segunda-feira, setembro 24, 2007

"Neste lugar sem portas: a poesia, o canto e a Guitarra"

Na Galeria Verney ( Oeiras), sessão dedicada a Carlos Carranca, sábado, dia 22.
No recital participaram: Luiz Goes, Augusto Camacho, António Toscano (viola), Alexandre Bateiras, Carlos Couceiro, Teotónio Xavier (guitarras ); Francisco Viana e Arnaldo ( guitarra e viola dos "Pardalitos do Mondego") e "Mar Tambor".

Numa sala com lotação completamente esgotada (muita gente de pé) .

(Segue-se o texto de abertura)

FRÁTRIA

ou

A Mais Humana das Obras

O que a Vida tem de melhor, é o facto de ser breve na eternidade que deixamos nos outros. Nela há qualquer coisa que nos escapa, desde o nosso corpo como objecto da nossa representação, até ele se tornar vontade e através dele entrarmos em relação com a Natureza. O meu corpo passa a ser a Natureza em mim.
Mas nós somos sempre mais do que conhecemos e os nossos versos vão para além daquilo que sabemos, daquilo que escrevemos.
A vontade, como essência de tudo (ou a falta dela) é a responsável (irresponsável) da nossa miséria , da miséria humana.
A Morte, essa, não está em parte alguma – ela existe na Natureza que se renova.
Toda a palavra sobre a Morte é do domínio do imaginário, mas como todo o imaginário, está cheio do conteúdo da Vida, sobretudo do que da Vida nos escapa. Ela procura uma resposta para a solidão ontológica radical, singular, condenada a sonhar o sonho, que é como quem diz, condenada à inconsistência do sonho.
Pensar na Vida como ela é, é pensá-la com a Morte; é sentir, é sentir-se, é falar de si-mesmo , conviver , é entender-se com os outros, sem subjugar ninguém nos caminhos da razão.
O que desejamos verdadeiramente? Tocar o coração das coisas.
Como afirmou , um dia , Unamuno “Nas entranhas do presente buscar a eternidade viva.”
É, pois, trágico para quem vive em constante procura da essência das coisas assistir, impotente, à dura realidade de uma Pátria a afastar-se da essência e a perder-se na imitação e na vulgaridade utilitária. Porque não há nada que mais nos degrade do que esta entrega a idolatria da técnica e do consumismo de massas, onde a preocupação dominante do negócio e a intensidade frenética da Vida aniquilam toda a inquietação espiritual.
Agitar, inquietar, libertar, essa foi é e será a eterna missão da Poesia.
Interrogo-me, frequentes vezes, se não estará a Poesia mais próxima da magia do que da literatura. Ora, o Poeta não é um literato, é um mágico, sendo na dimensão transfiguradora da realidade que o Poeta se cumpre, e não no acervo de obras consultadas ou na profusão de autores citados. Não é citando os criadores que o Poeta existe, é existindo que o Poeta é.
Vivemos num tempo em que os discursos soam a oco. Vivemos num tempo de múltiplas palavras sem sentido, usadas nos comércios diários dos interesses; palavras que se usam e deitam fora , palavras sem peso específico, sem leveza, em suma, sem valor.
Porque a Poesia passa pelo ritmo encadeado das palavras, e porque ele, o ritmo, assenta na originalidade com que as juntamos ou separamos, é que , ao confrontarmo-nos com a palavra poética, nos reencontramos com a originalidade, com o valor da palavra, a oração do silêncio – onde nenhum silêncio é já possível – o de alguém que procura a palavra perdida e o seu lugar no homem – o mundo como adjectivo : asseado, purificado, limpo.
Ao entrarmos na obra poética, penetramos na Vida que se afasta da razão sem a dispensar, e se aproxima da pura sensibilidade. A Poesia com as palavras refaz sentidos, dá-lhes outra coloração, transforma-as sem as deformar.
Há na Poesia uma conciliação da disciplina com a liberdade, não mistura poema com ideias, elas estão lá, mas são a Poesia. Não cede à facilidade, não transige com a rima, dá-se numa entrega contida, lúcida, solitária. São palavras depuradas pela sua nudez. São palavras recolhidas em si-mesmas.
Há na Poesia uma dimensão espiritual, direi mesmo, religiosa, que entra em nós e se recolhe – é a nossa voz que ressoa e nos acorda na transparência da voz do Poeta.
Na ética e na religião, a questão essencial é saber se o homem se redime a si-mesmo, ou se será redimido por outro; se a sua obrigação é quebrar as suas grilhetas ou, agrilhoado, ir quebrar as grilhetas alheias.
A Poesia tenta, pela palavra, libertar-nos do ruído que aprisiona e, em função do outro, libertá-lo , religando-o à palavra perdida , no aperfeiçoamento do mundo.
No princípio era o Verbo.
Todas as coisas foram feitas pela palavra, a palavra desocultadora do mundo, da Vida, da beleza.
Sabemos que a Morte é a mentira e a verdade é a Vida. Mas também sabemos que a única verdade objectiva é a Morte porque a Vida é um conjunto de mentiras que nos serve de consolo.
Mas o Poeta sabe, também, que a palavra vence a Morte e que é a palavra poética a mais humana das obras.

Oeiras, dia 22 de Setembro, 2007 (Galeria Verney)

Carlos Carranca

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