sábado, dezembro 24, 2005

A Canção de Coimbra no século XIX (1840-1900)
(A memória e os sons)
Por António M. Nunes
I. Serenatas
O objectivo que orientou a elaboração da segunda parte deste trabalho teve como escopo proceder ao levantamento de informações alusivas à realização de rituais de serenata e, mais latamente, daquilo que designamos por Canção de Coimbra, com a correlativa individualização de protagonistas, emprego diversificado de instrumetos musicais, gostos de época e repertórios mais praticados. Serviram tal desiderato os livros de memórias assinados por antigos académicos, relatos jornalísticos, roteiros de viajantes, cancioneiros impressos, solfas avulsas manuscritas e, a partir da década de 1840, a imprensa regional periódica centrada em "O Conimbricense", "O Tribuno Popular" e o "Correspondência de Coimbra".

As recensões ao vocábulo serenata nos dicionários e enciclopédias portuguesas são manifestamente pobres e insatisfatórias, sobretudo quando se cura de historiar diacronicamente o fenómeno português.
O “New Grove Dictionary of Music & Musicians”, reeditado em 1980, faculta-nos a possibilidade de mergulhar aprofundadamente nos percursos dos rituais de serenata[1] na Europa.
A palavra latina “serenus” divulgou-se nos países europeus a partir do século XVI: serenata em italiano e português, “sérénade” em francês, “serenade” ou “standchen” em alemão, “serenado” em castelhano. Em certos contextos provinciais portugueses detectamos ainda vocábulos como “ronda” (Lisboa e Estremadura), “serenata dos noivos” (várias províncias), “velada” (serenata fluvial em Coimbra), "violadas"(Beira Baixa), e "fadadas" (região do Marão).
A representação mental da serenata em Portugal foi reduzida à serenata estudantil coimbrã de cortejamento no período do Estado Novo. Para a cristalização deste poderoso "cliché" contribuíram nas décadas de 1940-1950 as transmissões radiofónicas operadas pela Emissora Nacional e, no período 1959-1974, as “serenatas” de figurino conimbricense académico divulgadas pela RTP. Não menos importante, o modelo de serenata habitualmente “autorizado” pelo SNI de António Ferro, incluso nos roteiros turísticos bilingues e trilingues, bem como nos serões culturais de trabalhadores da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho) era apenas o conimbricense de “capa e guitarra”.
Estamos confrontados com uma tirânica e desfiguradora imagem daquilo que foi a diversidade provincial das serenatas urbanas e rurais realizadas em Portugal até finais da década de 1950. O ritual da serenata é anterior ao século XVI. O livro de Gerard Leeu, intitulado “L’Histoire du tresvaillandt chevalier Paris et de la belle Vienne”, datado de 1487, inclui em iluminura uma serenade, onde dois homens tangem instrumentos debaixo de uma janela aonde assoma um rosto feminino[2]. O poeta Sebastian Brant, na obra satírica “A Nave dos Loucos” ("Das Narrenschiff"), datada de 1494, também dedicou alguns versos à descrição de uma serenata. A pormenorização autoriada por Brant aproxima-se de outra elaborada pelo dramaturgo Shakespeare no seu “Two Gentlemen of Verona”, a propósito da deixa de Proteus:

“Visit by night your lady’s chamber window/With some sweet concert: to their instruments/Tune a deploring dump”.

Podemos intentar definir a serenata como um ritual masculino nocturno, lúdico e de cortejamento amoroso, urbano e rural, registado na Europa e em alguns países da América Latina como o México e o Brasil. Os praticantes recorriam a instrumentos variados, com predomínio de cordofones. O reportório era diversificado e eclético. Múltiplas intenções se divisavam, percorrendo os campos do cortejar, da homenagem a noivos, do simples divertimento, até às actividades festivas. Nem sempre ocorria a palavra serenata, podendo os actores exprimir-se através de designações caídas em desuso, que podiam ser rondas, serenins, tocatas, bandolinatas, estudantinas, veladas, nocturnos, violadas e fadadas (Marão).
A serenata era tanto um ritual ou divertimento nocturno, realizada na rua ou debaixo de uma janela, por elementos masculinos apostados em cortejar donzelas, quanto uma forma musical destinada ao canto ou a execução meramente instrumental. O duplo sentido do vocábulo (fazer uma serenata; interpretar um trecho musical afim do ritual da serenata) já nos aparece plenamente definido em 1723, data em que Walther publicou a obra “Musicalisches Lexicon”.
Relativamente ao caso italiano, a serenata nocturna fluvial acha-se documentada para os finais do século XVI e inícios do século XVII, a propósito das cantorias que os gondoleiros venezianos entoavam no percurso dos canais, sendo igualmente comuns em Génova e Roma. Por seu turno, Praetorius, num passo intitulado “Von den Gesangen Welche in Grassaten und Mummerien gebraucht werden: als Giustiniani, Serenata und Balletti” (“Syntagma Musicum”, 1618), informa-nos que as serenatas eram cultivadas pelos estudantes universitários que, circulando pelas ruas à noite, entoavam peças musicais constituídas por três ou mais partes, para deleite das donzelas.
Na prática quotidiana, muitas canções populares ou popularizadas eram adoptadas pelos cultores de serenatas, a exemplo dos “Canti Carnascialeschi” (canções carnavalescas), usadas na Florença do século XVI. O pendor satírico de certas canções utilizadas para realizar serenatas em Itália talvez possa servir de instrumento comparativo para o caso português, tomando como exemplo as peças “Já não podeis ser contentes”, de manifesta crítica à conduta do Cardeal D. Henrique, e a “Flor da Murta”, na qual se aludia aos amores adúlteros de D. João V. E se o “Já não podeis ser contentes” não passa de mera conjectura quanto à probabilidade de ter sido interpretado pelos estudantes de Coimbra, tal se não dirá de “Flor da Murta”, melodia setecentista presente no cancioneiro da cidade mondeguina.
Não dispomos de sólida informação sobre a forma musical dos espécimes a que na segunda metade do século XVI os enamorados italianos chamavam serenatas. O termo seria aplicável a diversas composições polifónicas, particularmente o Madrigal, a Villanella e a satírica Villotta. O italiano Alessandro Stiggio, num livro publicado em 1560 com o título “L’aria s’oscura e di minute stelle”, associa a serenata ao madrigal. Mais ou menos pela mesma época (1575), o músico Antonio Pace incluiu nos seus madrigais uma serenata instrumental (“Hor che le negre piume”), cujas palavras iniciais lembram o soneto de Petrarca “Hor che’l ciel e la terra e’l vento tace”.
Nos séculos XVII e XVIII os espécimes italianos de serenata conheceram a forma de cantatas, prolixamente usadas pela fidalguia frequentadora das cortes, ocasiões festivas, reconciliação de chefes de Estado, entradas solenes e festas de homenagem a embaixadores. Não raro aparecem designadas por “componimento musicale”, “favoletta drammatica”, “aplauso genetliaco”, “festeggio armonico”, etc.. A serenata de corte, à italiana, visando celebrar eventos festivos ou homenagear grandes figuras, foi cultivada na corte portuguesa de D. João V e em Espanha. Este assunto ainda não mereceu uma pesquisa aturada, mas não será inócuo salientar o papel desempenhado por certas famílias aristocratas ibéricas nos contactos estabelecidos com os diplomatas radicados em Roma.
A serenata suscitou o interesse dos compositores eruditos da época barroca, em Itália, Áustria e Alemanha. Tomando como ponto de referência a obra de Mozart, uma serenata durava aproximadamente nove minutos, enquanto peças similares designadas nocturnos podiam atingir cerca de onze minutos de duração. Mozart cultivou árias serenis em “Die Entfuhrung aus dem Serail” e em “Don Gionvani”, tal como Rossini (“O Barbeiro de Sevilha”), Donizetti (“Don Pasquale”), Albert (“Tiefland”), Scarlatti (cerca de 25 serenatas, entre elas “Erminia”, “Polidoro”, “Tancredi” e “Pastore”). A serenata conhecia assim os seus dias de glória no período áureo dos compositores clássicos, integrada em óperas e peças destinadas a orquestra de câmara, a exemplo de Aspelmayr, Boccherini, Dittersdorf, Haydn, Pichl, Punto e Toeschi.
As serenatas mozartianas tornaram-se modelares com a sua estrutura de sonata-allegro, dois momentos lentos alternando com dois a três minuetos, e fechando com um “presto” ou um “allegro molto”. Tanto Mozart como Haydn apostaram na construção de serenatas com inclusão de dois momentos de concerto, um de execução rápida, outro de andamento lento, conferindo proeminência aos trechos instrumentais solados antes da passagem ao minueto seguinte. Na transição para o século XIX, os grandes compositores não olvidaram a serenata. Ela emitiu sinais de vida nas obras de Beethoven (serenata para flauta, violino e viola), Hummel, Kreutzer, Shubert, Brahms’s, Dvorák, Sibelius, entre outros, embora diluída na sinfonia.

A ocorrência do ritual de serenata em Espanha não tem merecido o interesse dos investigadores. A Enciclopedia Universal Ilustrada, Tomo 55, Madrid/Barcelona, Espasa/Calpe, 1927, páginas 479-480, limita-se a invocar a origem italiana do ritual, frisando, no entanto, a disseminação das serenatas por toda a Europa, e o predomínio do emprego de cordofones. O articulista não exemplifica o caso espanhol. No artigo em apreço, procede-se a uma tentativa de tipificação das serenatas, respectivamente Serenata de Rua, Serenata de Salão, Serenata Vocal e Serenata Instrumental.
Não deixa de causar estranheza a pobreza da recensão enciclopédica espanhola de 1927, se tomarmos em linha de conta a multissecular prática de serenatas estudantinas associadas às tunas académicas. De acordo com o investigador de costumes académicos salmantinos, Roberto Martínez del Rio, a serenata amorosa tuna, ou ronda, remonta à Idade Média[3]. Miguel de Cervantes, na obra “La Tía Fingida” (in “Novelas Ejemplares”, II, Madrid, 1975, pág. 299), frisa que a serenata amorosa era uma das primeiras provas de fogo exigidas aos estudantes pobres, pois se achavam impossibilitados de presentear mulheres com objectos caros.
As serenatas estudantinas não tinham unicamente fins de sedução amorosa, servindo frequentemente para homenagear individualidades e instituições. Suprimido o foro privativo salmantino e a obrigatoriedade do antigo uniforme em 1834, a ancestral tradição tunesca desagregou-se. Pela década de 1850, os estudantes de Salamanca procederam à recuperação das tunas (estudantinas de carnaval), e com elas regressaram a animação musical de rua, os bailes, as deambulações e as serenatas. De formação espontânea e destituídas de carácter duradouro, as multitudinárias estudantinas que pulularam em Salamanca ao longo do século XIX apresentam traços comuns com agrupamentos detectados em Coimbra entre o século XVIII e 1890 bem como na Universidade de Santiago de Compostela.
A imprensa periódica coimbrã não recenseia notícias relativas as serenatas realizadas em Espanha. Apenas alude a uma serenata académica dada em homenagem ao reitor da Universidade de Madrid, em Abril de 1865, na sequência da demissão do mesmo reitor.
O ritual de serenata persistiu no México até ao século XX, país onde se manteve a tradição de contratar instrumentistas e cantores profissionais. “Ya me voy para el Laredo” é uma das canções de serenata mexicanas mais conhecidas internacionalmente. Mais a sul, no Brasil, ficou registada a prática de serenatas populares. Os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo (fundada em 1827) também foram cultores de serenatas[4], tendo como menu modinhas e lunduns.
Relativamente a Portugal, os estudos sobre os rituais de serenata realizados até finais do século XX eram raros e muito parcelares. Frederico de Freitas, em "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura", Tomo 16, Lisboa, Verbo, 1994, páginas 1803-1805, pouco ou nada esclarece em termos de leitura diacrónica, ocorrências regionais, instrumentos musiciais e repertórios. Segundo Frederico de Freitas, a nobreza lisboeta do século XVIII incluia nas suas diversões serenatas (serenins). O autor invoca, com propósitos ilustrativos, uma memória do Marquês de Resende (“Descrição do Palácio de Queluz”), onde se fala de serenatas e da existência de uma pintura alusiva a serenatas no tecto do Palácio de Queluz.
A serenata integrava os divertimentos barrocos da alta sociedade setecentista portuguesa, enriquecendo programas onde constavam iluminação, fogo de artifício, repiques de sinos, touradas, outeiros, teatro e salvas de artilharia. Ao longo da primeira metade do século XVIII, coincidindo com o reinado de D. João V, o chamado “Diário do Conde de Ericeira” e a “Gazeta de Lisboa” mencionam festejos na capital e em espaços provinciais onde constam reiteradamente serenatas: nos divertimentos de alguns colégios lisboetas[5], em festejos aristocráticos havidos nos alvores de Julho de 1731, numa visita efectuada pelo arcebispo de Braga a Amarante e a Vila Real no mês de Setembro de 1748[6], nas festas organizadas pelo governador de Bragança em regojizo pelo nascimento do príncipe em 1735[7].
Procurando caracterizar as novas práticas sociabilitárias e os divertimentos lisboetas, pelos finais do século XVIII, a historiadora Maria Antónia Lopes assinala:

“Entre a nobreza havia, por vezes, passeios de barco. Já na segunda década do século a Gazeta de Lisboa informava com frequência que a rainha passeava de barco no Tejo com as suas damas, acompanhada de músicos. Em 1799 Costigan é convidado para uma função na Quinta de um marquês. Às 11 horas da manhã todos os convidados entraram para cerca de doze grandes barcos que o marquês preparara: remadores vestindo uniformes e em cada embarcação um grupo de remadores”[8].

Segundo Maria Antónia Lopes, durante a ocupação de Lisboa pelas tropas napoleónicas comandadas por Junot, o marquês de Fronteira recordava as idas às pescarias, os passeios a cavalo, os banhos na praia da Junqueira e as “serenatas”[9].
O viajante alemão Link, ao percorrer Portugal entre 1797 e 1799, desdenhou da música praticada pelos camponeses (“Voyage en Portugal de 1797 à 1799”, págs. 44-45), anotando a dado passo:

“Acrescentai a isto uma guitarra tão má, que apenas se ouve o ruído da madeira, e podeis formar uma ideia das serenatas que os namorados dão, à noite, às suas belas (...).”

Na cidade do Porto foi hábito frequente realizar serenatas ao longo da segunda metade do século XIX. Guitarristas, cantores, grupos amadores, animavam as ruas do burgo na época estival, com incursões às praias de Espinho, Granja, Leça da Palmeira, Apúlia, e termas das Caldas de Vizela e Pedras Salgadas. Quando em 7 de Dezembro de 1888 a Estudantina de Coimbra (Tuna) se deslocou ao Palácio de Cristal, uma banda de amadores locais brindou os tunos com uma serenata junto ao Hotel Universal.
O guitarrista, cantor e compositor Reinaldo Varela, nascido em Ponte de Lima no ano de 1867, domiciliou-se na cidade do Porto por volta de 1883, na qualidade de professor de instrumentos de corda, guitarrista e cantor. Aí viveu até cerca de 1900, altura em que passou a residir em Lisboa. Bem relacionado, presença assídua nas praias, termas, teatros e salões, Varela recordava ao periódico “A Canção de Portugal. O Fado”, nº 12, de 18 de Junho de 1916, que nas décadas de 1880 e 1890 se realizavam no Porto “serenatas afamadas”.
César das Neves, professor de música no Liceu da Ordem do Carmo, autor de um método de guitarra e recolector do “Cancioneiro de Músicas Populares” (1893-1895-1898), publicou em 1902 um “Compendio de Musica, solfejo e canto coral para alunos de ambos os sexos” (Porto, Livraria Portuense de Lopes & Companhia, 1902), onde transcreve canções da sua própria autoria destinadas a serenatas (Canção Fluvial, Pôr do Sol, Crepúsculo).
Entre finais do século XIX (década de 1890) e a década de 1920, a casa portuense "Eduardo da Fonseca. Armazem de musica, pianos e outros instrumentos", sita na Praça de Carlos Alberto, nº 8, lançou no mercados profusas edições de partituras em folheto volante e em brochuras de 12 peças impressas. Estas edições podiam ser compradas localmente ou encomendadas através de cobrança postal, servindo clientelas do Porto, Coimbra, Lisboa, tunas rurais e urbanas, serenateiros, professores de música, orquestras ligeiras activa em casinos, ensaiadores provinciais de teatro amador e ambulante, filarmónicas e serões familiares ao piano.
Na 1ª série destaquemos a versão primitiva do "Fado Serenata do Hylario" (Ouvi dizer ao luar). Na 2ª série encontramos o "Fado das Três Horas" (Murmura, rio, murmura), e o "Fado Boémio" (Guitarra, minha guitarra) de Varela. A 3ª série integrava "Canção d'Amor" (Já cantam os trovadores), "Fado Monte Estoril" , "Fado Apuliense", "Fado Novo de Coimbra", "Pallidas Madrugadas", e "Fado de Braga".
Este tipo de brochuras estava no auge da moda, oferecendo à clientela um repertório eclético constituído por fados tipo Lisboa, temas no estilo da CC e raríssimas canções populares. Na verdade, o título, em letras garrafais, apostava na publicidade enganosa ao anunciar "12 cantos populares". As melodias vendidas por Eduardo da Fonseca não eram recolhas folclóricas, mas sim repertório eclético urbano de autor, expressamente produzido para consumo urbano, formatado e tornado acessível através da harmonização para piano. E se alguns autores tinham ficado anónimos, outros eram bem conhecidos do grande público como um Augusto Hilário, um Reynaldo Varela ou um Manassés de Lacerda.
A prática da guitarra e dos temas de serenata conheceu nova voga com a fundação da Universidade do Porto. Pela década de 1920 mantinham-se activos diversos nomes, entre eles Luís Eloy da Silva e a formação do cantor Carlos Leal (com discos gravados). Por 1936/1937 actuava regularmente no Porto um grupo musical (Os Samedo), de cujo repertório faziam parte “Rendilheiras de Vila do Conde” e “À Meia Noite ao Luar”. O último espécime foi trazido para Coimbra por estudantes portuenses, por volta de 1937, e ali aclimatado localmente pelo cantor Manuel Simões Julião.
Aquando da primeira edição da "História de Portugal", Joaquim Pedro de Oliveira Martins mencionava “As toadas plangentes, que, ao som da guitarra, se ouvem por toda a costa do ocidente (...), desferidas à noite sobre o Mondego, sobre o Tejo e sobre o Sado”. O livro foi publicado em Outubro de 1879[10]. Na década de 1880 realizavam-se serenatas na cidade de Ponta Delgada, com viola da terra, violão e rabeca, e peças do estilo “Serenata Açoriana”, “Tanchão” (O cantar da meia noite) e “Despedida das Furnas” (Nesta Sintra micaelense). Descrevendo o processo genesíaco de “Serenata Açoriana” (Caíu do céu uma estrela), composta na Primavera de 1887, Antero de Quental elucidava Wilhem Stork em carta datada de 29 de Março de 1891:

“Tendo sido composta há quatro anos, na Ilha de São Miguel, a pedido de um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios musicais, em belas noites de verão”[11].

Pela década de 1890 há notícias de serenatas na doca da Horta (Ilha do Faial)[12] e rondas musicais feitas por tocadores amadores ligados a filarmónicas e actividades teatrais. Nos passeios estivais realizados em barco à vela no canal entre o Faial e Pico, nos primeiros anos do século XX, seguiam grupos de cantores e músicos, interpretando “Noite Serena”, “Barquinha Feiticeira”, “Terra Amada” (Sole mio), “Leva Arriba Nossa Gente”, “Céu Azul” e outras[13]. Boa cópia destes espécimes era de feitura exógena (Califórnia, Portugal Continental), entrando nas ilhas por via de seminaristas, emigrantes, vendedores ambulantes, militares, comércio de partituras impressas e, mais tarde, em discos trazidos por emigrantes “brasileiros” e “calafonas” (caso de Terra Amada). Outras eram compostas por regentes de filarmónicas, tunas, ou ensaidores de teatros. Recordem-se as excursões marítimas da Filarmónica Praiense entre a doca da Horta e o porto da Vila da Madalena (Ilha do Pico), o trabalho de recolha, composição e arranjo concretizado pelo regente Constantino Magno do Amaral Júnior (activo na Praia do Almoxarife), os corais e instrumentais aplaudidos no palco do Teatro Faialense, o papel de recepção e divulgação levado a cabo entre os anos de 1912-1915 pela Tuna Luís Proença.
A análise da música tradicional açoriana conduziu o etnomusicólogo José Alberto Sardinha a individualizar no seu corpus documental “um género lírico ou sentimental muito próprio, que de início terá tido apenas como função a serenata, o canto de amor ou de saudade e que posteriormente terá sido adaptada aos bailhos populares” (livreto “Portugal. Raízes musicais, nº 6, Algarve Ilhas”, Porto, Jornal de Notícias, 1997, pág. 70).
Exemplificariam o segmento escalpelizado por José Alberto Sardinha, “Serenata Açoriana”, “Tanchão” (O cantar da meia noite), “Saudade” (A saudade é um luto), “Meu Bem” (Ó Meu Bem se tu te fores), “Céu Azul” (Céu azul muito te amo), “Terra Amada” (=Sole Mio: A minha terra, terra abençoada), Leva Arriba Nossa Gente, Fado dos Estudantes Açorianos (O amor do estudante), Olhos Negros da Guiné (José Dória?), e Lília ou Lira (Feliciano de Castilho/Domingos Schiopetta, circa 1834-1836), “Lágrimas e Risos (A vida é toda feita assim), “Visão Formosa” (Oh! Visão formosa), “Ecos da Serra” (Ó ribeirinho da serra), “As andorinhas” (Já vai chegando o Outono), “Noivado do Sepulcro” (Vai alta a lua na mansão da noite), “Ao luar (Quero cantar ao luar), “Saudades d’Aldeia (Que saudades desta terra), “A Partida” (Ai adeus acabaram-se os dias), “Canção da Noite” (Alta vai nos céus a lua), “As Praias” (Adeus praias tão lindas, tão belas), e os “Os olhos Castanhos” (Teus olhos, contas escuras, de Augusto Gil).
A audição da mostragem referida facilmente nos conduz para o terreno das importações continentais localmente aclimatadas e para composições de tipo tuna e acto de variedades de teatro popular amador, concebidas por regentes de filarmónicas, professores liceais, seminaristas nas suas andanças entre a terra natal e o Seminário de Angra do Heroísmo, e ensaiadores de coros paroquiais.
As recolhas levadas a cabo nos territórios regionais da música tradicional portuguesa indiciam a prática de serenatas a noivos nos meios populares. Michel Giacometti deu notícia de um espécime deste género no seu “Cancioneiro Popular Português”, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981. Na antologia sonora “Songs and Dances of Portugal” (CD Portugalsom, 870028/PS, 1991), Giacometti apresenta a faixa nº 15, como sendo uma serenata de noivos, recolhida no Concelho de Castelo Branco. Anota o recolector que esta serenata soía cantar-se em momentos celebrativos de namoro, noivado e casamento. Nos povoados dos arrabaldes de Coimbra, Fadinho das Bodas (=Fado Campestre) cumpria funções similares.
Na década de 1950 faziam-se serenatas com Guitarra de Coimbra de fabrico rústico, Viola Amarantina e violão às raparigas casadoiras de Ovelha do Marão (José Ribeiro de Morais, “Cancioneiro a Ovelha do Marão”, Porto, 1998, pág. 254. Mais desenvolvimentos em José Alberto Sardinha, “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005). José Leite de Vasconcelos anotou o costume de “violadas” junto à porta da noiva em Medelim (Idanha-a-Nova), “descantes” com guitarra e harmónio à porta dos noivos em Tolosa (Niza), a interpretação da “Malaguenha” em Barrancos, Santo Aleixo e Amareleja (José Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”, Volume X, Lisboa, INCM, 1988, págs. 247-250).
Segundo testemunho prestado pelo Eng. Luís Correia de Oliveira, existiu na Carapinheira (Montemor-o-Velho) uma tuna popular, activa desde o reinado de D. Maria II, que dava serenatas rurais[14]. Esta tuna ficou célebre aquando da passagem da Rainha D. Maria II pelas imediações, tendo homenageado a soberana com uma serenata.
Em Leiria fundou-se na década de 1890 a tuna Serenata Coliponense, animada por Inácio Veríssimo de Azevedo[15], a que se seguiu a tuna liceal. Quando o Dr. Afonso de Sousa ingressou no Liceu Rodrigues Lobo, de Leiria, permanecia vicejante a tradição das serenatas populares e estudantis do tipo tuna. Do rol dos animadores das serenatas leirienses, entre finais do século XIX e inícios do século XX constaram João Agostinho (violino), Hipólito Gaspar de Campos, João da Fonseca, Januário de Carvalho, Guilhermino Lopes Gomes, Gonzaga, Álvaro de Brito (cantor, violão), José Agostinho, Mário Batalha (guitarrista), Afonso de Sousa (violão, guitarra, concertina, flauta), Adalberto Santélices de Lima (cantor), José Birne (pandeireta), Armando do Carmo Goes (cantor), Victor Hugo Wellencamp (violão), José da Silveira Zúquete (cantor), João Lopes Gomes (violão), António Rodrigues de Oliveira, José Sanches de Sousa, António dos Santos e Silva, Giesteira (guitarra), Santos (flauta). As serenatas leirienses extinguiram-se em 23 de Maio de 1958, nelas tendo participado Artur Paredes, Mário Batalha (violão), António Pires de Andrade, Afonso de Sousa (guitarra), João Agostinho Nogueira (violino), Rui da Luz e Virgílio de Sousa[16].
No primeiro quartel do século XX, as serenatas coimbrãs fluviais das Tricanas e dos Futricas (populares) serviam de arquétipo a actividades lúdicas desenvolvidas um pouco por todo o país. No Vouga (Aveiro) e no Leça, tricanas e lavadeiras imitavam as serenatas fluviais futricas em honra da Rainha Santa[17]. Em certos Liceus, os alunos finalistas procuravam reproduzir as Récitas de Despedida do 5º Ano, com saraus, bailes, cortejos alegóricos de enterro do ano escolar, baladas de despedida e serenatas. Guitarras e serenatas marcaram presença no quotidiano estudantil liceal até à década de 1950, se tivermos em conta os testemunhos dispersos, atinentes aos liceus de Ponta Delgada, Braga, Funchal, Santarém, Viseu, Leiria, Guarda, Évora.
Em Lisboa, os fadistas realizavam serenatas no Cais das Colunas, Costa do Castelo e Tejo, até à proibição oficial destes rituais na década de 1920 (rondas). As serenatas na praia de Cascais, frequentada pela corte, nobreza e burguesia elegante, foram prática recorrente nos anos de 1870-1880. Ilustra bem os gostos da época o “Fado de Cascais”, da autoria do guitarrista Ambrósio Fernandes da Maia. O mesmo acontecia relativamente ao Estoril, Ericeira, Figueira da Foz e Buarcos, Espinho, Granja e Apúlia. Mudavam os actores, os repertórios e os instrumentos, permanecia o culto da noite, das estrelas e da Lua.
Na linguagem vulgar, o termo ronda parece-se sobrepor-se a serenata em alguns contextos locais, pese embora com idêntico significado e intenção. Comum a Portugal e Espanha, a ronda ou serenata foi um ritual de cortejamento masculino, com funda implantação rural e urbana. José Alberto Sardinha assinalou rondas de rapazes, entre Maio e Outubro, na Ericeira, Lisboa, e Reguengo Grande[18]. Em 1937, Victor Machado, na obra “Ídolos do Fado. Biografias, comentários, antologia”, Lisboa, Tipografia Gonçalves, refere testemunhos de fadistas mais idosos que evocavam nostalgicamente as proibidas “serenatas” ou rondas da sua juventude.
Variando de localidade para localidade, a formação mais comum era do tipo tuna ou estudantina, apostando nas violas de arame, guitarras, bandolins, rabecas, violões, flautas e cavaquinhos. Os repertórios incidiam sobre descantes, fandangos, valsas, mazurcas, polcas, marchas, serenatas estróficas, fados em ré menor, barcarolas, romanzas e baladas. A massificação indiferenciada da cultura, de par com o esvaimento das práticas rurais e locais, auxiliaram o triunfo da serenata conimbricense estudantil de “capa e guitarra”. Mas, até no caso de Coimbra este cliché se afigura demasiado redutor e tardio na sua construção massificada, tal foi a diversidade dos rituais serenis experimentados na cidade.
NOTAS
[1] "The New Grove Dicionary of music & musicians", Volume 17, Edited by Stanley Sadie, na Grove de New York e na MacMillan Publishers Limited de Londres, 1980, pág. 159 e seguintes. A primeira edição veio a lume em quatro volumes, nos anos de 1878, 1880, 1883 e 1890. A reedição de 1980 corresponde à sexta versão actualizada em vinte volumes.
[2] "The Encyclopedia Americana", Volume 24, New York/Chicago, Americana Corporation, pág. 591, vai mais longe, sugerindo a presença do ritual da serenata nas civilizações grega e romana. Esta recensão sublinha a presença de archotes, “tradição” registada em Coimbra nos meios estudantis e populares até aos alvores do século XX. Por exemplo na serenata fluvial da Queima das Fitas, realizada pelas 22:00 horas de 4 de Junho de 1905, houve um final com “marcha aux flambeau”.
[3] Roberto Martínez del Rio, “Estudiantes, estudiantinas y tunas, SS. XIX y XX”, in "Estudiantes de Salamanca", Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, pp. 64 e ss.
[4] “As serenatas tiveram a sua época de fastígio em São Paulo; em vez do Fado de Coimbra (...), as modinhas brasileiras e lunduns, com versos impregnados de romantismo, da autoria dos próprios estudantes da Academia (...)”. Cf. Divaldo Freitas, “Tradições da Academia de São Paulo”, Rua Larga. Revista dos Antigos Estudantes de Coimbra, nº 15, Coimbra, 15 de Julho de 1958, pág. 460.
[5] José Oliveira Barata, "António José da Silva, Criação e realidade". Volume I, Coimbra, Edição do Serviço de Documentação e Publicações da Universidade de Coimbra, 1985, pág. 289.
[6] "Gazeta de Lisboa", de 26 de Novembro de 1748.
[7] "Gazeta de Lisboa", de 24 de Fevereiro de 1735.
[8] Maria Antónia Lopes, "Mulheres, espaço e sociabilidade", Lisboa, Livros Horizonte, 1989, pág. 159.
[9] Cf. Maria Antónia Lopes, op. cit., pág. 159.
[10] Guilherme d’Oliveira Martins, "Oliveira Martins. Uma biografia", Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, págs. 232-233.
[11] Transcrição de Ana Maria Almeida Martins, "Antero de Quental. Fotobiografia", Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, pág. 294, com reprodução da partitura e do manuscrito do poema.
[12] "O Telegrapho", edição de 20 de Maio de 1898. Transcrição em António Manuel Nunes, "No rasto de Edmundo de Bettencourt", Funchal, DRAC, 1999, pág. 24.
[13] Cotejem-se as respectivas partituras em Júlio Andrade, "Bailhos, rodas e cantorias. Subsídios para o registo do folclore das ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo", Horta, Edição do Autor, 1960, da página 307 em diante. O autor informa que recolheu estes espécimes entre 1912-1915. No mesmo sentido, Tenente Francisco José Dias, "Cantigas do Povo dos Açores", Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1981. Outras composições citadas neste trabalho resultam das recolhas sonoras de Emiliano Toste (Ilhas de São Jorge e Terceira), e de um caderno manuscrito/com cassete particular cedido em 2005 por Cecília Ferreira Viana relativo à aldeia de São João, Concelho das Lajes do Pico, para os anos de 1919-1923. Cito ainda a gentil oferta da Dra. Maria Antónia Esteves, em cujo CD "Maria Antónia Esteves. Com o rosto a este vento", Ponta Delgada, 2004, constam versões de "Tanchão", "Leva Arriba Nossa Gente" e "Barquinha Feiticeira". O meu feliz e muito especial obrigado a esta velha Amiga.
[14] Depoimento prestado em 20/10/2001.
[15] Afonso de Sousa, "Ronda pelo passado", Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 61.
[16] Afonso de Sousa, op. cit., págs. 61-82.
[17] Conforme a comunicação apresentada pelo Doutor Nelson Borges em 17 de Abril de 2001, em colóquio organizado pela Livraria Minerva Coimbra.
[18] José Alberto Sardinha, "Tradições Musicais da Estremadura", Vila Verde, TRADISOM, 2000, págs. 356-357.

relojes web gratis