segunda-feira, outubro 30, 2006

Na inauguração da Rua Doutor Salvador Dias Arnaut

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Coimbra
Exmo. Senhor Vereador da Cultura
Exmo. Senhor Pró-Reitor para a Cultura
Exmo. Senhor Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Exmos Familiares, em especial seu filho e seu neto, os Drs. Salvador Jorge Forjaz de Lacerda Arnaut e Salvador Manuel Fareleiro Arnaut
Caríssimos Colegas e Amigos
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Tempo de júbilo este em que, neste lugar, me associo a tão justa e oportuna homenagem que a Câmara Municipal de Coimbra quis prestar ao Professor Doutor Salvador Dias Arnaut, consagrando o seu nome numa rua desta urbe. Assumo assim a grata responsabilidade de exprimir, com a brevidade exigida, o testemunho de apreço e gratidão pela figura e pela obra de um Mestre e de um Homem de méritos e qualidades excepcionais. Que não sendo, aliás, particularmente amante de manifestações públicas e de honrarias oficiais, não deixaria, porém, de ficar sensibilizado com esta forma de ver perenizado o seu nome numa rua da cidade que tanto amou e defendeu e que tão profundamente o marcou.
Era conimbricense de origem e de formação. Nascido a 25 de Outubro de 1913 em Penela, cuja Câmara lhe rendeu já há alguns anos justos preitos de gratidão, fez em Coimbra todos os seus estudos. Viveu, enquanto estudante, no velho burgo de Celas, bem junto do medievo mosteiro de Santa Maria. Residiu aqui muito próximo do lugar onde nos encontramos, na Rua dos Combatentes, enquanto fez o seu Curso Médico, justamente aquele que lançou a moda do Grito Académico (FRA) [1]. Licenciado em 1940, exerceu durante algum tempo a profissão de médico na Delegação de Saúde de Coimbra e a de professor na Escola de Enfermagem Rainha Santa Isabel.
Dois anos depois, em 1942, casou com a Senhora D. Maria Madalena de Bettencourt Forjaz de Lacerda, açoriana que conheceu em casa de Eugénio de Castro. O próprio poeta, cuja filha era casada com um irmão de D. Madalena, haveria de apadrinhar o casamento. Viveram ambos a maior parte da sua vida na emblemática Couraça da Estrela, no núcleo da histórica medina da cidade, à sombra da sua amada Universidade e debruçado sobre as águas do Mondego, de onde bem podia admirar os verdejantes espaços onde vivera a sua bela Inês.
Tocado desde muito cedo pela História, o médico Salvador Dias Arnaut cursou Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras, onde concluiu a licenciatura em 1951, com 18 valores, e o doutoramento, em 1960, com 19 valores. O mérito da sua dissertação de licenciatura A Batalha de Trancoso fez dele cidadão honorário desse concelho. O alto valor da sua dissertação de doutoramento A Crise Nacional dos fins do século XIV. I. A sucessão de D. Fernando fez dele um medievalista de renome, e dela uma obra clássica de História Medieval Portuguesa, marcada pela solidez e rigor da sua investigação e pelos avanços firmes no esclarecimento da história política e social da crise dos finais do século XIV.
Nas suas investigações sobre a problemática dos finais do século XIV, o quotidiano, a alimentação, a medicina ou sobre a história local, Coimbra — cidade ou território — emerge como o seu lugar. Revelado nos estudos sobre o Mestre de Avis ou o Infante D. Pedro, mas sobretudo nos trabalhos com que tantas vezes o identificamos: Coimbra e o drama de Inês de Castro (1970), O episódio de Inês de Castro à luz da História (1972) ou Os amores de Pedro e Inês: suas consequências políticas (1986).
O historiador e intelectual de grande probidade científica, de grande abertura de espírito e de sagaz capacidade construtiva assoma em toda a obra. Almejando a exacta reposição dos factos na sua veracidade histórica e espiando, por detrás do agir das suas personagens, os traços singulares do seu carácter, do seu rosto, da sua silhueta. (Re)descobrir a verdadeira Inês de Castro foi também uma forma de procurar conhecer o Homem no seu todo, objectivo que perseguia tenazmente.
Uma História humanizada e viva que se reflectia claramente na História que transmitia, em conferências ou palestras, e ensinava, nas múltiplas e díspares cadeiras que leccionou: da História Geral à História de PortugalMedieval, Moderna ou Contemporânea —, da História da Expansão Portuguesa à História do Brasil, passando pela Formação do Mundo Moderno e Contemporâneo. Não apenas a alunos nacionais, mas também a muitas gerações de estrangeiros, no Curso de Férias e nos Cursos Anuais para Estrangeiros, durante cerca de duas décadas. Agradados com o que ouvíamos, sentíamo-nos espectadores em interacção com as personagens e os tempos que estudávamos. Um magistério que prolongou muito para além do limite de idade, pois, jubilado em 1983, continuou a colaborar, até 1995, como professor catedrático convidado, nos Mestrados de História Moderna e de História da Expansão. A insatisfação do saber, o gosto de investigar, o desejo de publicar e o prazer de ensinar permaneceram nele até aos seus últimos dias.
Com o mesmo desvelo e dedicação com que se entregou à investigação e à docência, cumpriu os cargos que lhe foram cometidos. Foi membro do Senado da Universidade, subdirector da Faculdade de Letras (1971-1974), Presidente da Comissão Científica do Grupo de História (1978-1984), Director do Instituto de História Ultramarina (1965-1974; 1978-1984) e Director do Instituto de Paleografia (1983-1984). Foi também ilustre membro da Academia Portuguesa da História.
Homem profundo, sabia sentir o fascínio da Natureza e da vida, em toda a plenitude. Em retiro, na proximidade da Natureza, na convivência da sua austeridade e serenidade, produziu os seus mais importantes escritos ou as suas poesias. Dotado de impresssionante sensibilidade aos valores estéticos, a paisagem extasiava-o, como se ela fosse uma obra de arte. Sabia olhar e interiorizar placidamente a Natureza, do mesmo modo que sabia escutar e penetrar o Outro. Uma relação que sabia exprimir pelas mais belas palavras interpenetradas por uma forte musicalidade, qual poeta criador, tal como Mário de Sá-Carneiro exprimindo, por música, a sua interioridade, cujo poema Anto o Doutor Arnaut tanto admirava e tantas vezes nos repetia. E qual Anto com quem se irmanava na emoção perante Coimbra e a sua paisagem, como tão bem o manifestou em António Nobre e a paisagem de Coimbra.
O Doutor Arnaut amou devotadamente Coimbra e tudo quanto respeitava à tradição coimbrã. Inúmeras e permanentes eram as histórias que nos contava — geralmente burlescas e hilariantes, sobretudo referentes a Lentes, Estudantes, Futricas e Tricanas da Baixa ou da Velha Alta de Coimbra. Qualquer local da cidade lhe servia para evocar factos aí ocorridos, anos ou séculos atrás. Qualquer situação prestava-se igualmente ao relato de outras em circunstâncias semelhantes. O narrar de episódios guardados na sua memória até ao mais ínfimo pormenor era uma das suas características mais relevantes. Assim animava as noites de tertúlia que manteve durante anos com alguns de nós.
Se tantos outros como o Doutor Arnaut, pelos exemplos de vida, mereceram a atribuição do seu nome a uma rua, em um aspecto singular, dificilmente qualquer outro o terá merecido mais do que ele, pelo simbolismo que a rua teve na sua vida. A rua foi verdadeiramente um seu lugar de vida. O Doutor Arnaut, Historiador e Pedagogo, é identificado pela obra científica que produziu e soube transmitir, mas também por deambular connosco, em movimento constante, ao longo dos corredores da Faculdade de Letras, dando-nos, peripateticamente, lições de História e de Vida. O Homem, o Cidadão Salvador Arnaut é identificado como o que deambulava permanentemente pelo Botânico e pelas ruas de Coimbra, sempre a pé, acompanhado do seu cão, com um olhar atento a todos os pormenores, sobretudo da Alta, onde residia e conhecia como ninguém. E como o Homem Bom que gozava de simpatia geral e que, na rua, convivia com o todo o tipo de pessoas, em especial com os mais simples, a todos ouvindo e aconselhando.
É este o Doutor Arnaut que permanece na saudade dos que o conheceram e façamos votos para que outros, que como ele, no futuro deambularem por esta rua ou, sobretudo, nela forem moradores, vendo nesta placa escrito o seu ilustre nome, procurem conhecer-lhe a obra e, através dela, melhor conhecerem e amarem a cidade que agora o homenageia. Só assim esta placa cumprirá a sua missão e terá sentido a singela cerimónia em que participamos.

Leontina VENTURA
(Prof.ª de História Medieval da FL/UPInstituto de História Económica e Social)

(texto enviado por Armando Luís de Carvalho HOMEM,
que penhoradamente agradece à Autora a pronta disponibilidade
para colaborar neste blog)


[1] Cfr. AMNunes, blog http://guitarradecoimbra.blogspot.com (de 20/10/2006).

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