princípios do séc. XIX citado em Cancionero de Estudiantes de la Tuna pode ler-se: “Podían contarse entre los más osados y impertinentes de la raza humana, llenos de andrajos, rebosantes de buen humor, retozones y licenciosos, com su guitarra al hombro. Son gregários y generalmente circulan en pandilla, y uno de ellos, el gracioso del grupo, pide una dádiva en verso, acompañando sus improvisaciones con la guitarra. Si les permite por ley vagabundear y ayudarse a terminar los estúdios pordioseando por las calles. Muchos llegaram a ser ministros”. (in Sardinha 2005:91)
Outras teorias há que tentam encontrar mais rebuscadas justificações etimológicas mas, no fundamental, entende-se por Tuna neste contexto, um grupo de estudantes boémios deambulando ociosamente por ruas e tabernas, tocando e cantando, com a noite como fim em rondas diversas e serenatas às amadas.
O nascimento da TAUC é registado, em 1888 (Março), como fruto da visita da Tuna Compostelana a Coimbra no início desse mesmo ano. No entanto, e à semelhança das Universidades espanholas onde, como já ficou claro, muito antes da institucionalização das tunas como entidades com personalidade própria já existiam vários tipos de agrupamentos musicais, assim em Coimbra acontecia com os grupos espontâneos de cordofones sem qualquer preocupação em cumprir formalidades oficiais. Em Breve História da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, de António José Soares[2], pode ler-se: “Muitos desses agrupamentos (que se apresentavam, mais ou menos espontaneamente, na Capela da Universidade, na Sala dos Capelos, no teatro académico, nos desfiles pelas ruas da Alta em ocasiões festivas) actuavam, simplesmente, com propósitos musicais, sem intenção de continuidade e sem qualquer preocupação da sua vida se inscrever nas páginas da História...”.
Pode daqui inferir-se que, sem a força da referenciada tradição musical espontânea e o importante papel de instituições como a Assembleia Académica Philarmónica criada no ano lectivo de 1844-45 e a Sociedade Dramático-Musical (1870-1875), não teria possivelmente bastado o sucesso da Estudantina de Santiago para o nascer da então Estudantina de Coimbra.
Não cabendo neste pequeno apontamento fazer a história das tunas ou particularmente da TAUC, fica no entanto a curiosidade, referenciada em “A Academia de Coimbra 1537-1990” (pág. 146) de Alberto Lamy, de esta ter sido conhecida por Jacto e cada um dos seus componentes por Jacobino.
Não obstante terem as responsabilidades e obrigações institucionais levado a uma substancial perda de espontaneidade por parte das Tunas estudantis, apresentando-se num formato do que pode chamar-se expressão codificada do ócio, é um facto que as Tunas espanholas nunca deixaram de, paralelamente ao concerto de salão, manter a o selo goliardo nas actuações de rua com passacalles e rapsódias de cantares populares.
Sei também, por testemunho de alguns a que as décadas de 40, 50 e 60 algum glamour devem, que algumas vezes, em recepções principalmente de vilas e cidades menos habituadas a incursões de artistas Drs, os mesmos, (aproveitando a máxima de que todos que chegavam a Coimbra logo eram Drs.) se passeavam tocando e cantando, pontualmente, pelas artérias principais para deleite das donzelas. No entanto, a nossa TAUC, ainda Estudantina e sob a orientação do Dr. Simões Barbas, realizou a sua primeira exibição em casa do Dr. Joaquim Martins de Carvalho, aquando da festa do seu capelo de Medicina!
Em Saudades de Coimbra, de António José Soares, e com 50 anos de informação mais ou menos pormenorizada, apenas se encontra em Maio de 1901 uma notícia que relata o facto de a Tuna ter tocado pelas ruas da cidade mas, neste evento, acompanhada pelo “Grupo Musical José Maurício” formado por elementos futricas.
Pad’Zé, em 1903 na “Revista do Civil”, escreve numa quadra, em que não é difícil aceitar a carga crítica pela conhecida personalidade do autor, o seguinte:

Não há coisa mais galante
Que um tuno a tocar viola
Para músico ambulante
Só lhe falta ter sacola.

Desde o seu nascimento até hoje, nunca dispensou um maestro, mesmo no tempo, o meu, em que a principal preocupação era discutir se sim, usar calças de ganga como traje, ou quiçá dar um toque à boca de sino às calças do traje clássico e encurtar a batina em jeito de jaqueta ribatejana, o maestro era indispensável mesmo para dirigir o que não precisava de ser dirigido.
Em 1929, estreia em Leiria o Momento Musical de Schubert, que se tornou o indicativo musical da Tuna (50 anos mais tarde eu toquei o Momento Musical como indicativo).
Sobre este pequeno pormenor de repertório apetece-me transcrever, em tradução livre, um excerto de John Blacking da sua obra de referência “How Musical Is Man?”: “A evolução da tecnologia e o aumento do tamanho das sociedades não podem ser tomados como sinais da evolução da cultura em geral ou do potencial intelectual do homem. Uma canção tradicional (africana ou portuguesa) não é necessariamente menos intelectual do que uma sinfonia: a aparente simplicidade dos sons produzidos podem ter subjacentes processos complexos de criação; pode ter sido estimulada para um avanço intelectual no qual o seu compositor viu para além dos limites da sua cultura e foi capaz de inventar uma nova e poderosa forma para expressar no som a sua visão das possibilidades ilimitadas do desenvolvimento”.
Será a tentativa de interpretar, tantas vezes no limiar do penoso para alguns e na descaracterização do conjunto, Bach, Vivaldi, Mozart, Schubert, Kurt Weil, Shostakovich entre outros, o grande objectivo da valorização social e cultural de uma minoria?
A função da música é reforçar, ou relacionar mais as pessoas com certas experiências que tenham sentido na sua vida social. A música não pode mudar as sociedades como as mudam a tecnologia ou a politica. Não pode fazer com que as pessoas ajam sem que elas estejam já social e culturalmente dispostas a agir.
Em 1949 é reorganizada a célebre Orchestra Phitagórica e, num comentário de então, ouve-se: “... pelo entusiasmo dos executantes poderia concluir-se que não era a música “séria” que mais interessava os elementos da Tuna”.
Nos anos 40-50, ao regressar a Tuna duma digressão pelo Oriente, concedeu-lhe o Papa audiência e regista António Rodrigues Lopes em “A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã”: “Porém, em certo momento, os rapazes pediram autorização para tocar e cantar. Sua Santidade acedeu mas, alguém, advertiu que seria apenas “uma interpretação”. “Soaram as guitarras, ergueu-se a voz do cantor e tudo se modificou. Sua Santidade ouve, surpreendido, transportado. Há olhos comovidos, rostos atentos”. Finda a interpretação o Papa levantou-se, abraça o cantor, segura entre as suas mãos as dos guitarristas e deseja ouvir mais. O papa quer ver as guitarras de Coimbra, abraça-as, tange levemente as suas cordas”.
É a Tuna, diferente de todas as outras, que emociona Sua Santidade com o brilho e interpretação delicada dos seus executantes? Certamente no F R A final!
Ainda sobre a Tuna, e não sou eu que o digo, é um prospecto da Universidade:
“Em termos de apresentação e postura em palco não é comparável às conhecidas “Tunas Académicas”.
E porque gosto da Tuna me interrogo desta forma frontal e pública:
Será que esta nobre velhinha nunca teve humildade suficiente para se assumir como verdadeira Tuna, nem coragem que bastasse para se impor como a Orquestra que a Universidade de Coimbra não tem tido?

[1] Sardinha, José Alberto – Tunas do Marão. Vila Verde: Tradisom, 2005
[2] Coimbra : Bib. Municipal, 1962

relojes web gratis