terça-feira, setembro 12, 2006

A OUTRA FACE DO ESPELHO

ERA LONGE. PERDEMO-NOS
José Henrique Dias*
Quase me apetece dizer que aprendi a ler em O Despertar. Meu pai aparecia com o jornal debaixo do braço, sentava-se a ler e fazia alguns comentários cujo significado me escapava. Eu às
vezes abeirava-me, entre o seu colo e a mancha de letras, meu pai apontava algumas e dizia-lhes o nome. Assim as fui reconhecendo, recolhidas das colunas de informações sobre a guerra e de acontecimentos da vida coimbrã. Lembro-me de um dia meu pai entrar em casa e dizer Nápoles capitulou. Eu não sabia o que era Nápoles e de capitular recolhi algum tempo depois que os aliados iam ganhar a guerra. Quando fui para a Escola da Boavista, a Don’Ana, que era a professora, vestia de preto e usava chapéu. Do alto do estrado, estava protegida pelos retratos de Salazar e de Carmona. Mais do que pelo Cristo que eles escoltavam, na parede por cima do quadro preto. Sobre a secretária havia uma régua ameaçadora, de que tivera notícias uns anos antes de a conhecer. Os mitos do medo reproduziam-se. Quando fores prá escola… Não havia traquinice ou demora nas brincadeiras nas escadas da Sé Nova que não prenunciassem a escola disciplinadora que parecia ter sido construída e instruída para nos meter na ordem. Se soubesses o que custa mandar, mais gostarias de obedecer. Coisas do ditador. Torcia-se o futuro de pequenino, como o pepino. Torcia-se o destino. Morava na Rua Rego d’Água. Era uma rua estreita e curta, entre o Largo da Feira e o Largo de S. João. No Largo da Feira havia a escola das meninas, que nos intervalos vinham para fora fazer rodas e cantares pelas mãos da senhora Rute, que era a contínua. Usava uma saia rodada que lhe cobria os pés. A senhora Rute era diferente das professoras. Ninguém lhe chamava dona, vestia uma blusa de chita e não usava chapéu. A senhora Rute era diferente da senhora Palmira, a contínua da minha escola. A senhora Palmira era igualzinha às mulheres do campo, que vinham em revoadas visitar os museus uma vez por ano. Na minha escola também havia meninas. Mas nada de misturas. No Livro da Primeira, as letras d’O Despertar viravam maiores e mais redondas e tinham por perto uns desenhos. O A era de águia, o E de égua, o I de igreja, o O de ovos e o U de uvas. Já sabes o A.E.I.O.U?. Era a primeira grande porta do conhecimento. Eu já sabia do colo do meu pai e do jornal, até mesmo os ais e uis do rapazinho que caía sobre piteiras. Antecipava o D de dedo e de dói-dói. Mas o que me fascinava era o jardineiro de chapéu de palha a regar as flores. Ainda hoje, sempre que lanço um jota, que então era “jê”, me lembro do jardineiro. O que eu queria era ser jardineiro. Ter um chapéu de palha e regar as flores. Nem por ter a esquadra ao pé da porta alguma vez quis ser polícia. Prendiam as pessoas que não paravam e os homens que não tiravam o chapéu quando ao Domingo a bandeira subia pela manhã e descia ao fim da tarde, no mastro por cima da porta. A polícia estava no casarão que ia do largo de Feira até à Rua Larga e onde também funcionava o Governo Civil. No alto da frontaria, um santarrão dominava o largo e confrontava-se com o galo da cúpula da Sé Nova. Está desde há muito no Bairro de Celas, acompanhou os salatinas migrantes. Um dia o galo caiu, era de ferro e enorme. Por sorte não apanhou nenhum de nós a jogar à malha ou ao gavião. O casarão, velho convento ou colégio, foi condenado a labaredas “administrativas”, para se poder construir a Faculdade de Medicina. Demorou menos a demolir que o Arco do Castelo. Eram tempos de fome e de medos. Bichas para o pão, senhas de racionamento. Nas janelas colavam-se tiras de papel por causa do ataque aéreo, que nunca veio, mas as casas ruíram e as ruas sumiram-se debaixo de entulhos. Uma após outra, num avanço de camartelo para a glorificação do regime em torno do que chamavam Alma Mater. Em O Despertar, emoldurada num canto, a sentença da asfixia, “Visado pela Comissão de Censura”. A Don’Ana, depois a D. Ilda, misturavam padres-nossos com a maldita tabuada dos noves e as reguadas. Na quarta, o senhor Carmálio ensinava que Manuel, O Caganeta, é um aposto ou continuado. No livro de História falava- -se de barafunda republicana e perguntava-se quem salvou Portugal do inferno. Cedo aprendi quem lá o meteu, quase até eu ser avô. O Caganeta acho que se chamava Ricardo e tinha a farda da Casa dos Pobres. Manuel Ricardo? Os estudantes desfrutavam a sua falsa ira a troco de um cigarro. A Alta morreu e os meus colegas de escola, tantos deles, foram para o Bairro de Celas. Era longe. Perdemo-nos. Eu subia ao longo da Sereia para o liceu, alguns desciam à mesma hora, a caminho das suas lojas ou das suas oficinas. Aprendizes de marçano ou das mais variadas artes. Gente nobre. Pessoas notáveis. Mas a Coimbra de então fortificava distâncias entre os que estudavam e os que trabalhavam. Éramos uns tontos. Quem me dera encontrá-los para lhes pedir perdão pela estúpida sobranceria da capa e batina.
* Professor Universitário
Artigo retirado do jornal semanário O Despertar de 8 de Setembro de 2006.

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