sexta-feira, dezembro 07, 2007

Sonoridades e magia ...

Por José Henrique Dias*

As minhas idas a Coimbra, semanais, por força do trabalho, confinam-se ao território da Cruz de Celas. É chegar ao Instituto Miguel Torga de manhã, relativamente cedo, pegar no trabalho e ficar quase até o dia acabar. Entre aulas, seminários e despachar requerimentos, apenas o intervalo para um almoço rápido. Perco assim a visão do que vai pela minha cidade, não me lembro já de ter passeado na baixa, se descontar uma ou outra presença nocturna em frente a Santa Cruz, nas festas de Julho, por mor de ligações à música de Coimbra e a gentilezas de companheiros que se esforçam por luzir, por não deixar morrer esse património da academia e da nossa cidade, tão esquecido pelos que têm a responsabilidade de preservar, divulgando, o nosso multiforme património cultural.
Durante anos, o meu amigo e colega Sansão Coelho manteve na rádio o programa Do Choupal até à Lapa, onde passava com timbre e inteligência inconfundíveis os melhores registos discográficos da música de matriz coimbrã. Digo assim, servindo-me do que já é um chavão, porque a nossa música é poliédrica na tessitura melódica como multifacetada na espessura poética, desde que Edmundo Bettencourt, nos idos de vinte do século passado, lhe deu uma volta, na indispensável companhia de Artur Paredes, que afinou e encorpou a guitarra de uma maneira outra, para vibrar nas ruas, até que Luiz Goes a vestiu de roupagens mais universalistas, no timbre singular da sua voz de barítono e pela sensibilidade interpretativa que o coloca entre os maiores vultos, os mais altos símbolos da música popular contemporânea, ao lado de Amália e Carlos Paredes.
Claro que há alguns outros que dos anos cinquenta aos dias de hoje mantiveram a chama e operaram incursões por outras veredas da luxuriante natureza que a referência matricial consente. Como há os pioneiros da divulgação discográfica, além de Bettencourt, caso à parte, os Menano, Junot, Armando Goes, Paradela.
Claro que é incontornável o magistério de António Portugal e António Brojo, como fundamentais as criações de João Bagão sobremaneira nas gravações de Goes. Também Carvalho Homem e José Amaral, nos anos quarenta.
Certo que não se pode omitir a inteligência criativa e a singularidade de Jorge Tuna ou os aprofundamentos técnicos de Paulo Soares, como é imperativo fixar a qualidade de Octávio Sérgio e não esquecer Francisco Martins, Eduardo Melo, João Moura, cujas guitarras sempre nos convocam. Naturalmente salientamos Machado Soares, José Mesquita, António Bernardino, Jorge Cravo, ainda por outra afectividade minha Augusto Camacho, Fernando Rolim, Sutil Roque. Há também Fernando Xavier, guitarrista de pessoalíssima sonoridade e uma notável obra conhecida de poucos. E não queria deixar de fora, porque especialmente importantes, "os violas". Por todos, de todas as gerações, registo Aurélio Reis, António Toscano, Levy Batista, Durval Moreirinhas, Rui Pato e Armando Luis Carvalho Homem.
Outros dedos e outras vozes podiam ser chamados à galeria, não há aqui um módico de hierarquização, de escolha por virtuosismos ou critérios que não sejam os dos solavancos da memória. Cada um de nós tem os seus eleitos, dispenso-me de outras enumerações porque muitos se contam entre os meus amigos, comigo repartem as angústias desta era do esquecimento, do silêncio, do vazio, se Lipovetsky não se importa.
E é inevitável, por ligações fundadoras e logo pela revolução operada, que evoquemos Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira e se interpele o que de fundamental aconteceu quando se passou a cantar Manuel Alegre e José Niza. Mas são já outras músicas, para outras auspiciosas respirações.
Por sagração dos deuses, a música coimbrã tem proporcionado o aparecimento de grandes intérpretes da guitarra e o despontar de alguns cantores de apreciável qualidade, como tem proporcionado o emergir de algum esforço renovador.
Não chegariam as colunas deste jornal se tivéssemos cabedal de sabedoria para os tratar a todos, e melhor se arrumariam naturalmente alguns inevitáveis equívocos. Não é porém tudo isso que nos mobiliza. De resto, nem era do que pensava falar quando iniciei a crónica. Acabei empurrado pelas circunstâncias, pelo desgaste que o défice de divulgação da nossa música acaba por impor numa espécie de registo de revolta.
Que diabo acontece para que não se ouça a nossa gente na galáxia radiofónica e não apareça nos alinhamentos televisivos? Instalaram-se o gosto duvidoso de importação e o desfile dessorante da mediocridade nacional. Instalaram-se para ficar.
Calaram Sansão Coelho no grelhado das arrumações do serviço público que pagamos com os nossos impostos, abriram alçapões para ocultarem o que há de mais nosso no opiário dos ecrãs televisivos.
Por outro lado, ninguém, que eu saiba, parece estar capacitado ou inclinado para estudo que valha como organizador da memória. Sobra-nos o trabalho empenhado de Anjos de Carvalho para sabermos os caminhos que as palavras e as melodias foram trilhando desde que há registos fonográficos e se editaram partituras. Se precisamos de rigor, batemos-lhe à porta. Grande o mérito, parca a recompensa.
Não sei, que se me perdoe a ignorância, que em Coimbra se percorra caminho paralelo ou articulado com o deste nosso amigo, a Coimbra ligado por vínculos majorados de afectos, mas que nela nunca viveu, ao que julgo saber.
Estranhamente, a cidade do conhecimento parece não querer conhecer, no lugar e com relevo devidos, um objecto de criação artística no qual a palavra Coimbra mais fundamente se inscreve e onde avulta a condição de estudante.
Que, como o tempo tem provado, não prescreve, ainda que lhe arremessem traulitadas de silêncio, mesmo que à boca pequena haja quem proclame que é coisa menor para respirar em corredores da investigação académica. Tenho fundadas esperanças em Jorge Cravo, pelo talento e pelo ofício de historiador.
Pode o tempo apagar todos os vestígios de uma certa vivência coimbrã. Podem mudar os gostos e esgotar-se o tempo da memória do que fomos. Podem dobrar os sinos de todos os arrepios. Arrisco dizer que recolho uma certeza: onde houver um pingo de sensibilidade, ninguém ficará indiferente à sonoridade única das nossas guitarras ou ao envolvimento que nos percorre a alma em qualquer interpretação de Luiz Goes.
Música lareira lhe chamei um dia. Porque aconchega e nos reconcilia. Porque nos viaja o sangue e acende o tal luar que deixa sombras sobre coisas impossíveis, costumo dizer. Pela sua respiração nocturna. Pela sua evocação intemporal.
Ou, como diria Bettencourt, porque espelha a magia de Coimbra.
*Professor Universitário
Saída no jornal O Despertar de 16 de Novembro, nas crónicas sob a epígrafe A outra face do espelho.

relojes web gratis