quinta-feira, abril 06, 2006


Camponesa ("dos arredores") de Coimbra Posted by Picasa
Aguarela de Manuel de Macedo (1846-1915), assinada e datada de 1884, realizada sobre fotografia colhida nas margens do Mondego. Este documento foi posteriormente editado no "Álbum de Costumes Portugueses", Lisboa, David Corazzi, 1888, com texto de Pinheiro Chagas. Chagas identifica a mulher retratada com a já então muito celebrada tricana citadina, embora o título identificativo da ilustração refira expressamente "costume dos arredores de Coimbra". Não há coincidência entre o título da gravura e o texto. No contexto cultural citadino, as camponesas dos arredores de Coimbra não eram propriamente consideradas musas inspiradoras. Elas eram afinal mulheres de fora que a pé, com carroças e burricos, aninhadas nas barcas serranas, aguilhoando os bois, vinham apregoar leite, peixe, louças, ou distribuir trouxas de roupa tirada da barrela e molhos de carqueja. Lá e cá atroavam as ruas e recantos com pregões cantados de sardinhas, arrufadas e laranjas da China.
Não raro os estudantes insultavam os camponeses e trabalhadores dos arredores, chamando-lhes "vacões", "broeiros" e "mijadas". Aos olhos da fidalguia e burguesia locais, estas rústicas dos arredores não podiam de modo algum envergar este tipo de vestuário caso fossem contratadas como criadas de servir. Aliás, por aquilo que apurámos, as damas citadinas davam "lições" de português e de "boas maneiras" às criadas de servir oriundas de fora. Do ponto do vista dos próprios camponeses/camponesas, os trajos de trabalho eram muitas vezes percepcionados como sinónimo de pobreza, de inferioridade sócio-cultural e de afastamento dos favores da cidadania activa.
Por alguma razão, no período do Estado Novo, se insistiu e persistiu na inculcação institucional (FNAT) de uma visão cor-de-rosa dos camponeses "fardados" com trajos domingueiros. De uma penada, os trajos domingueiros permitiam ocultar o pé descalço, o remendado, o mendigo cantador, a ausência de roupas interiores, o esburacado e o desbotado.
Na época a que se reporta a ilustração, eram "arredores" o arrabalde (lugares circunvizinhos como Celas e Santo António dos Olivais), freguesias do Concelho de Coimbra e povoados dos municípios circundantes. Poderá tratar-se de uma mulher do "campo" (lados de Cernache), ou com mais probabilidade de Poiares (ver cestos e louças).
A camponesa apresenta como principal elemento identificativo o chapéu de feltro com pompons à moda da Beira Litoral, envergado com especial incidência na região de Coimbra e povoados do Baixo Mondego, mas com prolongamentos até Ovar e Murtosa. Vestuário de cores vivas (saia, lenço, blusa), com arcaísmos na decoração do chapéu e blusa. Andar calçado seria um luxo nos meios rurais, pois muitos dos homens e mulheres que laboravam nos arredores de Coimbra e nas margens do Mondego andavam descalços. No entanto, as gentes dos arredores calçavam-se para vir à cidade. O xaile, cuja moda se impunha na cidade, ainda não ocorre nesta vestimenta. Permanece a capoteira castanha, com romeira debruada, traçada "à tricana". Guarda-chuva e rodilha são elementos auxiliares do percurso campo/cidade, bem como a indispensável cesta com louças pretas à moda de Olho Marinho (Poiares).
Analisando esta gravura, o bem documentado Octaviano de Sá argumenta que o trajo proposto para a mulher dos arrabaldes seja aceite com tendo sido usado na cidade (Cf. Octaviano de Sá, "a Tricana no folclore coimbrão", Coimbra, Edição da CMT, 1942, págs. 4-5). A interpretação formulada por Octaviano de Sá tem todo o sentido, não para a década de 1880, mas reportada aos decénios anteriores. Esse trajo ocorre, sem variantes dignas de registo, no heterogéneo grupo que Georg Vivian desenhou em 1839 na Fonte de Santana ("Scenery of Portugal and Spain"). O modelo desenhado não nos parece muito distinto (há pormenores distintivos mas não radical diferença) do trajo da Varina da Murtosa presente no mesmo álbum Corazzi, nem do trajo festivo que algumas minhotas da região de Braga vestiam no tempo dos Cabrais (cf. Albert Racinet, "Histoire du Costume", Paris, 1888, pág. 299, figura 3, obra reimpressa em 1991).
AMNunes

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