domingo, março 05, 2006


Um libelo contra Delgado Posted by Picasa
Talvez não valesse a pena dar notícia desta obra que tem tanto de fascinante quanto de terrífica, não fora o seu autor um antigo estudante da Faculdade de Letras da UC, neto paterno do também antigo estudante e malogrado escritor do "fantástico noir" Álvaro do Carvalhal, irmão do guitarrista António Carvalhal e do antigo TAUC Joaquim Carvalhal, todos eles com fortes ligações artísticas e afectivas ao universo da Canção de Coimbra.
Luís Abreu de Almeida Carvalhal, filho de Álvaro Carvalhal (natural de Braga, porém feito em Coimbra) e de uma burguesinha católica de Esposende, Eugénia Abreu, nasceu em Esposende no ano de 1913. Veio a falecer no Brasil, no dia 18 de Novembro de 1995, país onde se refugiara após a 2ª Guerra Mundial. Estabeleceu-se em Coimbra no ano de 1931 com a família, tendo ali concluído o Liceu D. João III e o curso de Histórico-Filosóficas.
Incompatibilizado com o Estado Novo e ideologias totalitárias campeantes na década de 1930, Luís Carvalhal e um seu colega Cajeira boicotaram a "Exposição do Livro Italiano", uma campanha pró-fascista promovida pelo Instituto Italiano da Faculdade de Letras, com agendamento para 19 de Maio de 1939. Alberto Vilaça, in "Para uma História remota do PCP em Coimbra (1921-1946)", Lisboa, Edições Avante, 1997, págs. 196-197, atribui erradamente a façanha ao antigo estudante de Direito e investigador António José Soares. No fundo, a culpa não é de Alberto Vilaça mas sim de Soares, que inquirido sobre estes factos em carta, optou por chamar a si um protagonismo que não desempenhara. Não deixo de lamentar uma tão insólita quanto desnecessária atitude no meu mestre de tradições estudantis, para mais tendo em conta os seus reconhecídos escrúpulos. Soares esteve preso com Joaquim Namorado na Cadeia de Coimbra entre 27 e 31 de Maio desse ano por supeitas nunca confirmadas. Não se confirmou aquilo que não era passível de confirmação. Soares e Namorado estavam implicados em acções de colaboração com a célula clandestina local do PCP e com a impressão e distribuição do jornal afecto ao PCP "Sol Nascente", mas não com o boicote à acção pró-fascista. Num livro muito mal recebido em Coimbra, da autoria de um opositor ao regime, membro do TEUC, João José Falcato ("Coimbra dos Doutores", Coimbra, Coimbra, Editora, 1957, págs. 85-87), o episódio vem relatado sem eufemismos, omitindo os nomes dos protagonistas.
Luís Carvalhal e Cajeiro, uma vez no interior do edifício da antiga Faculdade de Letras, deixaram-se ficar para além da hora do fecho dos enormes portões de ferro, tendo-se escondido discretamente. Noite alta, penetraram na sala onde a exposição pró-fascista aguardava inauguração, tendo salpicado o retrato de Mussolini com fezes. A bandeira italiana encontrava-se rasgada e as paredes estavam besuntadas com frases contestatárias em negrão, dando vivas à Etiópia, Albânia, Chescoslováquia e a um Portugal "livre e independente".
Luís interrompeu o curso durante a 2ª Guerra, tendo prestado serviço militar durante 3 anos como alferes meliciano em Cabo Verde. Terminado o serviço militar veio concluir o curso a Coimbra. Trabalhou como professor em Esposende e no Colégio Nuno Álvares (Tomar), tendo-se envolvido na campanha de Norton de Matos, facto que lhe valeu a irradicação do exército. Denunciado em Esposende e banido do ensino no ano lectivo de 1949-1950, nada mais restou a Luís Carvalhal do que refugiar-se no Brasil, território onde se lhe foi juntar seu irmão Joaquim.
A PIDE sabia que Luís Carvalhal era da oposição ao regime, mas as rusgas domiciliárias nunca encontraram quaisquer documentos comprometedores, nem em Tomar, nem em Esposende. Os documentos da campanha de Norton de Matos e diversos estavam bem guardados nas dependências da Fábrica Vista Alegre, Ílhavo, onde habitavam e trabalhavam sua irmã Mariberta Carvalhal e seu cunhado Franklin.
No Brasil, Luís Carvalhal foi um dos principais dinamizadores da campanha de acolhimento e apoio financeiro ao General Humberto Delgado. Totalmente avesso ao movimento de independência das colónias africanas, as coisas entre Carvalhal e Delgado azedaram definitivamente, saldadas numa famosa cena de pugilato relatada pela imprensa.
"A verdade..." é obra de um homem magoado e desiludido na sua honra e brios. Luís Carvalhal era um liberal à maneira britânica, cavalheiroso e idealista. Conheceu em Humberto Delgado imperfeições de carácter depressa reveladas no convívio particular.
Nos inícios da década de 1990 a investigadora brasileira Heloísa Paulo trabalhou em Coimbra com o Doutor Luís Reis Torgal temas menos conhecidos ligados à ditadura brasileira de Getúlio Vargas e à propaganda desenvolvida no Brasil pelo SPN/SNI. Todas as vezes que eram afloradas estas questões, Heloísa Paulo fazia questão de lembrar que a imagem heróica de Delgado alimentada em Portugal nada tinha a ver com a imagem "negra" de Delgado no Brasil.
O livro de Luís Carvalhal não relata nada que não corresponda à realidade história vivenciada pelo seu autor. "A verdade sobre Humberto Delgado no Brasil. Cartas inéditas, notas e comentários", Rio de Janeiro, Editorial Globo, 1986, é uma obra rara nas bibliotecas portuguesas, cujas páginas merecem cuidada mastigação.
Aqui fica a nossa homenagem a Luís Carvalhal, mais um esquecido membro da "família da Canção de Coimbra", por onde passou discretamente como executante de violão de cordas de aço.
Agradecimentos: documentos e testemunhos da Dra. Mariberta Carvalhal
AMNunes

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