terça-feira, dezembro 19, 2006

Nótula sobre a discografia de Artur Paredes (anos 50)


Armando Luís de Carvalho HOMEM


Em 04 de Setembro de 2005, Octávio Sérgio colocou aqui um post com motivação no CD Artur Paredes (ed. MOVIEPLAY, 2003) – cuja capa se reproduz –, o qual remasteriza 8 temas gravados em 2 EP's de 1957, de certa forma reeditados em 1961 (com Carlos Paredes [g.] / Arménio Silva [v]). O texto que acompanha a reprodução é longo e apoia-se em trabalhos de José NIZA, Nélson Correia BORGES e Afonso de SOUSA. Em posts subsequentes, a reprodução das capas dos referidos EP's (ed. ALVORADA, MEP 60054 [capa de fundo amarelo] e MEP 600056 [capa de fundo azul-claro]).
Em boa verdade, este CD não remasteriza os EP's de 1957 mas as reedições de certa forma de 4 anos depois. Porque digo isto ?

a) O MEP 60054 inclui «Desfolhada», «Variações em mi menor», «Variações em ré menor n.º 2» e «Dança»;

b) o MEP 60056 contém «Variações em Ré Maior», «Canção do Ribeirinho», «Rapsódia n.º 2» e «Passatempo»;

c) ora o CD de 2003 não nos apresenta «Canção do Ribeirinho»; apresenta outra versão de «Passatempo»; outra é também a versão da «Rapsódia», e até com diferente título: «Cantares Portugueses»; e patenteia-nos «Balada do Mondego«, ausente dos EP's mencionados em a) e em b).

Como explicar estas discrepâncias ? Eis o lema para oportuno exercício, com aplicação de métodos da Crítica Textual[1]
Biógrafos – formais ou informais – de Artur Paredes (1899-1980) e de Carlos Paredes (1925-2004) e pessoas que os conheceram – ou, pelo menos, um deles – são unânimes em afirmar que a partir de um dado momento – a idade adulta de Carlos Paredes, por hipótese – as relações Pai / Filho foram tudo menos fáceis. As razões poderão ser múltiplas, algumas delas, porventura, da estrita esfera pessoal / familiar.
Mas haverá também uma razão musical:

· A maturidade criadora e executante de Carlos Paredes – já óbvia para os auditores atentos dos programas dos anos 40 na EN, 1.º programa («Guitarradas de Coimbra», com Artur Paredes / Carlos Paredes [gg.] / Arménio Silva [v.]) – terá, a dado momento, despertado um inequívoco 'ciúme' de Artur Paredes. Em muitas circunstâncias este terá achado que a «2.ª guitarra» fazia demasiado 'barulho' e como que 'abafava' o solista.

Terão sido circunstâncias como esta a ditar o desfazer do trio após as gravações de 1957, o seguir caminho a sós por parte de Carlos Paredes a partir de ca. 1960, acompanhado inicialmente por um dos antigos violas de seu Pai (António Leão Ferreira Alves [1928-1995] [2]) e depois por Fernando Alvim [3]; a gravação, ca. 1971, do single Balada de Coimbra [4] terá levado mesmo a um corte (ou quase) de relações.
Este 'ciúme' acabou por ditar um post-scriptum aos dois EP's de 1957 e, depois, as reedições de certa forma de 1961. Artur Paredes achou-se 'abafado' no «Passatempo» (no tema final em tremolo [refiro-me a grupos de 4 notas na mesma corda em movimentos alternados para dentro / para fora, reforçadas por bordão harmónico de duas em duas notas]), onde efectivamente na versão inicialmente vinda a lume ouvimos o prenúncio do Carlos Paredes de «Movimento Perpétuo», por hipótese. O mesmo terá sentido Artur Paredes em relação á «Rapsódia» (embora aqui o ouvinte, sentindo sem dúvida a «2.ª guitarra», tenha maior dificuldade em compreender o alegado 'abafamento' da 1.ª). Consequência: fazer retirar do mercado a versão original do disco que veio a ser o MEP 60056 e regravar – ou, eventualmente, aproveitar outros «takes» de estúdio – os temas «Passatempo» (agora com a «2.ª guitarra» mal se ouvindo no motivo final) e «Rapsódia n.º 2» (onde a «2.ª guitarra» é hiper-hiper-discreta, se é que existe na gravação…; na versão prevalecente há ainda uma alteração na frase inicial, em ré m, com desenvolvimento em «descida espanhola», compasso ternário [ré m / Dó M / Lá # M, 2.ª de ré]). Quem tenha passado por experiência de estúdio sabe bem que em vários EP's ou num LP de outros tempos ou num CD dos nossos dias 'sobravam / sobram', não raro, temas e «takes» [5]. Artur Paredes preteriu também a «Balada do Mondego» (vá lá saber-se porquê), repescando a «Canção do Ribeirinho» (uma excelentíssima interpretação, por sinal). Ou seja: do EP primitivo terão ficado tal-qual apenas as «Variações em Ré Maior».
É claro que houve quem tenha conhecido as gravações mandadas para o limbo. O caso mais marcante foi o de António Portugal (1931-1994), que num EP instrumental ca. 1965 – com Manuel Borralho (g.) / Rui Pato (v.) – gravou «Balada do Mondego» com a «2.ª guitarra» a executar os hoje inconfundíveis jogos de bordões em lá m, com que Carlos Paredes acompanhava o motivo A da peça [6]; e a sua interpretação da «Rapsódia» [7] seguia os cânones da versão que viemos a conhecer com o título «Cantares Portugueses».

As peças em causa sairão do limbo ca. 1978 – ou seja, a 2 anos da morte de Artur Paredes –, no LP Carlos Paredes / Artur Paredes [8]. E estas versões prevalecerão doravante em quantos se abalançarem à Obra de Artur Paredes: veja-se, por exemplo, a interpretação de «Passatempo» por Bruno Costa / Nuno Dias (gg.) / João Brito / António Paulino (vv.), inserta no CD Cordas do Mondego [9].

A observação que, para fechar, poderei produzir é a seguinte: se estão em causa gravações feitas para a ALVORADA nos anos 50 e hoje na posse da MOVIEPLAY, porque não um novo CD que TUDO contenha ? Onde possamos, lado a lado, ouvir as duas versões de «Passatempo», a «Rapsódia n.º 2» / «Cantares Portugueses» e a «Canção do Ribeirinho» a par da «Balada do Mondego» ?
Voto irrealizável ? Esperemos que não. Seria uma bela prenda de Natal que o editor discográfico nos poderia proporcionar…


Lisboa, 19 de Dezembro de 2006


NOTAS

[1] Abordei pela primeira vez algumas das questões que seguem em «Guitarra (A) de Coimbra em tempos de fim-de-tempo (ca. 1965-ca. 1973). Apontamentos e rememorações», Anais da U. Autónoma de Lisboa / série História, V/VI (2000-2001), pp. 333-348. Disponível no presente blog, post de 2005/05/09.
[2] Sobre este executante cf. José NIZA, Um Século de Fado, II. Fado de Coimbra, Alfragide, Ediclube, 1999, pp. 54-55.
[3] Cf. Octávio Fonseca SILVA, Carlos Paredes. A Guitarra de um Povo, Porto, Mundo da Canção, 2000, pp. 87-89 et passim. Note-se que nos anos 60 Carlos Paredes terá sido pontualmente acompanhado por Arménio Silva. Porque digo isto ? Na cripta da igreja paroquial de S. João de Deus (à Praça de Londres, Lisboa) existe uma exposição fotográfica permanente de actividades lúdico-culturais ali efectuadas. Com data de 1964 – e sem mais indicação alguma – pode ver-se uma foto de Carlos Paredes e Arménio Silva (figuras inconfundíveis) acompanhando um cantor que eu não soube identificar, mas que actua de capa traçada.
[4] Trata-se de um single de 'sobras' do LP Movimento Perpétuo (1971); além de «Balada de Coimbra», este disco contém «O Fantoche» e não «Canção de Alcipe», de Afonso Correia Leite, outra 'sobra' de Movimento Perpétuo, que talvez tivesse sido a opção inicial: o facto é que o título «O Fantoche» com subsequente indicação de autoria consta de uma tira de papel colada sobre a capa do disco; na dita consta «Canção de Alcipe»; Octávio Fonseca SILVA (Op. cit. supra, n. 3, p. 60) foi até hoje a única pessoa a fazer notar este facto; e será «Canção de Alcipe» (e não «O Fantoche») a ficar inédita até às eds. de inéditos em CD, nos anos 90. O contrário já foi dito por diversas vezes, inclusivamente em textos que acompanham a integral em CD's O Mundo segundo Carlos Paredes (2002). Mas trata-se, obviamente, de um erro.
[5] Veja-se a passagem de LP (1990) para CD (1997) do disco de Jorge Tuna, Guitarra (A) de Coimbra: o novo suporte permitiu a inclusão de 3 novos temas («Flores para Manuela», «As danças» e «Sol Maior») e um segundo «take» de um outro («Dança dos Duendes»); o CD é ed. JORSOM, J-CD 7013, 1997. Cf. o que a este respeito escrevi em «Jorge Tuna: para uma abordagem ternária de um Mestre da Guitarra de Coimbra», Revista Portuguesa de História, XXXVI/2 (2002-2003), pp. 397-416 (disponível em http://guitarradecoimbra.blogspot.com [post de 2005/04/05])
[6] EP ALVORADA AEP 60 927, s.d., lado A, faixa 1.
[7] Que recordo numa actuação televisiva de princípios de 1968, com Francisco Martins (g.) / Rui Pato (v.); voltei a ouvi-lo executar esta peça – com acompanhamento meu – em 1980 (Maio), no convívio que se seguiu à serenata do III Seminário sobre o Fado de Coimbra.
[8] Edição ALVORADA, LP S 08 88, s.d.; os temas em causa estão na face B, faixas 4, 5 e 6. Reed. no CD Carlos Paredes e Artur Paredes, ed. MOVIEPLAY, MM 37 036, 1994, faixas 12, 13 e 14.
[9] Ed. Secção de Fado da AAC, 1999, faixa 2. Esta versão pode considerar-se altamente meritória. Em contrapartida – e com mágoa o digo – é desastrosa (por deturpações múltiplas) a interpretação António Brojo (1927-1999) / António Portugal (gg.) / Aurélio Reis / Luís Filipe (vv.), contida na Antologia Tempo(s) de Coimbra. Oito décadas do Canto e da Guitarra (1985); regravada por António Brojo no CD Memórias de uma Guitarra (ed. EMI-VALENTIM DE CARVALHO, 1997, faixa 18), com Carlos de Jesus (g.) / Aurélio Reis / Luís Filipe / Humberto Matias (vv.).

relojes web gratis