quarta-feira, janeiro 31, 2007

Fiama Hasse de Pais Brandão e Os Hinos à Noite de Novalis

Modesta Homenagem em Breve Apontamento

Já Eugénio de Andrade escrevera que a poesia é inimiga do poético. Nesta aparente contradição se compreende a relação de Fiama com o público, no que toca à arte do verso. Preferiu a poesia ao palco, não no sentido do vero teatro, no qual também deixou obra de registo, mas no de uma atitude em que a poesia se basta a si mesma, e nisto tem a perene vitalidade que dispensa modismos de adrenalinas injectadas a gosto. Tão universal no princípio como no seu último verso, que fica sempre como mote para um recomeço de um breve fechar de pano. A vida bastou-lhe como afirmação.

Há todavia em si uma densa sensibilidade lunar e uma outra, solar, no mistério que é sempre a alma de um poeta. «...O Sol/ que perpassa em cumes e em cristas/ nasce nas arestas serranas do nascente/ e vai até ao mar em sete versos».
No sentir apolíneo poderíamos dizer que foi socialmente vigilante, por exemplo, em Barcas Novas, também, é certo, escrito numa idade em que o sangue está mais ligado ao corpo do que ao espírito. Recordamos o seu poema que Adriano Correia de Oliveira cantou (tivemos o privilégio de o ter acompanhado à “viola” uma única vez) com aquela voz de trovador, inquieta, inocente e simultaneamente doída, festiva e dolente. «São de guerra as barcas novas/ Sobre o mar com a sua guerra/ Barcas novas levam guerra/ E as armas não lavram terra». Ígnea forma de vida que levava Fiama a sentir as barcas enquanto nota dissonante no status quo de então; embarcações que anunciavam já outro manhã.

Mas é porventura o aspecto lunar (veja-se um dos seus primeiros poemas: «Mulher/que não canta/entretanto/cantá-la-emos») no mais fecundo sentido do termo, na acepção que há no Caos como possibilidade infinita e actuante, reorganizador de todas as forças, que podemos descortinar uma maternidade da sua palavra poética sustentadora e sobretudo capaz de todas as metamorfoses de vida. Se pensarmos em «afinidades electivas» como diria Goethe, dir-se-ia que Fiama Hasse de Pais Brandão, no seu mais recôndito interior foi atraída a uma das obras-primas de Novalis, Os Hinos à Noite, páginas de um romantismo filosófico amadurecido que ainda hoje preenchem o nosso quotidiano, quando encetamos a fuga possível, como num jogo do tempo a duas dimensões. E se, na versão dessa obra para a Língua Portuguesa, a pitonisa da palavra não plasmou, obviamente, qualquer ideia ou conteúdo, o certo é que a prosódia rítmica e a musicalidade que imprimiu ao texto vertido para o nosso idioma, nos faz acreditar que a poetisa, ela própria, comunga dessa poesia medular (por isso mesmo redentora) que há na obra de Novalis. Páginas de rara sensibilidade, numa forma que se furta à vulgar classificação da chamada prosa poética, ou poesia na extensão de certa prosa, epítetos que só condicionam a unidade singular que há no sentimento do poeta alemão, e que uma alma portuguesa transfigurou pela sonoridade de uma língua carregada de ancestralidade galaica.

Noite como redenção, desde logo, dos movimentos cíclicos dos ditos fenómenos naturais; noite na sua aparente quietude, passividade e escuridão. Porque a chave, se procurada, só na lei cósmica das alternâncias. Lemos no primeiro trecho que «A luz descerrou noutros espaços os seus álacres panais. Pois não havia ela de regressar para junto dos seus filhos, que a esperavam há muito com a fé da inocência?»
É sabido que uma desmesurada e constante actividade de permanente ritmo diurno acabaria com o que resta de uma forma de atenção unitiva à vida (uma outra, hoje, também estranha forma de vida) que se extingue na proporção directa da preocupação com lucros e bens apenas materiais. Este estado do coração e um certo estado da nação não permitem o necessário distanciamento para a visão fulgurante e serena da vida. «Mais celestes do que aquelas estrelas cintilantes nos parecem os olhos infinitos que a Noite em nós abre (...) Glória à rainha do mundo, à grande mensageira de mundos sagrados, a do amor extasiado –é ela que te envia até mim – doce amada – amável sol da noite – eis que estou desperto – porque sou teu e sou meu – revelaste- me a Noite como Vida – tornaste-me humano – devora de ardor espiritual o meu corpo para que, etéreo, eu possa misturar-me contigo mais intimamente, e seja então eterna a nossa noite de bodas» (Hinos à Noite).

O incidente (não acidente) que ocorreu no dia 19 de Janeiro com Fiama Hasse de Pais Brandão não é mais do que aquilo a que Pessoa chamou «a curva da estrada». Ele traz-nos o convite para uma nova leitura de Os Hinos à Noite, cuja primeira tradução, para a Assírio & Alvim, data de Setembro de 1988. Leitura apetecida à medida que a pujança solar, no calor externo dos dias, nos vai cobrindo da proximidade de nova primavera e depois verão. Aí se verá a noite como renovadora das forças julgadas incapazes, dos propósitos que se tornam exangues pelos venenos diários engajados. Aí se verá a noite plena (comungaremos também com Álvaro de Campos), a mãe universal a serenar todos os actos desvairados, a encorajadora de todos os propósitos apagados. O relento nocturno é o sémen de recomeçar. É Fiama que no-lo diz num dos seus poemas: «Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida/ pelo movimento, pela forma, pelo nome,/voltamos ao zero irradiante...»

Já que a mão delicada de Fiama nos trouxe Novalis, na doce penumbra da Língua Portuguesa, então leiamos um pouco mais de Os Hinos à Noite: «Retirou-se a alma do mundo com todas as suas potências, para mais profundo santuário, para mais elevada sede do espírito – para aí reinar até romper o diurno esplendor do mundo. Não mais a Luz foi morada dos deuses ou indício celeste – sobre si lançaram o véu da Noite. A Noite era o poderoso seio das revelações – e a ele regressaram os deuses – nele se deixaram adormecer, para se lançarem em novas e magníficas formas, sobre o mundo transmudado».

Eduardo Aroso
23-1-07

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