segunda-feira, agosto 28, 2006

Duas horas de conversa com António Brojo
Por António M. Nunes

Esta entrevista foi realizada nas instalações da Secção de Jornalismo, no 1º Piso do edifício da AAC, com vista à preparação de um caderno temático a editar pelo jornal A CABRA durante o 1º semestre de 1992. Todavia, não se asseverou possível concluir os trabalhos de recolha de testemunhos, numa fase em que já tinham entrado na redacção os textos de Jorge Cravo e Jorge Gomes. Problemas informáticos e financeiros fizeram com que o jornal não tenha sido editado entre o Nº 7, de Dezembro de 1991, e o Nº 8, de Junho de 1992. O encontro com António Pinho de Brojo teve lugar numa manhã friorenta de finais de Novembro de 1991. APB era então membro da equipa reitoral de Rui Alarcão, mantinha uma aula de História da Farmácia na Faculdade de Farmácia da UC, mas fez questão de vir pessoalmente ao edifício da AAC prestar o seu testemunho. APB mostrou-se um conversador animado, não escamoteou críticas, mantendo ao longo de duas horas invejável boa disposição e original sentido de humor.
Na transcrição, mantive as frases originais, suprimindo apenas repetitivas muletas verbais do tipo “portanto”, “ora bem”, “digamos”. Nas situações em que a cassete estava inaudível, as frases aparecem incompletas. APB, falecido em 1999, deixou ao meu critério a redacção da entrevista e sua publicação, não tendo exigido leitura da 1ª versão do texto (escrito passados 15 anos!) nem chamado a atenção para afirmações mais polémicas.

AMNunes: na Secção de Jornalismo, às 10 e meia da manhã, está um bocado frio…
APBrojo: Está um bocado frio!
AMN: Bom, iniciando a nossa viagem pelo tema que lhe havia proposto telefonicamente, vamos tentar situar-nos cronologicamente na sua juventude. Eu gostaria que começássemos precisamente pelos seus tempos de estudante. Como é que as coisas aconteciam em termos de iniciação? Como é que se aprendia a cantar e a guitarrar? Havia escolas, aprendia-se de ouvido, entrava-se por gosto ouvindo outros, existia alguém que transmitia informações relativas às gerações anteriores?
APB: Ora bem… eu quando comecei a interessar-me pela guitarra – portanto eu estou-me a reportar a 1942, por aí… - , não se pode dizer que houvesse um grande número de cultores do Fado e da Guitarra em Coimbra. Não havia! Aliás, havia uma certa decadência depois da Geração de Ouro, como você conhece perfeitamente. Houve decadência nas vozes. Eu conheci vozes como o Manuel Julião (que era uma voz maravilhosa), o Jorge Gouveia que ainda está vivo, e o Frutuoso Veiga (mais conhecido por o Nani). Eram estes três fundamentalmente, digamos, as estrelas que de facto iluminavam o firmamento em que eu nasci com vontade para tocar guitarra.
Quanto a guitarristas, também não havia muitos. Por essa altura eu ouvia embevecidamente o João Bagão, cujo 2ª guitarra era o José Maria Amaral. Tocava também o Dr. Armando Carvalho Homem, que morreu há muito pouco tempo, pai do Carvalho Homem que é um belíssimo historiador e tocador de viola.
Como pode ver, era pequeno o número de cultores, embora houvesse, como sempre e até nos dias de hoje, aqueles curiosos que não tinham coragem nem se sentiam com força para aparecer publicamente, mas que já andam ali no limite do lançamento, como que à espera de uma oportunidade. Também já os havia assim no meu tempo.
Os poucos que iam aparecendo estavam muito integrados na vida académica da altura. Ah, desculpe-me voltar atrás, mas eu cometi uma injustiça. Não falei numa pessoa da altura que ainda está viva e que é poeta, o Dr. Ângelo de Araújo, o “Gibambo”, autor de letras de composições e que também era um tocador solitário. Eu encontrava-o com frequência na Rua da Matemática, na Velha Alta, sentado numa soleira de porta a tocar viola sozinho e a cantar.
Havia uma grande receptividade nessa altura da Academia à Canção Coimbrã e à Guitarra!
AMN: Tinha possibilidade de ouvir discos?
APB: Não era propriamente fácil, nos tempos da 2ª Guerra, comprar discos. Mas foi efectivamente com os discos do Artur Paredes que começámos a aprender o “estilo do Artur Paredes”. O João Bagão e o José Maria Amaral utilizavam um estilo de guitarra que era mais tradicional. Distingo aqui o Carvalho Homem que já era um fã do Artur Paredes e utilizava os seus discos. Nos demais era um estilo à Flávio.
Falemos no Flávio. Ele era um homem do povo que ensinava a tocar guitarra. Tinha uma barbearia na Alta e tinha discípulos. Aceitava rapazinhos que lá iam aprender umas coisas. O Portugal foi um deles. Portanto, escola oficial de guitarra não havia!
AMN: Nem de formação de cantores?
APB: Nem de cantores. Não havia nada disso! O que havia efectivamente era o interesse, digamos, daqueles que se sentiam motivados pela Canção de Coimbra para andarem a acompanhar os outros nas serenatas com os companheiros da noite.
AMN: E quanto a Serenatas Monumentais?
APB: Quando eu comecei a aprender e a tocar ainda não havia Serenatas Monumentais. Havia muitas serenatas espontâneas e a cidade prestava-se a isso, ainda que começássemos a sentir nessa altura uma certa perseguição da polícia. O governador civil exigia que se avisasse da serenata, tinha de se limitar o tempo, havia a questão da perturbação da ordem pública, o sossego dos moradores… Digamos, o Fado e a Guitarra faziam parte da existência da Academia. Havia um entrosamento que conferia aos guitarristas e cantores uma “alforria”. Éramos protegidos da Praxe pelo facto de cultivarmos qualquer coisa que interessava ao Património da Academia.
“Escola” de guitarra havia uma, embora não fosse institucionalizada, sobrevivendo graças ao pobre Flávio, que eram um homem que vivia mal e precisava de ser ajudado. Quanto ao resto, aprendia-se de ouvido. E bem vê, os meios discográficos eram muito escassos e rudimentares.
Nesta fase que refiro cantava-se muito um estilo de canção que foi muito cultivada pelo Manuel Julião. Não era o chamado “fado clássico”. Era uma canção mais ligeira, a par do estilo do Ângelo de Araújo, uma cançoneta que era cultivada pelo Ângelo Araújo, por exemplo, “Ó meu amor minha linda feiticeira”, os “Contos Velhinhos”, fados de uma certa… e mesmo aqueles que foram feitos nessa época procuravam imitar o “fado clássico”.
AMN: O Tavares de Melo foge a estas linhas de cançonetismo radiofónico e cinematográfico?
APB: Ora bem, o Tavares de Melo aparece um pouco mais tarde. Eu sou acompanhado e acompanho-o aí por 1946, digamos 47, 48. O Tavares de Melo era um belíssimo compositor. Tem uma série de inéditos que nós pretendemos gravar. Deixou-mos quando veio a Coimbra à Queima das Fitas de 1987. Ele quando vem a Coimbra chora e traz sempre na manga novos fados. Ele é um romântico e um mórbido. Continua a utilizar o mesmo estilo da juventude. No tempo de estudante estava aproximado ao fado tradicional.
AMN: E quanto a Alexandre Herculano?
APB: A seguir à geração do Frutuoso Veiga, do Nani, do Napoleão e do Jorge Gouveia, surge uma nova fornada com o Alexandre Herculano, com o Augusto Camacho, e havia um outro moço que depois se foi embora para o Porto, era o Alcides Santos.
AMN: Com estas pessoas começamos a assistir a uma mudança de mentalidades?
APB: Ainda não! Ainda não! Se bem que o Camacho… o Augusto Camacho foi sempre um cultor do fado clássico e ainda continua a sê-lo hoje. Portanto, na época anterior à chegada do Camacho predomina a canção ligeira, alinhada pelo protótipo da canção do Ângelo de Araújo. Com o Camacho, o Camacho aparece em Coimbra em 1945 e esse é o homem entusiasta do fado tradicional. E nunca saiu disso! O Alcides Santos mantinha o estilo cançonetístico. O Alexandre Herculano tinha uma voz excepcional mas nunca foi um cantor do fado tradicional. Tendeu sempre para a canção, até porque ele adorava cantar música espanhola, adorava cantar música italiana, e tinha uma voz excepcional. Nunca foi verdadeiramente um cantor tradicional do fado de Coimbra.
AMN: Estamos a caminhar para os finais dos anos 40…
APB: Sim. Entretanto aparece o Zeca Afonso, à volta de 1948, também cantando exclusivamente o fado tradicional. Eu, em 1952, exactamente, fiz discos de 78 rotações com o José Afonso, Luiz Goes e Fernando Rolim. É, digamos, depois dos discos do Menano, do Paradela, do Lucas Junot, a primeira vez que são lançados discos de 78 rotações com os três cantores que depois vieram a ser uma Segunda Geração de Ouro. O Luiz Goes, repare, trazia atrás de si um património musical formidável. O tio dele, o Armando Goes, tinha, como sabe, o estilo que nem sempre era o do fado tradicional. Ele insistiu no fado lisboeta, cantou sonetos e o Luiz Goes continuou a herança do tio.
AMN: Estes discos de 1952 eram já um projecto artístico diferenciado em relação às heranças recebidas? Gravou apenas porque havia necessidade de novos discos no mercado, pensou, estudou, ensaiou, ou as gravações foram espontâneas?
APB: Não! Foi um projecto diferente. Não foi espontâneo. Com a aproximação dos Anos 50, aí por 1951, eu venho para Coimbra, para a Universidade. Em minha casa surge uma tertúlia, a Tertúlia do Calhabé. Tertúlia com quem? Com um sujeito que ainda está vivo e que é funcionário da Assistência Social, que era o José Rodrigues, um apaixonado pelo estilo do Artur Paredes e seu conviva. Ele era sobretudo um cultor da guitarra, da guitarra do Artur Paredes e teve uma grande importância na minha formação e na do Portugal também. E com o José Rodrigues e com o Florêncio Neto de Carvalho – que era um homem que tinha uma virtude extraordinária. Conhecia muito bem o fado de Coimbra e sabia interpretar (=imitar) o estilo de cada um dos cantores da Primeira Geração de Ouro, então resolvemos chamar o Fernando Rolim, o Zeca, o Goes e o Machado Soares que entrou mais tarde. E resolvemos que as coisas tinham caído numa tal decadência…
AMN. Vocês tinham consciência dessa “decadência” artística?
APB: Tivemos a noção dessa crise e pensámos “nós temos de fazer um estudo das raízes!” Com o trabalho discográfico do Artur Paredes e o apoio do José Rodrigues surge um “Renascimento”. Em minha casa começámos a fazer exactamente esse trabalho. O Florêncio de Carvalho o que é que fazia? Quando aparecia um rapaz, ele dizia, “ó pá, tu tens uma voz estupenda para cantar, eu vou-te ensinar fados do Bettencourt como ele os cantava”. E depois cantava-lhe à maneira do Bettencourt, do Paradela, do Menano. Depois corrigia o cantor, obrigava-o a dizer o poema. Havia toda uma aprendizagem que era no sentido de primeiro saber o que estava a cantar, reproduzir o conteúdo do poema e dar-lhe depois expressão na música dentro do estilo. Outros teriam um estilo mais parecido com o Menano… de facto, houve um trabalho de sapa, de estudo e de recolha, de regresso às raízes dos anos 20. Mas atenção, o Florêncio representava já algo de progresso, introduzia já o seu contributo. O Florêncio também cantava, embora tivesse problemas de garganta e tivesse muitas vezes dificuldades de cantar, mas sobretudo tinha uma expressividade extraordinária.
Os discos surgem como consequência desse treino, desse estudo. Os discos aparecem, deliberadamente, como uma forma de afirmação e de “reposição”.
AMN: Quais foram as reacções aos discos?
APB: Foi óptimo, foi óptimo!
AMN: Havia uma lacuna fonográfica de quase 30 anos…
APB: Não era fácil. As empresas de gravação eram poucas e não tinham muitos meios. O Fado de Coimbra estava num gueto, verdadeiramente num gueto! Ainda hoje lhe devo dizer uma coisa, o grande mal disto tudo está em a Canção de Coimbra ser sempre associada restritamente ao meio de Coimbra, é sempre considerada como uma música urbana muito local. Nunca adquiriu um estatuto na música ligeira portuguesa, ao contrário do Fado de Lisboa. Ainda hoje na rádio, é difícil, é raro, pode contar pelos dedos o número das situações em que está a ouvir música diversa e no meio da música sai uma canção de Coimbra. É raro! Felizmente que aparece, mas é raro.
Tinha havido ali um hiato tremendo e aqueles discos tiveram uma enorme aceitação. Os discos foram gravados aqui em Coimbra no Emissor Regional, em condições muito fracas, e depois passadas a 45 rotações e 33 rotações e cassetes. O Portugal já nessa altura entrou. Foi o meu 2º guitarra nesses discos. Quando eu me vou embora para a Suiça em 1954 – o meu trajecto vai até 54, de 1943-1944 até 54 - , o Portugal vai continuar o nosso trabalho.
Em toda a minha época, eu cito o João Bagão, cito o José Maria Amaral, o Carvalho Homem, o Manuel Branquinho (embora o Manuel Branquinho nunca tenha sido um guitarrista, em meu entender, eu sou oficial do mesmo ofício, que se tivesse afirmado muito significativamente. Quando reaparece, mais tarde, é a cantar). Como violas eram o Aurélio Reis, que já era uma figura habitual, era o Eduardo Tavares de Melo, o Mário Castro. Na minha geração isto foi o núcleo fundamental.
AMN: Carlos Figueiredo, era um homem marginal a estes meios?
APB: O Figueiredo (risos)… você já se apercebeu que o meio é fechado e pequeno… há certas rivalidades. Há sempre uns ditos de bastidores, umas piadas. Nessa altura também havia essa mesma rivalidade. Ainda que, o João Bagão, o José Maria Amaral e o Carvalho Homem tivessem actuado muitas vezes em conjunto, de tal maneira que o José Maria Amaral foi 2º guitarra do João Bagão, depois o José Maria Amaral autonomiza-se e constitui o seu próprio grupo em que eu entrei como 2º guitarra, depois o José Maria Amaral vai-se embora e eu fico com o Carvalho Homem… Eu não tinha problemas, integrava-me facilmente embora sentisse as rivalidades, que então nos cantores eram “notáveis”. No meu grupo não, o Fernando Rolim, o Luiz Goes e o Zeca Afonso iam cantar a minha casa e havia entre nós um grande entrosamento.
Com havia as estrelas, o Figueiredo, a quem nós chamávamos o Figueiralho (risos), era um homem que não era um violista de primeira água, embora tivesse o seu mérito, era sempre o violista substituto. E então utilizou um sistema curioso: quando arranjava um cantor muito bom, dizia-lhe “eu ponho-o a cantar mas você fica comigo”. Havia este sistema também na altura. Como você sabe os cantores foram sempre adstritos a grupos e de certa maneira era difícil a um cantor ir com um outro grupo, era visto como uma traição aos seus companheiros. Isto já existia.
Muitas vezes o Figueiredo integrava-se nestes grupos, mas sempre com a sensação de que era um elemento de substituição. O que o Figueiredo tinha era coisa extraordinária, apesar de ser um tipo de importância menor, boi um belíssimo compositor. Fez fados tradicionais muito bem feitos, que nós aproveitámos, o “Adeus Sé Velha saudosa”, o “Ondas do Mar”, “O Sol anda lá no Céu”. O Zeca Afonso nessa altura era um cantor tradicional, tendo uma voz de pouca amplitude. Tinha uma voz fraca para cantar o fado tradicional. O ele ter explorado a balada, não há dúvida nenhuma que é esse o tipo de música que ele, já nessa altura, considerava mais adequado à sua maneira de ser e para as suas possibilidades vocais. Aliás, ele tinha uma coisa muito curiosa. Eu posso-lhe contar um episódio. Fomos fazer aí um espectáculo e ele cantou o “Águia que vais tão alta” maravilhosamente. Deram-lhe aplausos. E no fim há um sujeito, um antigo estudante, um velhinho, que vai ter com ele e lhe diz “Você é realmente um cantor extraordinário e deve ser muito feliz”. E diz ele, “Você está enganado”, e acrescenta com aquele ar dele “Eu nem gosto do Fado de Coimbra”. Isto mostra que realmente o Zeca Afonso tinha de evoluir para outro tipo de música.
AMN: Chegou a acompanhar essa evolução?
APB: Não, não acompanhei, porque eu depois da Suiça, aí por 1959, afastei-me. Foi uma fase muito difícil para mim, porque eu preparava a minha tese de doutoramento. Eu doutoro-me em 1961.
Guitarrista que aparece nessa altura com uma pujança formidável é o Jorge Tuna, o Portugal que vem de mim, da minha geração, mas que começa a compor e, sobretudo, já com os poemas do Manuel Alegre a fazer as trovas e baladas. O Portugal acompanha o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o António Bernardino. É curioso, o António Bernardino fez lembrar na altura em que apareceu uma espécie, como é que eu hei-de dizer, de Manuel Julião. Um homem versátil, cantava tudo, fado clássico sim, gostava muito dos fados do Ângelo de Araújo, a canção. Eu até 1961 não participei, ainda que uma vez ou outra acompanhasse o Zeca Afonso, sobretudo em férias.
AMN: E ele já em ruptura?
APB: Já! Ele passou férias em minha casa no Algarve, várias vezes, ele era um homem despegado do dinheiro e às tantas chegava ao meio do mês de Agosto e não tinha o dinheiro e ia para minha casa para ter autonomia. Era realmente um artista, um poeta. E nessa altura acompanhei-o, por exemplo na “Balada do Outono” e numa série de canções que ele fez por essa altura. Eu encontrei-me perante um Zeca Afonso a cantar coisas completamente diferentes.
AMN: Na Crise Académica de 1969 estava em Coimbra?
APB: Estava em Coimbra.
AMN: É correcto afirmar-se, como às vezes se diz, que em 1969 se produziu o disco “Flores para Coimbra”, os cantores desertaram e tudo acabou?
APB: A Crise de 1969 provocou um “bouleversement” em Coimbra.
AMN: A linha clássica era apodada de “reaccionária” e de “fascista”…
APB: Exacto. O fado tradicional e a guitarra foram identificados com o regime, com uma carga negativa. Mas nunca até aí o fado tradicional e a guitarra tinham sido identificados com o regime. Normalmente no meio havia contestatários. Muitos guitarristas e cantores eram tipos normalmente não “arregimentáveis”. É evidente que se dizia “é um fado reaccionário”, “é um fado conservador”. É o próprio regime ou as figuras afectas ao regime que agarram o fado de Coimbra armados em protectores, independentemente, meu caro Nunes, de um certo feitio sempre conservador do antigo estudante de Coimbra. Se um velho está sempre a dizer “no meu tempo é que era bom”, o antigo estudante de Coimbra também diz “no meu tempo é que era bom, assim e assado”. Inclusivamente, eu, neste momento, sou capaz de já ser um conservador! Eu já estou a entrar na idade do conservadorismo.
AMN: Assiste-se efectivamente a uma dispersão de cultores com a Crise de 1969?
APB: Há uma dispersão e uma desmotivação dos cultores. 1969 foi um momento tremendo. E repare, se nós quisermos ser justos relativamente ao Zeca Afonso, eu recordo-me perfeitamente dele ter afirmado por volta de 1974 que não queria guitarras a acompanhá-lo, que não queria “raquetes” a acompanhá-lo, como ele chamava à guitarra. Ele não cantava fado de Coimbra. Fado de Coimbra era uma coisa abominável. Ele aí teve também um papel de certa maneira prejudicial. Prejudicou o fado de Coimbra. Depois ele fez contrição. E quando edita o disco de fado de Coimbra (1981) ele vem desdizer tudo quanto tinha afirmado. Isto significa que a partir de 1969, e indo até 1974, há enorme confusão.
AMN: Em que contexto aparece então o grupo que dinamizou logo após 1974?
APB: As coisas aconteceram de uma maneira muito curiosa. Quando a Secção de Futebol da Associação Académica sai daqui, é extinta, e se transforma no Clube Académico e vai para aquele edifício dos Arcos do Jardim, estamos em finais de 74, eu começo a frequentar praticamente todas as noites o Clube Académico. Eu pertencia ao grupo dos queriam manter a Académica (extinta equipa de futebol da AAC), ainda que transitoriamente se lhe pudesse dar outro nome, mas que não morresse. Que não se apagasse a luz!
E nessa altura aparece-me o Alfredo Correia, também agarrado à Académica, que eu conhecia vagamente e que nem sabia que cantava. Mas o Alfredo Correia, que é um apaixonado pelo fado mantinha contactos com o Jorge Gomes e com o Manuel Dourado. Nas nossas conversas sobre o que era a Académica e a destruição das tradições (embora nós fôssemos politicamente o inverso, eu era do Partido Socialista, ele era um homem que depois vem a apoiar o MIRN, não havia nada entre nós, politicamente), no entanto estávamos unidos pelo ideal da Académica, a Canção de Coimbra de que ele era um apaixonado, disse-me “sou apaixonado pela CC e até canto umas coisas”. É assim que começa. Ele diz, “Eu conheço dois rapazes que tocam muito bem” e começámo-nos a juntar em casa do Alfredo Correia nessa altura.
O que é que resolvemos? Resolvemos, sempre que possível, mostrar que a guitarra e o fado eram património que não devia ser destruído. Fomos a várias festinhas, ao Colégio de São Teotónio. Havia receptividade. Começámos a fazer espectáculos mais propriamente pedagógicos, do que de execução e exibição de guitarra e de canto.
AMN: A Academia mantinha-se alheia a este movimento?
APB: A Academia estava alheia a isto. Aparece o Mesquita nessa altura, também começou a aparecer na sede do Clube Académico. Esse já tinha cantado enquanto estudante, embora não tivesse sido um cantor de primeiro plano. E o Alfredo Correia não tinha sido, nem de primeiro, nem de segundo, nem de terceiro, nunca tinha cantado, se cantava era na casa de banho (risota). O que é certo é que constituímos aí a base do grupo onde se virá a integrar o Portugal. O grupo tinha como objectivo reafirmar o fado e a guitarra., entusiasmar o público. Com este grupo nasce a ideia de fazermos seminários do fado.
AMN: Falemos das adesões aos seminários.
APB: Da Câmara Municipal houve a possibilidade de captar adesões, sobretudo da parte do Rodrigues Costa, que era o homem do Turismo. A Câmara patrocinou a realização da iniciativa.
AMN: A Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra (AAEC) aderiu?
APB: A AAEC é também chamada e adere, a AAEC em Lisboa e os cantores que estavam em Lisboa, os da 2ª Geração de Ouro, não o Zeca Afonso. Nós fomos buscar para esse Seminário (1978) o núcleo duro constituído pelos antigos cultores, o Camacho, o Alexandre Herculano, fomos buscar todos os que estavam em condições ainda de cantar ou de dedilhar, do grupo do Porto, o Florêncio Neto de Carvalho, nós fizemos uma chamada de todos aqueles que podiam dar testemunho.
AMN: Os seminários promoveram debates…
APB: Foram um conjunto de debates. Só que continuava sempre a mesma luta entre os que consideravam que o “fado verdadeiro” era o fado tradicional clássico e os que defendiam a evolução.
AMN: Sentiu-se ameaçado?
APB: Eu senti-me ameaçado na 1ª Serenata que houve em 1978 na Sé Velha, manifestação de pujança a que vieram todos os de fora cantar, até os que eram de 2º plano, vieram todos. Nessa serenata do 1º Seminário eu senti-me ameaçado, por um grupo que havia ali de extrema-esquerda, que se juntava no Café Oásis, que gritava… enfim. Não posso dizer que tenha sido agredido, mas o ambiente era extremamente hostil. Posso dizer-lhe que eu me orgulho, com o Jorge Gomes, com o Portugal, com o Dourado, com o Correia, com o Mesquita, de ter lutado bravamente para que não morresse o fado.
Ninguém na Academia estava informado– tinha havido um hiato enorme, de 1969 a 1976, já tinha havido praticamente duas gerações académicas que não tinham sabido absolutamente nada sobre o fado. Da nossa parte havia aqui um efeito pedagógico, de influência, mas havia uma coisa que era fundamental, é que se criasse então uma “escola de fado e guitarra”. Com o patrocínio da Câmara surge a Escola Municipal do Chiado (1978-1990). Lutámos para que o Jorge Gomes fosse ensinar nessa escola que começou a ser frequentada por jovens. O nosso sonho era que se criasse na AAC uma Secção de Fado, isso é que interessava. A Secção de Fado (da AAC, 1980), no início tinha sempre a competição com a Escola do Chiado, e fortíssima. A Academia começa novamente, e pujantemente, a cultivar o fado e a guitarra. Eu tenho dito isto muitas vezes, neste momento, em Coimbra, há muito mais gente a cantar e a tocar do que havia no meu tempo. Claro que você poderá dizer “tudo isso é relativo, se a Academia do seu tempo tinha 3 mil a 4 mil alunos, a Academia hoje tem 18 mil”. A massa crítica é muito maior, você tem mais possibilidades de entusiasmar o público.
AMN: No caso daqueles dois discos que foram gravados com o Prof. Mesquita, eles constituem o corolário do trabalho encetado pelo seu grupo nos anos 70?
APB: O Mesquita…
AMN: O Alfredo Correia não quis gravar?
APB: Recebi ontem uma carta do Alfredo Correia, que está no Porto, que me diz “não tenho cantado e, apanhei por causa de umas bebidas geladas e outras asneiras uma rouquidão que me afecta… durante uma semana não pude falar… espero ficar bom porque quero preparar quatro composições para um disco consigo”. Ele não gravou nessa altura (1979) apenas porque lhe surgiram problemas na vida familiar. Os discos do Mesquita são corolário de todo o meu trabalho, fundamentalmente com o Mesquita.
AMN: Vocês foram pegar em reportório revivalista?
APB: Aí fomos buscar composições antigas, e até muito antigas e pouco cantadas. Sobretudo com uma preocupação: estabelecer um maior diálogo entre a guitarra e o cantor. No trabalho do Mesquita, depois continuado com o Octávio Sérgio, houve a preocupação de fugir ao “prega-e-racha”!
AMN: Vocês sentiam que ao recuperar este género artístico tinham de fazer algo para que ele pudesse evoluir?
APB: Exacto!
AMN: Existiam as brechas abertas pelo Zeca Afonso, pelo Adriano, que já vinham dos anos 60, pelo Luiz Goes…
APB: Há aqui uma coisa para a qual eu gostaria de chamar a atenção. Relativamente à evolução do fado, a nossa preocupação era que o fado não caísse na melopeia, que adquirisse maior expressividade, uma interpretação mais rica.
AMN: Aquele LP relativo aos anos 70 e 80 que vem na antologia “Tempo(s) de Coimbra” (1984) é já uma tentativa de concretização dos vossos objectivos?
APB: É. Já é uma tentativa de enriquecer e de tirar, tanto quanto possível, uma certa forma de cantar arrastada, romântica. Dar-lhe maior virilidade…
AMN: O Prof. Mesquita, no meio de tudo isto, era um homem atento ao que se tinha feito de inovador na década de 60?
APB: Ele propõe uma nova forma, novas formas. Ele é responsável por uma grande evolução do fado de Coimbra. Ele estudou a tradição, cultivou muito, sempre, o estilo do Goes, o estilo do Zeca Afonso, do Adriano. Pretendeu desenvolver essas linhas, em nítida luta contra os tradicionalistas do fado como o Dr. Teixeira Santos, que é profundamente ligado ao romântico.
AMN: Da linha do Menano?
APB: Da linha do Menano, ele ainda nem sequer compreendeu o trabalho do Edmundo Bettencourt (risos).
AMN: Em sua opinião, o público, seja ele académico ou outro, compreendeu a mensagem artística do último disco do Prof. Mesquita (“Ecos da Canção Coimbrã”, 1988)?
APB: Aí é que está… Nós quando começámos a lutar pela recuperação do fado de Coimbra…
AMN: Desculpe a minha insistência. Não acha que os grupos estudantis do momento, em termos de composição e de divulgação, salvo algumas excepções, estão caídos num revivalismo imenso em termos de letras, e de melodias?
APB: Eu penso que você não deixa ter razão. Eu tenho sido surpreendido, quando colaboro em espectáculos, ou quando ouço espectáculos de conjunto com novos e antigos, ou até quando ouço serenatas como a Serenata Monumental, aqueles que eu considero os velhos têm a ânsia para renovar, e verifico que os novos estão agarrados a coisas muito tradicionais, tanto na música como no poema. Eu verifico que se mantêm, eu não digo que eles sejam mal cantados, não faço juízos de valor, nem quero fazer…
AMN: Mas há interpretações que são “críticas” pela sua manifesta falta de qualidade?
APB: Penso que nem sempre as interpretações são fidedignas. Muitas interpretações não tiveram em conta o conhecimento do original, não tiveram em conta a verdade daquela música, não se compreendeu aquela composição. Canta-se arrastadamente, canta-se sem expressão e deturpa-se muita coisa. Eu não quero tirar valor a todos estes jovens, mas a verdade é que da parte deles não tem havido uma atitude de renovação.
AMN: Caminhos possíveis para a CC neste momento?
APB: Eu penso no seguinte. O tempo de vida académica é curto. Como ainda ontem eu falava com o Jojó, o estudante que venha frequentar a Secção de Fado, pode acontecer que ele já traga consigo um certo conhecimento mais ou menos integrado e pode aperfeiçoar, ou então fica-se por meia dúzia de acordes, porque durante o tempo que ele está aqui a estudar ele não tem maturidade nem atinge a performance necessária. Embora os guitarristas tenham, relativamente aos cantores, uma escola muito mais actuante. Realmente o Jorge Gomes desenvolve um trabalho de ensino de guitarra que dá bases notáveis. Um guitarrista tem mais possibilidades do que um cantor. Penso que a escola de canto não acompanha a escola de guitarra. Por outro lado, a renovação tem partido de antigos estudantes ou de estudantes terminais. Veja o caso do Cravo.
AMN: Onde situa o Cravo? Acha que ele faz um trabalho de continuidade ou é um vanguardista?
APB: Eu penso que em determinada altura ele foi demasiadamente continuador do Goes. Neste momento, daquilo que eu lhe ouvi ultimamente, penso que ele está no bom caminho…
AMN: O Cravo definiu o seu estilo e emancipou-se?
APB: Emancipou-se. Eu penso que a CC poderá explorar outros temas, outros poemas e outras formas. Também o Mesquita ao ir buscar os poemas dos grandes poetas portugueses procurou dignificar a qualidade da mensagem. No Mesquita nota-se uma preocupação com a qualidade da mensagem, já não apenas o “ó lua que vais tão alta redonda como um tamanco” (risos). Aí penso que o Mesquita fez escola e o Cravo segue-lhe as pisadas. Nos jovens, não sei!
AMN: Pensa que a mulher poderá vir a ter um papel importante na Canção de Coimbra, ou demorará um elemento passivo? Falo em termos globais, não da serenata, mas de espectáculos onde pudesse participar na interpretação vocal, feituras de músicas e de letras, tocar instrumentos.
APB: Penso que a mulher pode ter lugar na Canção de Coimbra, mas lugar só em determinado tipo de Canção de Coimbra. Eu defendi sempre que a mulher deveria participar. Eu estou a dizer que temos de tirar a Canção de Coimbra do gueto, do colete de forças, do gueto coimbrão. Estou a lembrar-me de uma Teresa de Noronha. O que tem de haver é uma escolha dos temas e isso implica uma evolução.
AMN: Admite que a mulher-estudante possa desempenhar um papel activo na CC, fazendo letras, participando em recitais de guitarra, cantando determinados temas num espectáculo?
APB: Então não pode?! Admito isso, mas perfeitamente!
AMN: Estou a insistir neste assunto porque a noite do último sarau da Festa das Latas (Nov. 1991), a Rádio Universidade fez um inquérito aos estudantes. Maioritariamente os homens responderam que sim, as mulheres inquiridas responderam que não. Não lhe parece um indicador curioso?
APB: Isso é curioso! Então é porque elas entendem que realmente a Canção de Coimbra deve continuar a ser um presente de declaração, um presente de conquista amorosa. No fundo não querem que a CC perca o seu papel romântico, lírico, de afirmação do interesse do homem. Mas, para mim, friamente, a mulher tem um lugar…
AMN. Quais são as grandes questões que se colocam hoje à Canção de Coimbra? O debate sobre a nomenclatura ainda tem pertinência?
APB: Não tem. Só tem na cabeça dos conservadores que não aceitam a evolução.
AMN: Há garantias de que a CC está recuperada e vai sobreviver. As grandes questões quais são?
APB: Cabe um papel muito importante à Secção de Fado da AAC e aos organismos académicos.
AMN: Não estaremos a viver tempos de reverso da medalha? Uma CC recuperada e cristalizada para os turistas? Como vê as “casas de fados” que começaram a aparecer em Coimbra?
APB: Não considero que isso sejam perigos. Uma das batalhas que deve ser mantida é, sempre que possível, tornar a CC apetecível. Ela é muito pouco acessível. Nós temos de lhe tirar o carácter elitista. A CC, sendo originariamente proveniente de uma massa cultivada, na medida em que o estudante universitário constituía uma elite intelectual, é preciso que ela seja apreendida pela população e seja cantada pela doméstica. Tem de ser descodificada e aí a comunicação social tem uma importância colossal.
Eu andei no TEUC. No início dos anos 50, eu e o Goes acompanhámos o TEUC, mas tínhamos a sensação de que o TEUC considerava que a CC era uma arte menor que não tinha lugar no espectáculo teatral. É preciso acabar com isso. É preciso que os organismos académicos se façam sempre acompanhar com guitarristas e cantores.
AMN: Está a sugerir uma democratização da CC e a sua adequação ao mundo do grande espectáculo. Poderíamos falar aqui de uma questão quente dos últimos anos, o aplauso em galas de CC. Há facções que não aplaudem os espectáculos. Nos saraus há quem grite “ó caloiro cala-te”.
APB: Estou a par dessas questões. Infelizmente. Em 1958 eu fui assistir a um sarau da Queima das Fitas. Estava no balcão do Teatro Avenida com a família. Uma das actuações pertenceu a um grupo de guitarras que foi tocar. Eles tocaram três peças. Quando acabaram de tocar a primeira eu levanto-me a aplaudir e fui a única pessoa da sala a aplaudir. Eu distingo duas coisas, serenata e espectáculo. Se nós estamos a fazer uma serenata na noite, é óbvio, por definição, a serenata na noite não tem assistência, só tem a menina. Uma serenata na Sé Velha, como serenata, não deve ter aplausos. Não se justificam. É um atentado à serenata. A tosse (=pigarro) não constitui aplauso. É uma doença de garganta! Recordo-me que o Florêncio Neto de Carvalho, numa serenata que veio fazer, já depois do 1º Seminário, começou a ouvir a tosse. Foi ao microfone antes de cantar e disse “Estou abismado. A noite não está fria, não se justifica que toda a gente esteja constipada. Mas que raio de aplauso é este?”
Quando se diz que “um fado é para ser cantado ao firmamento”… Isto foi dito no acto de lançamento do livro que ontem foi ali apresentado (“Guia do Caloiro-1991”, Coimbra, Edição da DGAAC, Novembro de 1991). Quando a guitarra e a canção são exibidas num palco, há que respeitar o público e que comunicar com ele. É evidente que se o público gosta aplaude, e deve-se-lhe dar esse direito.
Nós que vamos para um palco devemos ir ao encontro do público. Eu tenho sempre uma dupla preocupação. Na medida do possível, quero lançar uma mensagem nova. Por outro lado, faço o gosto ao público. Quando se lhe canta o “Coimbra tem mais encanto”, toda a gente entende. Ninguém entende neste país que um grupo não cante o “Coimbra tem mais encanto”. É verdade. Quando aparece alguém a dizer “isso é uma coisa ultrapassada”, “isso não presta para nada”, eu não faço isso. O público reage extremamente mal. Cantamos o “Coimbra tem mais encanto” e depois interpretamos uma nova balada feita pelos nossos cantores, ah, lança-se a mensagem “eles continuam a progredir”. Há aí coisas novas muito lindas. O que não devemos é ficar só no “Coimbra tem mais encanto”.
AMN: Terminados os seminários, não fará falta implementar encontros onde todas estas questões pudessem ser debatidas?
APB: Acho que sim. Bem vê, a CC e as tradições. Eu nunca vi tantas capas e batinas como agora. Mas, da mesma maneira que não uso o smoking todos os dias e não estou à vontade, eu vejo os estudantes de Capa e Batina com ar de circunstância que eu não tinha, já não vejo nenhum estudante de capa traçada. Já uma vez ensinei um estudante a traçar a Capa…
(No final da entrevista, a conversa solta é interrompida quando o gravador se desliga automaticamente no fim do lado B da cassete)

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