Costumes estudantis em Braga
Albertino Gonçalves é Doutor em Sociologia, docente e investigador da Universidade do Minho. Neste breve artigo, editado em 2001, o autor interroga os costumes académicos vivenciados no Pólo de Braga da Universidade do Minho, valorizando aspectos como a celebração orgiástica do caos, a inversão da ordem social e o lado grotesco de alguns rituais e tradições.
As "tradições académicas" na UM são recentes (isto é, posteriores à fundação da instituição), pese embora pontualmente inspiradas em alguns velhos costumes praticados no antigo Liceu Sá de Miranda (Liceu de Braga). Estamos em presença de "tradições inventadas", ou "reinventadas" a partir de determinados arquétipos reais ou imaginados, no sentido que lhes emprestou Eric Hobsbawm. As tradições universitárias bracarenses são olhadas pela Universidade do Minho com elevado grau de seriedade. A própria Reitoria tem dinamizado comissões de estudo e de acompanhamento da prática e das vivências costumeiras, por forma a tentar aferir do grau de integração dos alunos, do seu bem estar e do seu aproveitamento escolar. Tolices? A UMinho não figura propriamente na carruagem traseira do combóio das universidades portuguesas.
Dos estudos e publicações levados a cabo sobre tradições estudantis na UM salientemos Albertino Gonçalves, "Dioníso na Universidade: a praxe como rito de passagem", UM Boletim nº 45, 1997; Henrique Nunes/Helena Cunha/Nuno Pinto, "As Tradições Académicas de Braga", Braga, Edição da Associação Académica da UM, 2001 (estudos sobre as Nicolinas, Enterro da Gata, Trajo Tricórnio, etc.); Rita Ribeiro, "As lições dos aprendizes. As praxes académicas da UM", Braga, Edição da UM, 2001; Albertino Gonçalves, "O sentido da comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga", Braga, Forum nº 30, 2001.
No antigo Liceu de Braga se desenvolveram desde o último quartel do século XIX variegadas "tradições" inspiradas no paradigma coimbrão, como o uso da Capa e Batina, récitas de despedida de finalistas, baladas de despedida, prática da guitarra (ex: António Carvalhal começou a tocar guitarra neste Liceu), festividades de encerramento do ano escolar (Enterro da Gata). No Liceu de Gimarães, a festividades eram radicalmente originais, celebrando o patrono dos estudantes, São Nicolau (Nicolinas). Tais festas ainda se realizam anualmente no dia um de Dezembro. Delas tomei conhecimento à roda de 1990-1991, por intermédio do estudante e talentoso guitarrista Pedro Paredes.
"Tradições" havia-as em quase todos os antigos liceus. Na Páscoa de 1986, durante uma digressão do Coro da Capela da UC à Guarda, Covilhã e Serra da Estrela, serviu-nos de guia pelas ruas friorentas da Guarda um antigo aluno do liceu. Contou o guia que noutros tempos os alunos do Liceu da Guarda não só tinham usado Capa e Batina, como faziam umas curiosas praxes que consistiam em organizar um Cortejo de Caloiros que ia desde o portão do Liceu até um fontanário onde os iniciados eram "baptizados". Confirmando estes dados, Helder Godinho e Serafim Ferreira, in "Vergílio Ferreira. Fotobiografia", Lisboa, Bertrand, 1993, apresentam fotografias dos anos de 1931, 1932, 1933, no Liceu Afonso de Albuquerque da cidade da Guarda, nas quais se podem ver Vergílio Ferreira de Capa e Batina e um trecho de um Cortejo do Baptismo dos Caloiros (foto do ano de 1933, pág. 42).
Quanto ao Liceu Antero de Quental, de Ponta Delgada, que frequentei entre 1982-1985, ouvi relatos soltos de antigos alunos sobre uso da Capa e Batina, bailes de finalistas, saraus culturais, serenata no adro da Igreja Matriz de Ponta Delgada (anos de 1940-1950??) e festividades de abertura e fecho do ano escolar. O ano abria sempre com um luzidio discurso solene do Reitor na estonteante Biblioteca do Liceu (antigo salão de baile do Palacete do Barão das Laranjeiras).
Cá fora, os alunos mais velhos pintavam os caloiros, davam-lhos empurrões e pontapés e, procediam à eleição do Rei dos Caloiros. Eleito o Rei, formava-se a Procissão dos Caloiros, com alas de estudantes e um andor sobre o qual serpenteava o Rei dos Caloiros muito pintado e em tanga. A Procissão dos Caloiros ia desde o portão principal do Liceu até um fontanário existente na Baixa, junto aos Paços do Concelho, onde terminava o ritual como o solene Baptismo da caloirada. Esta eleição, desfile em andor e cortejo, eram alvo de violentíssimas críticas moralistas de escaldalizados pais e mães da fina flor micaelense que queriam interditar essas "sem-vergonhices". Lembro-me de sanguinários artigos publicados por melindrados pais nas páginas de o Açoriano Oriental, pedindo a cabeça dos organizadores e a imediata interdição do ritual.
Ainda se fará esta antiga e rara praxe?
Para terminar o ano em beleza, havia o Enterro da Bicha, muito semelhante em estrutura ao Enterro do Ano (Aveiro) e Enterro da Gata (Braga), com cortejo fúnebre, testamento (?), caixão e enterramento (seria enterramento ou lançamento ao mar??). Na segunda metade da década de 80 ainda tentei recolher um relato destas velhas tradições junto do Doutor Almeida Pavão, antigo Reitor do Liceu de Ponta Delgada e à data lente aposentado da Universidade dos Açores. A resposta foi decepcionante, pois Almeida Pavão declarou desconhecer tais práticas (como poderia desconhecê-las para mais tendo sido Reitor do Liceu antes de 1974?). Hoje tenho pena de não ter aprofundado o assunto com o Dr. Eduardo Tavares de Melo, antigo aluno daquele estebelecimento de ensino.
Para terminar: a Capa e Batina desaparecera por completo do Liceu de Ponta Delgada após a Revolução de 1974. Porém, permanecia uma reminiscência: todos os anos em Maio, na procissão do Santo Cristo dos Milagres havia um lugar certo para a delegação do Liceu com Capa e Batina (e não da Universidade que então se começara a afirmar com o Julgamento dos Caloiros, e mais tarde com translado da Queima das Fitas e "serenatas monumentais" estilo Coimbra no adro da Igreja do Colégio de Jesus).
Texto: AMNunes
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