quinta-feira, maio 05, 2005

Texto de introdução ao livro de Virgílio Caseiro, “Novas canções para Coimbra”

Introdução

Não obstante os erros de percurso, Coimbra tem vindo a ser uma cidade continuada. Continuada no que tem de bom e de mau, continuada na sua credibilidade de crescimento (mesmo sem dele dar provas!), continuada no seu prestígio académico universitário e continuada também naquilo que foi inovadora e primeira: o seu fervilhar estudantil constante.
Mas a verdade é que o enquadramento proposto de "continuada" traz consigo uma adinâmica, facilmente observável, que predispõe ao relaxe, à inoperância e, por tabela, ao reformismo reaccionário.
Hoje, Coimbra já não é, nem de perto, custe os olhos da cara afirmá-lo, aquele modelo romântico de modernismo e acção, de vigor e inquietação que, dia a dia, nos mostrava novidades e dava força militante de intervenção cultural a nível nacional e até europeu.
Obviamente tudo o que é seu, incluindo a sua academia, foi envolvido por este manto de posicionamento suficiente que cobiça o bom, agora observável no centro e arredores da capital.
A nível académico universitário, também a diminuição do número de anos das licenciaturas e do tempo útil para as concluir, determinou um estádio de assimilação cultural bem mais débil, não tendo os actuais alunos quase tempo disponível para intervenção extra- -curricular, não vá a pretendida classificação inflaccionada de 17 ou 18 (santo Deus!) da licenciatura inviabilizar a saída profissional, hoje prémio mais saboroso e desejado, pela sua dificuldade, do que uma ida a Paris em outros tempos!
Assim, e na presença constatada desta vida académica meteórica, não chega a haver tempo sério para a apreensão dos próprios modelos culturais idiossincráticos, quanto mais poder transbordar deles, para a eles voltar de novo, mas pela estrada da inovação e da criatividade.
Culturalmente, e se calhar por isso, a Coimbra académica (e a futrica não?) tem-se vindo a ver parada no tempo, e assim "continuada" na suficiência da sobrevivência diária, mas incapaz de dizer ao país, pelo menos, que não está disposta a viver exclusivamente da tradição e do lucro turístico que aquela lhe determinou.
E fruto disto, lá vêm à evocação os anos 60, o Zeca e o Adriano; as crises académicas do princípio e do fim daquela década; o T.E.U.C do Paulo Quintela; as prisões de 69;...enfim, tudo a uma respeitável distância de mais de 30 ou 40 anos.
É evidente que não se pretende com isto o aconselhar o esquecer da História nem sequer da tradição. Feliz do povo que as tem e que vaidosamente delas pode fazer uso. Mas um uso funcional e de partida, não de "continuação".
Agora, Coimbra tem que reaprender a falar saudavelmente das suas tradições, como gineceu privilegiado de partida, e lugar único de tantas e tantas novidades sociais, "guerras", modelos culturais, literários, pictóricos e, obviamente, musicais, e deles arrancar para uma nova caminhada de intervenção modificadora que restitua à cidade o direito de exclusividade, por acção, na liderança, pelo menos, das verdades sócio-culturais académicas. Estas, a História prova-o, trarão consigo agregadas muitas outras, transbordantes ao meio exclusivamente universitário, e a cidade reencontrar-se-á de novo, feliz e risonha, porque identificada visceralmente com a sua mais forte e inquebrável vocação: a mensagem transformadora cultural.
Vem tudo isto a propósito do trabalho que agora se pretende apresentar e dar a conhecer: 12 novas canções de Coimbra (talvez 12 novos fados!), e da razão que assistiu à sua divulgação.
Não são, de facto, nenhuma pedrada no charco, seja ela entendida em termos literários, melódicos ou harmónicos.Nem pretendem ser estudos musicais revolucionários atonais e seriais que determinem uma verdadeira modificação radical no panorama composicional coimbrão. São, contudo, um contributo muito sério de dedicação musical modificadora, vergada constantemente à salvaguarda de uma linha melódica, tanto quanto possível, de força encantatória e servindo a esta com um espírito harmónico, de percurso nem sempre óbvio. São simultaneamente 12 obras que não pretendem "continuar" nada, ou melhor, pretendem só continuar a tradição musical coimbrã através da diferença.
Em termos estritamente harmónicos pretende-se com estas canções apontar para novas atitudes e resoluções, fugindo ao trivial encadeamento de tónica-dominante-subdominante, com ou sem tons relativos, e pesquisando soluções inesperadas ou mais "selvagens", que permitam um leque de acordes modulante ou multi-modulante, uma transferência tonal tirando partido do jogo melódico cromático, uma mudança súbita de tom sem preparação ou ainda a invasão de um acorde por notas a ele estranhas, todas estas atitudes pouco vulgares ou mesmo impensadas, na caracterização do fado de Coimbra tradicional ou "continuado".
Em termos rítmico-melódicos a única preocupação foi a de conseguir um discurso pactuante com os princípios estruturais harmónicos atrás referidos e, ao mesmo tempo, com a habitual aceitação da estilística melódica coimbrã, já que esta, ao impôr um determinado gráfico de discurso musical, é tradicional, e portanto de preservar e de desenvolver, enquanto de diagnóstico favorável. Além disso a normal toada melódica da canção de Coimbra torna-a socialmente perfurante, na justa medida em que a torna aceite e divulgada. Ritmicamente nada de novo se pretendeu desenvolver para além do respeito sagrado pela própria rítmica das palavras usadas e salvaguarda da sua tonicidade, ou seja, fazer corresponder intimamente a tonicidade literária à tonicidade melódica e vice-versa. Este procedimento não deixa de ter uma importância grande no plano da composição melódica coimbrã, porque nela é vulgar ver adulterada esta relação sistemática e necessariamente constante.
Todas estas canções pressupõem o acompanhamento harmónico, indicado superiormente na partitura, realizado pela formação instrumental característica ao fado, ou seja, uma guitarra portuguesa e uma viola (guitarra clássica) e ainda a existência de pequenas frases melo-harmónicas introdutórias, a cargo dos mesmos, bem assim como alguns motivos de separação entre as diferentes partes dos poemas, ou mesmo codas conclusivas. Estes pequenos excertos ficam ao critério dos instrumentistas[1] e por isso não se escrevem no presente volume. Várias são as razões que levaram a este procedimento, e entre elas é lícito evocar a salvaguarda das capacidades executivas mecânicas de alguns instrumentistas (que assim as podem criar de acordo com as suas possibilidades técnicas), a dificuldade polifónica da sua leitura para a guitarra (instrumento quase sempre aprendido por continuação tradicional e sem os seus executantes saberem música, ou pelo menos o suficiente para as poderem ler) e ainda porque a gravação em disco, a fazer em ocasião própria pelo autor, poderá indicar alguns modelos de arranjos possíveis, todos eles criados de parceria com o guitarrista Dr. Fernando Monteiro, embora cabendo a este ( e um muito obrigado especial pelo seu auxílio ) a principal responsabilidade dos blocos de introdução e separação.
Um muito obrigado terá que ficar aqui também para todos os elementos do Grupo de Fados Cancioneiro de Coimbra, grupo que o autor da presente obra integra, pelo estímulo que lhe deram ao aceitarem estas novas canções e pela disponibilidade para, em grupo, as concretizarem e darem a conhecer.
Finalmente uma palavra de reconhecimento para a casa de música Musicentro que, ao mostrar total disponibilidade para o apoio deste projecto, o tornou possível com a presente edição.

[1]- Obviamente que esta liberdade criativa não deverá perder de vista razões de proximidade harmónica e estética. Como ponto de referência e comparação, poder-se-á atender às introduções, separadores e codas realizadas pelo Grupo de Fado o Cancioneiro de Coimbra, com as quais o autor se identifica.

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