domingo, janeiro 08, 2006
















(A caricatura do estudante de Medicina da UP, natural de Vila do Conde, com discos gravados na década de 1920, foi extraída do "Livro dos Quintanistas de Medicina do Porto de 1932-1933". O texto abaixo transcrito "Tempo de Fadistação", encontra-se originalmente no Porto Académico, nº único, ano de 1938, pág. 12. JCD)
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"TEMPOS DE FADISTAÇÃO..."
"Porto Academico, que mundo de recordações invoca êste nome, já velho, dos tempos da fadistação despreocupada e irrequieta. Quanta saudade e tristesa vão desenrolando diante dos meus olhos êsses tempos em que pertenci, pode dizer-se, à última geração dos veteranos, dos velhos blagueures, impenitentes perseguidores dos caloiros recenchegados e revestidos ainda da velha casca provinciana e também dos grandes orientadores das maiores organisações artisticas, desportivas e jocosas que até hoje a Academia soube realisar.
Dêsde a coroação do Orfeão e Tuna Academica por terras de Madrid e Galisa em que se glorificaram as figuras do Dr. Clemente Ramos e Dr. Modesto Osorio, ás inumeras excursões por terras portuguesas onde brilhavam para uns e irritavam a outros as piadas do Sobrinho das Barbas, do Mendes, do Zé Moreira, do João Ribeiro; dêsde as peças teatrais do Mendo e do Fariñas, à Aranha Verde e outras revistas do Poeta Rabeta, do Perry, do Zeferino com musica do Alberto David, do Lucena Sampaio, do Alvaro Rodrigues e outros, dêsde os actores consumados até aos célebres grupos de Girls que arrebatavam as plateias. Desde aquêle classico bailado das horas dançado pelo grupo dos barbudos, àquêle colossal bailado do Bravo ali no S. João que deixou estupefactos todos aquêles que minutos antes o tinham visto entre-cênas. Desde as primeiras organisações do Carnaval que enchiam a cidade de gente vinda de tôda a parte, até aquêle célebre roubo da macaca ali nos Loios que depois de doutorada honoris causa foi entregue com tôda a solenidade na varanda do antigo Hotel Rainha... tudo isso passa ainda com saudade diante dos meus olhos. E aquelas célebres excursões de cursos a terras da Galiza pletoricas de alegria môça e garotices... Nunca consegui saber quem foi o autôr da piada que obrigou o Bravo a arrancar o fôrro do bonet de policia com que desempenhava brilhantemente aquele papel na comédia os Suicidas uma das peças do reportório da nossa tournée por terras galegas.
Depois o pano desceu... e os antigos actores passaram a ser engenheiros, medicos, advogados jornalistas, etc.
Mas saudade bem grande, sinto eu ao recordar aquelas serenatas a horas mortas pelas ruas da cidade com o Aires, o Viamonte, o Milheiros, o Zé Taveira, o Rogerio, o Amandio Marques, o Pereira Leite e o Guerra, vulgo tenôr de cabeça(1). Ao lado das notas sentimentais, quantas cenas picarescas duma comicidade natural e expontânea, passam ainda nas minhas retinas. No regresso das serenatas e depois de tremendas touradas aos gatos vadios, onde surgiam diestros valorosos, íamos acabar a noite ali no Transmontano, organisando sessões fadologicas debaixo da orientação do velho Mouzão já de cabeleira tôda branca, do tenente Simão e outros carolas do fado e da guitarra...
Depois o fado morreu... morreu com as grafonolas e com o radio. E foi esta grafonoloterapia e radioterapia que ministrada em tão altas doses, provocou a dispepsia e o enjôo a tôda a gente.
Nunca mais se ouviu uma serenata... e aos meus ouvidos, chega ainda o éco da minha propria voz nas noites luarentas de há dez anos, para arrelia dos mestres e encantamento dos sonhadores e... das sonhadoras, como o ultimo boémio duma geração que passou.
Maio de 38

CARLOS LEAL "
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(1) É possível que este "Guerra, vulgo tenôr de cabeça" fosse o "Guerra da cabeleira" referido num episódio, relativo também ao meio das serenatas, contado (anonimamente, e sem qualquer referência à data em que se terá passado) no Porto Académico, n.º único de 1962, p. 45:

E ASSIM SE PERDEU O CRÉDITO...
O Morais, dono duma casa de «bons petiscos» na Rua do Almada - casa muito frequentada, durante a noite, pela Academia de outros tempos - tinha a fama e... o proveito de deitar água no vinho. Sendo amigo da rapaziada e tanto assim que até fiava a... longo prazo, o Morais, que admitia todas as brincadeiras, não suportava, por princípio algum, que o acusassem de mixordeiro. Pobre daquele que se atrevesse, de cara, a acusá-lo da mistura!... Nunca mais lhe fiava.
Era certo e sabido que a boémia académica de então, de regresso de qualquer serenata, abancava ali a altas horas da madrugada e, certa vez, o Morais mostrou desejos de ouvir o «fadinho» defronte da sua porta. Os rapazes resolveram satisfazer-lhe a vontade e, numa madrugada de Janeiro, com o luar a bater em chapadas, o Morais tinha à sua porta uma serenata com quatro guitarras, dois violões, três tenores e grande acompanhamento da Academia.
Tudo correu muito bem e, para fechar a serenata, ecoou pelo espaço a voz tenorina do «Guerra da Cabeleira», num fado muito em voga:
*
O vinho é sangue de Cristo
Que nossas mágoas suaviza
E é, talvez, por causa disto
Que o Morais o baptiza...
*
Caiu Tróia... E o Morais cortou o crédito à Academia...
Textos enviados por João Caramalho Domingues

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