Era uma vez ... ele há teorias e teorias
II. Da necessidade de um roteiro lexical próprio para a Canção de Coimbra, por António M. Nunes
(lição proferida em 25 de Fevereiro de 2003, na Biblioteca do Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra, a pedido da Universidade da Terceira Idade)
II. Da necessidade de um roteiro lexical próprio para a Canção de Coimbra, por António M. Nunes
(lição proferida em 25 de Fevereiro de 2003, na Biblioteca do Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra, a pedido da Universidade da Terceira Idade)
Nos inícios de Maio de 2001, o canal de televisão privada TVI procedeu à transmissão em diferido da Serenata Monumental da Queima das Fitas de Coimbra. Antecedendo a intervenção de cada um dos grupos actuantes, os repórteres elaboraram mini-entrevistas aos elementos e porta-vozes dos grupos, sondando-os sobre os temas seleccionados, gostos, sentimentos. Não deixou de causar perplexidade o vocabulário utilizado pelos estudantes. Não restavam dúvidas que estavam a falar da CC, da sua prática enquanto cultores activos, das suas mundividências. Falou-se de “vielas da Alta”, “fado”, “fadistas”, “trinados”.
Procurando caracterizar a identidade e valor da CC, os elementos dos jovens grupos alinhados para a transmissão televisiva recorriam a um discurso simplista, assente num vocabulário tomado de empréstimo ao Fado de Lisboa. Mais sintomática se revelaria a colagem lexical presente no folheto do programa da Queima das Fitas, editado pelo Diário de Coimbra de 1 de Maio de 2003, página 15, cujo título era “Serenata Monumental. Silêncio que se vai cantar o fado”. Mesmo admitindo que a frase foi imposta pelo jornalista e não por elementos da comissão dos festejos, não deixa de se revelar estranha a aplicação coimbrã acrítica de fraseados que fizeram voga nas casas de fados de Lisboa a partir da década de 1930. Contrariamente ao que se possa pensar, esta palavra de ordem, exigindo dos barulhentos clientes das casas de fados respeito pelos fadistas que perante eles se exibiam, apareceu no jornal Canção do Sul, nº 197, de 1938.
Qualquer esforço de aproximação à complexa e ainda fugidia problemática da CC terá de lançar mãos de um discurso compreensivo e indagador, alicerçado numa constelação lexical rigorosa e em não menos rigorosas ferramentas conceptuais[1].
O vocabulário específico das abordagens do Fado de Lisboa é o vocabulário do Fado de Lisboa. Não serve, nem se revela operante para o caso coimbrão. Como seria caracterizar a CC com a terminologia do Flamenco, do Tango, da Morna, da Canção Napolitana, do Jazz? Como seria analisar uma dança folclórica com os termos técnicos do ballet? O vocabulário do senso comum produzido pelas elites, os relatos autobiográficos, as memórias de antigos estudantes, também se revelam inoperantes para apreender e caracterizar a CC. As descrições de tipo factual, anedótico, ficam-se pelo balbuceio epidérmico, obscurecendo os possíveis sentidos e ignorando a carga simbólica das realidades históricas. Tais narrativas não devem confundir-se com a CC enquanto objecto historiográfico ou etnoantropológico.
Dito isto, impõe-se a criteriosa separação entre a colagem impressiva às descrições desfiguradoras, que dessoram e esvaziam o rico universo simbólico-identitário da CC.
A pesada herança positivista assente na teoria dos tipos e variantes dos tipos, metáfora biológica dos corpos que persistiriam imutáveis mau grado a presença incómoda das próteses, perdeu acuidade. Compreender e enquandrar o universo da CC passa pelo lançamento de interrogações e pelo manejamento-construção de um vocabulário específico.
A tarefa presta-se a uma abordagem dupla. Primeiramente haverá que proceder ao levantamento exaustivo do vocabulário existente, ou seja, tradicionalmente empregue para definir e caracterizar a CC. Um levantamento que implica a reconstrução do campo semântico inerente a cada um dos vocábulos e expressões cega e passivamente repetidas ao longo de quase 160 anos. Delimitado o itinerário e operado o desvendamento dos mitos e expressões vazadas no vocabulário que habitualmente as nomeia e designa, será tempo de demonstrar a adequação ou inadequação de tal campo lexical.
“Recontextualizar e ressemantizar o mitologema” que vertebra e dinamiza a prática, produção e transmissão da CC, possibilita abrir esta manifestação cultural a uma pluralidade de leituras enriquecedoras. Recontextualizar o mito na sua realidade geo-cultural e arquetipal permite abrir caminho a novos percursos identitários[2].
A CC não é um produto cultural insignificante, nem sequer pouco significante, que se pode apreender em função dos referentes mentais e terminológicos do Fado de Lisboa. Ora, até finais do século XX, os investigadores não procederam a qualquer levantamento lexical da CC.
Uma leitura menos atenta à tese de licenciatura de Amílcar Ferreira de Castro, apresentada à Secção de Filologia Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1947, com o título A gíria dos estudantes de Coimbra, poderia indiciar que a CC era de todo inexistente na década de 1940[3]. Não obstante, ela existia. Torna-se dificilmente inteligível a omissão cometida por Amílcar de Castro, autor que em 199 páginas de dissertação não arrola um único termo correlacionado com a CC. Preconceito, certamente, pois nas fontes compulsadas para o levantamento da “gíria” pululavam vocábulos e expressões atinentes à prática, reprodução e mundividência dos cultores da CC.
A amnésia perpetrada em 1947 teve o seu preço e deixou pesada herança[4]. Aquilo que poderia ter sido recenseado em 1947, no âmbito de um trabalho académico, gerou entre os investigadores futuros a falsa ideia de um produto cultural destituído de real valor. Preconceito tautológico, radicado no “aquilo que (aparentemente) não tem valor não merece ser estudado”.
O estudo das sociedades tradicionais é, desde o século XIX, marcado pelas abordagens específicas da etnoantropologia, sem prejuízo de frutuoso e necessário diálogo com outros saberes. Salvo melhor opinião, o estudo de campo publicado em 1982 por António Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo etnoantropológico, marca um ponto de viragem na pesquisa e problematização da cultura académica coimbrã[5].
As propostas decorrentes da referida abordagem, ao nível do vocabulário e dos conceitos, vieram rasgar hipóteses de inteligibilidade anteriormente impensáveis. E no caso vertente da CC, não será demais lembrar que o grosso da terminologia empregue em 1982 por António Rodrigues Lopes, no esforço de reenquadrar aquele foro estético, foi colhido na comunicação apresentada pelo Dr. Afonso de Sousa ao 1º Seminário do Fado de Coimbra (19 de Maio de 1978). A popósito do controverso tema O Fado propriamente dito e o “chamado Fado de Coimbra” (Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, nº 13, Julho de 1978, págs. 19-31), Afonso de Sousa logrou soerguer um arejado lote de conceitos operatórios, a saber: “o chamado Fado de Coimbra”, “Canção de Coimbra”, “receptividade”, “versatilidade”, “predisposição geográfica”, “enquadramento anímico”, “canção de raiz coimbrã”, “o chamado fado de Coimbra é regional”, “património cultural”, “foro musical coimbrão”.
Que bom uso se fez dos contributos avançados por Afonso de Sousa em 1978, sobretudo ao nível das práticas de ensino-aprendizagem nas escolas juvenis activas em Coimbra? Foram facultados aos formandos dossiers temáticos, documentos de apoio, ensaios teóricos? As sessões práticas de aprendizagem de cordofones e iniciação ao canto foram complementadas com leituras de apoio e palestras teóricas? Que obras de referência, que leituras, importará perguntar?
Em 1999, e a propósito da produção cultural de Edmundo Bettencourt, ensaiei uma primeira tentativa de “glossário” que, circunscrita ao âmbito desse estudo carece de continuados aprofundamentos e alargamentos[6].
A expressão CC poderá levar os mais cépticos a rotular a actividade historiográfica de simples modismo, ou no pior dos casos, de novo nominalismo. Grande fatia das dificuldades inerentes ao estudo e ensino da CC decorre do facto de se acharem em uso determinados vocábulos com emprego/sentido especial, variáveis de agente para agente e até de grupo para grupo, conforme as suas orientações ideológicas, sensibilidades, e representações. Da constatação destas divergências vocabulares brota a impressão que a problemática da CC consiste mero entretenimento teórico, uma espécie de surperfactação inútil que não interessando aos cultores no activo permite a terceiros evidenciar conhecimentos. Assim sendo, o estudo crítico da CC e subsequente juízo estético nada mais seriam do que mera inutilidade, sem a qual este género literário-musical passaria bem. Junte-se a este esqueleto desolador a elástica ambivalência dos juizos de valor produzidos pelos vários agentes e teremos um quadro desertificador pouco convidativo.
A questão só poderá ser dirimida por força da neutralização da excessiva carga pessoal e subjectiva tradicionalmente pululante, em luta por uma terminologia tão rigorosa quanto possível. Tal linguagem deverá ser acessível, por forma a que o público entenda o conteúdo das palavras empregues. Não se cura de propôr um neocientismo de pacotilha, tendo em conta uma matéria prima onde persistem discrepências aparentemente intransponíveis. Aliás, o investigador labora marcado pelo meio sócio-cultural e pelo tempo que alicerçou os seus quadros mentais.
Massa sonora escorregadia, conceptualizar a CC é bem mais uma arquitectura de conceitos do que propriamente esforço de definição. A definição pertence ao terreno das ciências exactas, correspondendo à enunciação das características universais e essenciais de um determinado objecto, seja ele material ou espiritual. Como tal, não se pode ensaiar uma definição de CC com as mesmas ferramentas que permitem descrever quimicamente a água. Por seu turno, os conceitos são indeterminados, respeitando ao carácter acidental ou peculiar do objecto. Quando se escreve e reescreve que a CC é um género musicalmente pobre, sentimental, assente na glosa poética do “amor” e da “saudade”, estamos perante apriorismos subjectivíssimos. Este continua a ser o flanco vulnerável onde tropeçam amiúde os teóricos interessados na dilucidação desta problemática, demorando nos aspectos acidentais e confundindo frequentemente função com natureza.
Para-realidade e forma de conhecimento em que o sujeito-intérprete apreende o objecto e o objecto se torna apreensível pelo sujeito cognoscente, a CC assenta quase sempre em signos polivalentes que escapam a qualquer controlo rigoroso.
A nublar a inteligibilidade da questão, perfilha-se o problema do género. Na óptica dos cultores e estudiosos do Fado de Lisboa, trata-se de uma falsa questão. De acordo com a teoria clássica mais em voga só existe um grande género de Fado em Portugal, concretamente o Fado de Lisboa. Mas, dado que o género se pode dividir em espécies e as espécies em formas, o Fado de Lisboa teria sofrido uma morfogénese regional a partir da qual nasceu o “chamado Fado de Coimbra”. Na qualidade de espécie de um género que é o Fado, nada mais restaria à CC que eterna submissão e menoridade (reprodução deste velho discurso em Eduardo Sucena, Lisboa. O Fado e os fadistas, 2ª edição, Lisboa, Veja, 2002, pág. 181. 1ª edição de 1992).
Teoria confortável e confortadora, onde se podem detectar alguns calcanhares de Aquiles. Etimologicamente, género significa família, raça, agrupamento de indivíduos ou seres portadores de características comuns. Empregue em história natural, arte, literatura e música, género pretende reunir famílias de obras ou produções culturais dotadas de atributos semelhantes. O género, como já se frisou, decompõe-se em espécies e estas em subespécies ou formas. A CC vista como “Fado de Coimbra”, seria um mero subgénero do Fado de Lisboa, por via do positivismo biológico darwinista e da teoria do transformismo lamarkiano. Porém as coisas não se configuram tão simples quanto se pretendeu. A CC não reune os elementos comuns, correspondências, rede de similaridades, específicas do género Fado. E os pormenores detectados epocalmente não podem ser genericamente tomados por “semelhanças de família”. Do muito que se tem escrito sobre o Fado em Portugal pouco – muito pouco – respeita à CC.
Para que a CC pudesse ser considerada uma subespécie do Fado (de Lisboa), seria necessário demonstrar com fortes argumentos dois elementos fundamentais:
a) que o Fado (de Lisboa) teve a capacidade de se metamorfosear geneticamente por forma a originar o “chamado Fado de Coimbra”, fazendo assinalar nessa transformação qual espécie se transformou (o menor, o corrido, o mouraria?), e em que espécimes conimbricenses se detectam os sinais girinos;
b) os motivos que permitiram apenas e só o invocado transformismo conimbricense, quando indênticos argumentos podem ser comprovadamente aduzidos para Ponta Delgada, Porto e Santarém. Se efectivamente o Fado contém a capacidade transformadora sucessivamente invocada por todos os estudiosos e panfletaristas, ter-se-ia transformado em todos os espaços geo-humanos e culturais onde foi profusamente cultivado mesmo sem a guitarra do fado. Ora, aquilo que se consegue comprovar documentalmente é que o Fado se manteve imutável mesmo quando tão intensamente praticado no Ribatejo, no Porto e na Ilha de São Miguel. No limite, possibilitou a emergência de algumas canções fadográficas, isto é, fados bastardos ou híbridos. Nem o Tango de emigração, tão cultivado em Paris gerou outra coisa que não seja Tango (pese embora o facto de os tanguistas de Buenos Aires detestarem os de Paris).
Chegados a este ponto, onde estão objectivamente os reclamados traços semelhantes e as analogias passíveis de recondução ao paradigma geral que é o Fado? Tal qual chegou aos nossos dias, a sedutora teoria “Fado de Lisboa origina Fado de Coimbra” carece de sólida refundamentação, seja no plano teórico, seja no plano musicológico (desiderato que não foi atingido em textos mais hodiernos, como os de Rui Vieira Nery, “Para uma História do Fado”, Cd O Amigo Paredes. O Fado do Público, nº 8, Lisboa, edição de 9 de Julho de 2004, págs. 30-55; idem, Para uma História do Fado, Lisboa, Público, Dezembro de 2004, págs. 109-116).
A CC enquanto campo investigável nunca fez furor na comunidade sábia portuguesa. Esfera das coisas “regionais inferiores”, satélite do “Fado”, a dignidade das discussões não conseguiu ultrapassar a boçalidade do “presta/não presta”, “gosto/não gosto”, “acho que”. A CC não empolga os historiadores, não suscita nem nunca suscitou nenhuma batalha teorética (assinalando-se positivamente Salwa Castelo Branco, Voix du Portugal, Paris, Cité de La Musique, 1997, págs 105-117, onde assume a valia dos novos conceitos). Tudo se passa, desde há cem anos a esta parte, como se os dilemas do objecto controvertido estivessem prévia e confortavelmente resolvidos. Os jornalistas, dicionaristas, enciclopedistas e investigadores do Fado de Lisboa, revesaram-se na reprodução da sedutora teoria monogenética do transformismo. Um repisar tranquilo de ideia feitas, do tipo pronto-a-vestir, disfarçando mal, digamo-lo sem subterfúgios, alguma preguiça intelectual. A receita repete-se com os mesmos ingredientes em Ernesto Vieira, João Pinto de Carvalho, Alberto Pimentel, Fernando Lopes Graça, Tomás Borba, Frederico de Freitas, Eduardo Sucena. Eis uma “estória” esfalfada, antecipadamente escrita, destituída de enigmas, para uso do Fado de Lisboa e das casas de fados. Mas, cabe perguntar, estes relatos não dirão muito sobre os seus signatários, a quem poderemos chamar autênticos “talentos desperdiçados”?[7]
Continuar a fazer diluir a História da CC na História do Fado de Lisboa, além do erro metodológico gravoso, configura um crime patrimonial. O quinhão de leão dos documentos, volumes e páginas pende sempre a favor do Fado, como aconteceu com a colecção Ediclube publicada em 1999. Em nome de que certezas científicas, modelos epistemológicos, se manteve intacta a representação clássica e catecismal da CC como variante exótica do Fado nessa edição monumental e luxuosa de 1999? Epistemologicamente, só por via da manutenção fora de época do positivismo oitocentista se pode garantir uma CC refém do Fado. Na falta de historiadores da CC, escancaram-se de novo as portas a uma eterna “estória” do “chamado Fado de Coimbra” para uso do Fado, dos fadistas e turistas. Mais grave, em nome de uma falsa unidade de família, apagam-se literalmente todas as hipóteses de nomes de cultores que não sejam os autorizados pela vulgata, cronologias, ciclos estéticos, produções literário-musicais, organologia autónoma, fonologia, inventariação de fontes fonográficas e musicais (estas questões conduzem-nos a Marc Ferro, Suzanne Citron, e obrigatoriamente a Armando de Carvalho Homem quando interpela “Ser historiador do Canto e da Guitarra de Coimbra é viável; mas não será, no futuro imediato, ofício para muitos”, Cf. “Da árdua definibilidade da Canção de Coimbra”, livreto do duplo cd José Mesquita. Coimbra dos Poetas (I). Coimbra das Canções, Trovas e Baladas (II), Coimbra, Agitarte, ano de 2000).
Há, por conseguinte, na comunidade académica um longo vazio intelectual que resulta de uma perturbadora incapacidade de pensar e de reflectir os problemas teórico-investigativos da CC. Uma incapacidade que traduz directamente o sobranceiro desprezo da comunidade académica universitária coimbrã pela CC enquanto objecto digno de investigação, e não deixa de espelhar as persistentes resistências dos agentes internos e externos a qualquer tentativa de mudança da nomenclatura tradicional. Esta situação de penúria é agravada ao nível das escolas de ensino-aprendizagem, em geral vocacionadas para uma formação prática da Guitarra de Coimbra (sobrevalorização das aulas práticas), com eventual complemento de viola de acompanhamento e canto.
Drama do investigador, se é complexo investigar um género musical ciosamente tutelado por determinados agentes zeladores de narrativas fortemente dogmatizadas, não menos difícil será arrostar uma falsa metodologia destinada a proclamar e a perpetuar a supremacia do Fado de Lisboa sobre “o chamado Fado de Coimbra”. Se “o chamado Fado de Coimbra” e seus agentes “sempre” aceitaram pacificamente a integração na macro estrutura fadística, tal atitude significava que não reconheciam diferenças irreconciliáveis entre o MacroFado (Lisboa) enquanto sistema de dominação, e o MicroFado, na qualidade de dominado. O lado pernicioso de tudo isto é que os detentores e produtores do discurso da estrutura dominante sempre deixaram entender que as pequenas diferenças assumidas pela estrutura dominada sem desafio da supremacia do dominador seriam bajuladas e até encorajadas. Uma das recompensas mais desejadas por esta pseudo assimilação seria uma breve inclusão de nomes cuidadosamente seleccionados nos livros dedicados à História do Fado. Ou em casos pontuais, a integração de stars coimbrãs nos elencos das casa de fados activas em Lisboa.
Ao cabo e ao resto, foi em nome desta “realidade virtual” que os narradores mais autorizados da História do Fado inventaram de certa forma o chamado Fado de Coimbra e continuaram demoradamente a contar a sua “estória”. Um contar/cantar traduzido quer na feitura de temas à margem da CC, quer na gravação desses mesmos temas, usando das facilidades concedidas pelos circuitos próprios do Fado de Lisboa enquanto indústria cultural (terreno onde a CC está em clara desvantagem). Um bom exemplo deste tipo de narrativa congelada e fechada sobre si própria pode encontrar-se no programa televisivo conduzido pelo fadista João Braga na RTP 1, na noite de 6ª feira, 30 de Julho de 2004, com o título “Cantares do Mondego” (repetido na noite de 3ª feira, 21/09/2004 na RTP África, e na 6ª feira, 24/09/2004 na RTP2). Questionado sobre a velha e sempre traiçoeira pergunta da “diferença” entre Lisboa/Coimbra, o cantor Nuno Silva só conseguiu responder que “os cantores de Coimbra ficam atrás dos tocadores e os Lisboa ficam à frente”. Questionado sobre a aparente bizantinice da alteração crescente de vocabulário, Fernando Machado Soares declarou peremptoriamente que “sempre tinha ouvido chamar Fado de Coimbra” e que para si era “Fado de Coimbra”. Declarações públicas deste teor, feitas por agentes da CC mais ou menos consagrados podem trazer consequências negativas gravíssimas aos investigadores. Nenhum investigador terá capacidade para replicar publicamente a este tipo de declarações. A única atitude honesta de um cultor da CC, quando confrontado com questões sibilinas do tipo das acima referidas, só poderá ser “eu não estou em condições de responder a este assunto porque nunca o esclareci devidamente”, ou “eu sou cantor/instrumentista e não investigador”.
O designativo CC é cronologicamente posterior à formação e legitimação do género poético-musical controvertido. Entrou em circulação, de forma restrita, nos anos de 1920 com Edmundo de Bettencourt e os construtores do Primeiro Modernismo vivenciado pela CC. Voltou à ribalta após 1947, na sequência da “Questão do Filme Capas Negras” e adensou-se na década de 1960, por força das novidades e experiências do Segundo Modernismo (Movimento da Balada, Movimento da Trova, Novo Canto). No último caso surgiu revestido de grande veemência, pois que nem o designativo convencional (“Fado de Coimbra”), nem o redutor e abusivo “fados”, satisfazia a produção copiosa do Movimento da Trova e as incursões ao Novo Canto. Conforme notou a investigadora Vera Lúcia Vouga em 1987, a grande revolução dos Sixties na Galáxia Sonora Coimbrã fez-se sem “fados” em José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luiz Goes (Cf. Na Galáxia Sonora: Sobre o Fado de Coimbra, 1991, pág. 54).
CC só consegue reunir energias para vingar – não sem engulhos – após 1978. Passa a identificar e a designar uma estética peculiar, uma maneira específica de criação musical, os textos produzidos a propósito dessa actividade, esquemas de dedilhação de determinados instrumentos, e ainda um sistema de representações e de valores não redutíveis a qualquer outro género musical. Permite conglobar satisfatoriamente múltiplas formas de criação que, sendo coimbrãs, não são tributárias do Fado nem dos esquemas compositivos classizantes. Do ponto de vista epistemólogico abre a CC a uma constelação de hipóteses teórias e investigativas, que vão da estética à história, da musicologia à antroplogia, para apenas invocar algumas.
A crescente especificação da expressão CC afirma, antes de tudo, a autonomia de um género estético-musical. Mas a sua polissemia deixa antever dificuldades: as resistências mentais dos cultores no activo, habituados a um vocabulário empírico e acriticamente repetido; a desconfiança perante um conceito aparentemente vago, generalista e incaracterístico; a cegueira e o mutismo das editoras discográficas e casas de comercialização de discos, onde persiste uma forte “tradição” de edições/vendas subordinada ao rótulo “Fados” ou “Fado de Lisboa”/”Fado de Coimbra”, para já não falar em edições mistas onde sói misturar-se discricionariamente peças de Lisboa e de Coimbra; um estranho sentimento de posse, cultivado por certos agentes e grupos que se reclamam detentores de determinadas maneiras de relatar o passado; o peso não dispiciendo do relato positivista, biológico e dogmático.
O essencialismo fadístico proposto como forma de objectivar e descodificar ipso facto a CC é uma falácia que apostou em reproduzir ad libitum uma tentativa de definição referencial. Trata-se de uma convicção baseada em taxonomias vagas, em hipotéticos denominadores comuns, em suposto ontologismo peculiar.
Contra o critério essencialista se levantou Ludwig Wittgenstein (Philosophical investigations), pelo menos desde 1976, sendo certo que o autor se reportava ao estudo da literatura e das obras literárias[8]. Corroborando Witgenstein, podemos dizer que as redes de semelhanças, por mais evidentes que possam parecer, nem sempre constituem fundamento para a fixação de um sistema comum habitualmente designado Fado. Faça-se um exercício comparativo em colunas verticais designadas nos cabeçalhos por “semelhanças”/”diferenças”, colocando lado a lado Fado de Lisboa, Tango, Morna, Chorinho, Canção de Coimbra. Em todas as colunas surgirão perturbantes semelhanças!
Conceito aberto, CC enjeita as ilusões fixistas de uma manifestação artística mal conhecida e em devir onde factos contigentes foram apressadamente erigidos à categoria de sistema geral. Não se trata de um novo nominalismo inócuo ou de uma qualquer tentativa de relativização embebida de cepticismo pulverizador[9]. Trata-se de olhar a CC na sua heterogeneidade sincrónica e diacrónica, desconfiando daquele dogmatismo que converte traços histórico-factuais peculiares em propriedades gerais e constantes.
Em todo o caso não deixa de causar alguma perplexidade a renhida resistência dos amantes e agentes da CC aos novos conceitos, tendo em conta a espantosa popularização de um não conceito como “guitarra portuguesa” a partir da 2ª metade da década de 1980. Fora a CC objecto de investigação em ciências sociais e humanas e logo após 1974 os investigadores teriam procedido ao debate exaustivo dos conceitos estruturantes alimentados durante o Estado Novo, nomeadamente “Fado de Coimbra” e “Folclore Urbano”, a par do levantamento circunstanciado do respectivo corpus documental. Para a manutenção e sustentação acrítica do discurso ortodoxo e respectivo vocabulário após a Revolução de 1974, salientaremos os seguintes vectores:
-os antigos estudantes da UC, activos entre as décadas de 1930-1960, produtores e reprodutores das árias estróficas clássicas (não estavam elas para a CC como os Painéis de Nuno Gonçalves para os pintores do regime salazarista, conforme anteviu José Afonso?), do chamado “fado-canção” tipo “À Meia Noite ao Luar”, do encosto à cançoneta ligeira e à vocalização melada dos reis da Emissora Nacional, do mavioso, do romântico, das serenatas radiofónicas “reguladas” pela estética do Estado Novo a partir de Dezembro de 1946, das locuções de Guimarães Amora, estas afinal tão próximas dos discursos pitorescos e embevecedores apresentados na mesma época pelos directores dos ranchos folclóricos? Ressalvando pontualíssimas excepções, este tipo de agentes mostrou-se ferozmente contrário a qualquer abertura de vocabulário, recusando igualmente a incorporação do repertório dos Sixties, olhado com extrema desconfiança e desconforto como “não Fado de Coimbra”;
-os principais agentes e promotores da indústria cultural para os quais se afigura mais fácil e lucrativo divulgar os raros produtos da CC através dos canais habituais do Fado, em termos de casinos, hotéis, programas televisivos, lojas de vendas em grandes superfícies comerciais. Um breve soslaio sobre os caminhos da publicidade percorridos entre 1978-2005 demonstra zero esforço dos agentes na renovação de mensagens, grafismo, emblemas e símbolos. O produto que melhor vende corresponde a um invólucro simples assente numa frase curta bem visível (“Fados e Baladas de Coimbra”) e numa foto (de preferência um cantor embrulhado numa capa, podendo ou não ter uma guitarra ao colo, caso se pretenda uma colagem à imagem da Severa), constituindo elemento secundário acrescentar “grupo de fados de Coimbra”. A receita é infalível em qualquer latitude, proliferando nos escaparates “fados e baladas de Coimbra” com o mesmo sucesso com que na Idade Média se vendiam vértebras de Cristo, cabelos de São Pedro, unhas de Maria, lágrimas de Madalena e fibras do lenço de Verónica;
-os dinamizadores de jornadas, seminários e debates, tendo em conta encontros concretizados em Coimbra, Viseu e Vila Nova de Famalicão. Dos principais, nomeadamente “seminários” realizados pela CMC entre 1978-1983 não só não foram editadas as respectivas actas, como não se sabe ao certo do paradeiro das pastas documentais dos eventos referidos. Além da sonegação dos documentos, testemunhos, palestras e interpelações, frise-se que a esmagadora maioria dos seminários e colóquios levados a cabo entre 1978-2005 nem sempre contribuiu para dignificar o teor dos debates, pois alinhava indistintamente palestrantes especialistas, amadores, simpatizantes, jornalistas, apaixonados cultores que não poderiam prestar mais do que simples testemunho da sua época (quanto ao valor das rememorações para a História da CC, vide AMNunes, “Das memórias da Canção de Coimbra”, prefácio a Canção de Coimbra. Testemunhos Vivos, Coimbra, DGAAC, 2002, págs. 9-13). Conforme denunciei numa palestra realizada no Auditório da Reitoria da UC em finais de 2003, a convite do Museu Académico (“I Seminário Sobre Canção Coimbrã”, 8 e 9 de Novembro de 2003), não terão caído as proliferantes jornadas e seminários da CC no descrédito e na banalização, mercê dos descuidos supra-referidos?;
-empresários de casas de Fado (de Lisboa) e cantores profissionais activos em casas de Fados de Lisboa, instituições onde a partir do confinamento/profissionalização de 1927 se passaram a exibir fados e guitarradas ao estilo lisboeta, mais tarde acrescidos de pseudo danças folclóricas e “fados de Coimbra”. Se as chamadas danças folclóricas não garantiam o menor rigor em termos de canto, pronúncia e instrumentos regionais, que dizer dos chamados “fados de Coimbra”, cantados com os rodriguinhos característicos dos fadistas e acompanhados pela tocata do Fado de Lisboa?
Os empresários das casas de fados não estavam nada preocupados com a contrafacção, apostando em cenários idênticos ao apresentado por Amália Rodrigues em Nova York, no programa televisivo de Eddie Fisher (NBC, 1953), quando ali simulou uma “serenata” com o falso coimbrão “April in Portugal”. Os turistas acreditavam mesmo que estavam a consumir um produto genuinamente conimbricense, tanto mais que no momento da encenação os cantores se embrulhavam em capas.
Entre finais do século XIX e o 1º quartel do século XX houve artistas activos no Porto e em Lisboa que interpretaram e gravaram repertório da CC, não sendo ainda muito notória e escandalosa a diferença artística entre pólo matricial e franjas reprodutoras. Porém, a partir da chamada Década de Ouro não era mais possível continuar a ocultar as diferenças vocais, fonéticas e instrumentísticas. De cantores exógenos vindos da década de 1930 como Alberto Ribeiro e Loubet Bravo se infere de imediato não serem da “escola coimbrã”, para utilizarmos palavras caras ao cantor António Bernardino.
O “chamado Fado de Coimbra”, totalmente descontextualizado das vivências e imaginário da CC começou de algum modo a dar os primeiros passos em Outubro de 1937 quando o SNI de António Ferro optou por levar à Exposição Universal de Paris cantores líricos profissionais carnavalizados de serenateiros de Coimbra. O espectáculo realizado no Teatro dos Campos Elísios era um simulacro da própria realidade, pois o objectivo primordial do programa consistia em apresentar uma amostragem esteriotipada do folclore de cada província portuguesa, feita por actores convidados (Mafalda Ferro e Rita Ferro, Retrato de uma família. Fernanda de Castro. António Ferro. António Quadros, Lisboa, Círculo de Leitores, 1999, págs. 52-55, incluem uma foto do evento com Fernanda de Castro carnavalizada de “noiva minhota”, cujo trajo é uma autêntica fraude. Nas págs. 148-149, sobre Ferro, nada se acresenta de esclarecedor. Aliás, esta obra luxuosa configura uma espécie de branqueamento da memória histórica, refugiando-se no lado humano e no carinho familiar)
Eis-nos chegados a um dos maiores elefantes brancos da cultura do Estado Novo, essa temível expressão “folclore urbano”, que pretendia ler a CC como um pseudo folclore, expressão armadilhada e nunca discutida após 1974. Não por acaso, terá sido nas décadas de 1960-1970 que as formações activas nas casas de fados de Lisboa mais gravaram repertório clássico, ou próximo do clássico, mobilizando Loubet Bravo, Américo Lima, Américo Silva, José Borges, Ângelo Fernandes, João Queiroz (este com breve passagem por Coimbra em 1964-1965), Jorge Lima, Plínio Sérgio, e formações onde militaram instrumentistas como Orlando Silva, Carlos Gonçalves, António Chaínho, José Maria da Nóbrega, Zeferino Pinto, Jorge Barradas, Jorge Fontes, Fernando Pinto Coelho, Marcírio Ferreira, etc..
A ofensiva fonográfica lisboeta foi lida como um contra-ataque ortodoxo ao Segundo Modernismo da Canção de Coimbra e como piedoso acto de salvaguarda contra as ofensivas abolicionistas observadas mais directamente a partir da Crise Académica de 1969 (É o que se deduz da condenação explícita de Eduardo Sucena, Lisboa. O Fado e os fadistas, 2ª edição, Lisboa, Veja, 2002, pág. 177, e da compilação totalmente arbitrária de José Ribeiro de Morais, Colectânea de Fados e Canções de Coimbra, 2ª edição, Porto, Almeida & Leitão, 1998, com 1ª edição em 1982).
Nalguns casos não nos parece que os protagonistas pretendessem sequer ocultar a sua colagem a determinado tipo de discursos oficiais: João Queiroz, nos dois eps gravados com o Grupo dos Plácidos em 1965 (The Old Coimbra Fado I, RCA VICTOR, TP-180; The Old Coimbra Fado II, RCA VICTOR, TP-212) é proposto em texto de verso por Manuel Chaves e Castro como uma mais valia no elo de ligação Angola/Metrópole, precisamente na mesma altura em que a vinda dos finalistas do Liceu de Luanda a Portugal era alvo de cobertura noticiosa no Telejornal RTP como se assunto de Estado fora; Loubet Bravo, tio de João Queiroz, regista por 1973-1974 uma versão literária modificada de “Menina e Moça” (intitulada “Dom Portugal”, de Silva Bastos), cuja letra glorifica explicitamente a propaganda do regime assente na cartilha “Do Minho até Timor”, registo que pode ser reinterpretado como uma tentativa de incrustar na CC uma mensagem similar à cantada por Fernando Farinha no “Adeus Guiné/Já tenho o dever cumprido” (Cf. Cd Loubet Bravo. Clássicos da Renascença nº 80, Lisboa, Movieplay, MOV 31.087, ano de 2000, faixa nº 10);
-a atitude acrítica dos jovens aprendizes e múltiplas formações juvenis treinadas em Coimbra após 1978, com elevado défice de informação teórico-investigativa e de leituras de complemento da formação prática. Saberiam explicar-nos de forma clara e sucinta o significado de “grupo de fados”, “fadista”, “um fado”, “fado de Coimbra”, “fado-serenata”, “fado-canção”, “tempo de fado”, “pausa do fado”? Poderiam facultar-nos com desenvoltura sinónimos dessas palavras e expressões? Ou limitam-se a usá-las “porque sim”, à luz daquele falso critério que inventou “o falar açoriano”, “o tradicional vestido branco da noiva” (negado por todas as recolhas etnográficas anteriores a 1900), o famoso chavão jornalístico “Portugal joga contra…” (o que é radicalmente diferente de dizer-se “a Selecção Portuguesa de Futebol joga contra”)?
E se à problemática do vocabulário indagássemos sobre os movimentos artísticos mais significativos da CC, as autorias, os textos cantáveis, o repertório de um determinado protagonista, as flutuações da tocata, a importação de obras exógenas, o que nos diriam as formações? Provavelmente o mesmo que nos foi dado assistir nos palcos do Teatro Académico de Gil Vicente na 2ª metade da década de 1980: um foco de luz mortiço, um amontoado de silhuetas negras, vozes e instrumentos que saiam da penumbra, e de resto um atroz silêncio. Nem um boa noite, nem vamos cantar peças de sicrano, nem o nosso grupo trabalha o repertório tal e tal (não era este o modus faciendi dos Praxis Nova, pois Luís Alcoforado e Paulo Soares falavam com o público e apresentavam os espectáculos).
Terminemos com um exemplo, trazendo à discussão uma conjuntura muito citada e aparentemente bem conhecida da História da CC: a chamada “Década de Oiro”. Quando e quem disse ou escreveu que a década de 1920 pode ser considerada a “Década de Oiro”? Até ao momento o assunto não foi investigado. Quais os limites cronológicos da invocada “Década de Oiro”? Quem foram os protagonistas? Apenas estudantes? Estudantes e futricas? Onde situar a produção e presença activa de Flávio Rodrigues da Silva, Alexandre Louro, Augusto Louro, José Maria dos Santos, Manuel Rodrigues Paredes, José Lopes da Fonseca, Alexandre Resende, Antero da Veiga, Eugénio da Veiga, os irmãos Caetanos? Na chamada “Década de Oiro” não coexistiram em Coimbra resíduos vincados do estilo Belle Époque, Ultra-Romantismo e Modernismo Presencista? Quais os temas e produções literário-musicais que distinguem cada uma das sensibilidades supraenunciadas? E que elementos literário-musicais, vocais e digitantes, foram então considerados como Não-CC ou Anti-CC? A “Década de Oiro” corresponde a uma conjuntura estável e homogénea em termos literários, musicais, instrumentísticos, ideológicos? Última pergunta: os historiadores do Tango consagram e apresentam o período 1920-1935 como sendo a “Idade do Ouro do Tango”. Se idêntica designação existisse para o Fado de Lisboa, que interpretação fariam desta coincidência os alvitristas?
[1] Na vertebração deste texto saliento os incitamentos teóricos colhidos em Manuel Breda Simões, Roteiro lexical do culto e festas do Espírito Santo nos Açores, Lisboa, Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, 1987, e Philippe Forest, Termos fundamentais da cultura geral, Mem Martins, Publicações Europa América, 1994.
[2] Sigo muito de perto (quase em modo de transcrição) Manuel Breda Simões, op. cit., pág. 13.
[3] Amílcar Ferreira de Castro, A gíria dos estudantes de Coimbra, Coimbra, Faculdade de Letras (Suplemento da Biblos, nº 7), 1947.
[4] Numa tese de doutoramento subscrita por Manuel Alberto Carvalho Prata, A Academia de Coimbra (1880-1926). Sociedade, cultura e política, Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, 1994, não foi dedicada qualquer alínea ou capítulo à CC. Atitude pouco compreensível, pois o autor percorre as relações entre a Academia e o espaço citadino, as imagens dos futricas, as tascas, a festa, espaços de habitação, a praxe. A páginas 309 do Volume I, detecta-se lacónica referência a Hilário, com base em Octaviano de Sá e J. Ribeiro Morais, com ressalto abrupto para a década de 1920 (Menano, Bettencourt e Paradela). A quadra transcrita por Carvalho Prata encontra-se estropiada na recolha oral de José Ribeiro de Morais, Fados e canções de Coimbra, Porto, 1982. Esta última obra não se afigura fiável.
[5] António Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra, S/E, 1982. Dificuldades financeiras inviabilizaram a publicação do 2º volume (O Espírito de Coimbra).
[6] António Manuel Nunes, No rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma voz para a modernidade, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1999, págs. 171-186.
[7] Expressão colhida, com a devida vénia, numa palestra proferida na Faculdade de Letras da UC pelo Prof. Doutor Luís Miguel Duarte. Falando dos tardios interesses dos historiadores pela justiça medieval portuguesa e avaliando a produção de vultos como Paulo Merêa e Torquato de Sousa Soares, L. M. Duarte não hesitou em apodá-los de “talentos desperdiçados”.
[8] Leitura indirecta, feita através de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 7ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1986, págs. 19-40.
[9] Entendamo-nos: nem neonominalismo, nem “lifting semântico”, no último caso com derrapagem para o “políticamente correcto”, para o embuste eufemístico do relativismo assasssino e niilista onde a asseptização conduz ao “strip-tease” – a guitarra de Coimbra convertida alegremente em “guitarra portuguesa”, a “serenata masculina e viril” que fere a igualdade e a emancipação feminina, o deixa andar e o indiferentismo do “tudo é Canção de Coimbra”. Eros dessacraliza-se, dessubstancializa-se, e vai à “loja dos trezentos” de Narciso, em busca do “self-service” e do “por que não?”. Pelo que o tipo de discurso-interpelação adoptado ao longo destas páginas é mais do domínio revisionista do que propriamente da coutada pós-modernista.
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