Bloco de Notas (9)
1979 ... Continuação dos primeiros passos na aprendizagem:
De dia para dia ia desvendando segredos de dedilhação, sempre sozinho no aconchego do meu quarto - umas águas-furtadas da casa de Viseu, que davam para a quinta, na rua Simões Dias nº 100. A única vez que, ainda no liceu, me ensinaram alguma coisa na guitarra, foi numa saída de uma missa, na Igreja da Misericórdia, em frente à Sé. Encontrei o José Mesquita que na altura andava a aprender guitarra, já estudante em Coimbra, e começámos a falar deste instrumento. Disse-lhe que andava a tirar a “Aguarela Portuguesa” de António Portugal e, para minha surpresa, informa-me que já aprendeu partes dela e começa a dizer-me onde se punham os dedos, em frases que ofereciam maior dificuldade. Foi um achado! E como estava com a mão na massa, ainda me ensinou o princípio do Lá menor de José Amaral. Isto foi tudo sem instrumento, até chegarmos ao ponto de separação em que cada um seguiu seu caminho rumo ao almoço. Em casa, assim que pude, fui experimentar os dedos que me tinha indicado; batia tudo certo. Agora já me soava como o original. Estes ensinamentos abriram-me os olhos para outras peças que se seguiram. Como imaginam, os progressos eram duma lentidão desesperante.
Entretanto compus umas variações em Lá e outras em Ré, não sei já se em tom menor ou maior; nem posso aquilatar da qualidade artística de tais composições, embora ainda as tivesse executado em serenatas. Acabei por esquecê-las, talvez por não as executar vezes suficientes, mais preocupado com o que era dos outros e me dava maior prazer, pois tinha no ouvido a melodia das gravações e, ao tocar, ia imaginando que era um Artur Paredes, um Carvalho Homem, um António Portugal ou um António Brojo.
Numa ocasião, já quase com um pé em Coimbra, esteve em minha casa, nas tais águas-furtadas, levado pelo José Mesquita, Lopes de Almeida, na altura ainda segundo guitarra de Jorge Tuna, se não estou em erro. Tocou o “Estudo em Lá maior” de António Brojo que me deixou de boca aberta. Uma perfeição na execução, sem falhar uma nota, com boa sonoridade. Já as tinha ouvido sei lá quantas vezes tocadas em disco pelo autor mas ali, ao pé de mim, sem acompanhamento, a ver aqueles dedos a mexerem-se daquela maneira! Foi um dia inesquecível! A vê-lo, aprendi a usar a corda de si, que praticamente só utilizava para fazer tons. José Mesquita já me tinha levado gravaçõres magníficas de Jorge Tuna, ainda antes de gravar qualquer disco, com uma execução já perfeita, mas como não o via tocar, nem me apercebia das dificuldades. A partir daqui já não me impressionei mais a ver tocar, a não ser um dia , no Teatro Avenida, em Coimbra, com a actuação de Artur Paredes com o filho, Carlos Paredes, acompanhados por Afonso de Sousa, Ferreira Alves e Arménio Silva. Foi uma sessão inesquecível, com o Avenida a abarrotar de gente. Carlos Paredes, praticamente, limitou-se a acompanhar.
Voltando a 1979 ... Tenho no bloco uma referência a dar conta que comecei a desbravar o “Movimento Perpétuo” de Carlos Paredes. Estamos em princípios de Agosto. Foco os progressos diários; refiro a dificuldade devido ao número de notas que se têm que executar por segundo – pelas minhas contas são onze – as mudanças de tonalidade, o barulho que Carlos Paredes faz a respirar complicando a audição ao pormenor, e o ter que desbravar mais que uma vez certas frases por as ter esquecido já. Algumas destas são tiradas por intuição e só posteriormente confirmadas, depois de decorar a execução e voltar então a ouvir. Nesta altura notam-se os erros e corrigem-se.
Foram pouco mais de dois dias de trabalho mas valeu a pena o esforço. Como reparam, quando se me mete uma ideia na cabeça, trabalho até à exaustão! Esta peça é um belo exercício para as duas mãos, além de dar prazer a tocar, pois está muito bem conseguida. Antes de pensar em tirá-las, ainda estive tentado a ir a casa de Carlos Paredes munido de um gravador e pedir-lhe que as tocasse devagar. Mas ainda bem que não fui, por dois motivos: o primeiro, porque seria muito provavelmente uma recusa com muita diplomacia – a sua boa educação impedia-o de ferir alguém; o segundo, porque me deu um grande prazer e uma auto-confiança o trabalho realizado. Ouvi muitas vezes Carlos Paredes em espectáculos, mas o “Movimento Perpétuo” nunca o vi executar, assim como as do primeiro disco que gravou. Estas já as executo praticamente desde que apareceram. Nesta altura ia frequentemente a casa de António Portugal tocar na guitarra dele. Era um instrumento belíssimo, construído pelo Kim Grácio. Pedia-me sempre para tocar as “Danças Portuguesas” de Carlos Paredes. Admirava-se como conseguia tocar aquilo. Era habitual a esposa, Teresa Portugal, também assistir. O meu desenvolvimento de dedos na altura era muito bom. Faltava-me ser expressivo. Esta faceta iria adquiri-la muito mais tarde nos quinze anos que labutei com Durval Moreirinhas e António Bernardino (Berna), até à morte deste.
Tocava também peças elaboradas por mim, aquelas que depois vim a perder, aquando da venda da guitarra, penso que ao Jorge Gomes, para acompanhar o Orfeão aos Estados Unidos, em 1965, com algum dinheiro no bolso.
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