domingo, outubro 16, 2005

A Canção de Coimbra no século XIX
(Ele há teorias... e teorias)
VIII. Outeiros e freiráticos, por António M. Nunes

Os outeiros ou abadessados eram recitais poéticos nocturnos realizados preferencialmente junto às portarias dos mosteiros femininos durante o Antigo Regime. Os outeiros conventuais de maior nomeada tinham lugar aquando da eleição das novas abadessas. Os edifícios conventuais conimbricenses vestiam-se de gala, adornados de panos brancos e luminárias. Mirones, versejadores e freiráticos apinhavam-se nos adros. Começavam então os galantes a puxar de suas tosses e pigarros afectados, enquanto de dentro alguma freira tardava em dizer “lá vai mote” e passavam a declamar docemente a redondilha. Seguiam-se as prestações dos repentistas afamados, afanosos na lide de esgrimir glosas.
Os outeiros conventuais trouxeram embeiçados lentes e estudantes, a que se juntavam bastas vezes fidalgotes expressamente vindos de Lisboa para a arte do galanteio. A pecha freirática originou uma sindicância no ano de 1619 aos frequentadores do Mosteiro de Santa Ana, onde se arrolaram 23 galanteadores, entre eles frades, um médico, canonistas, legistas e o futuro arcebispo de Lamego[1].
A devassa de 1619 deu azo à emergência de um poema satírico intitulado Satyra dos estudantes contra os frades, arquivado na secção de manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra com o número 555, onde o perfil dos galanteadores de monjas é verrinosamente traçado. Fala o documento em “estudantes bem nascidos”, “frades porcalhões”, “gostos desgraçados”, que vivem pendurados na grade da portaria do convento[2].
Contra os freiráticos académicos se fez a Lei de 3 de Novembro de 1671 e a Provisão de 3 de Março de 1725, ordenando a última que o corregedor de Coimbra tirasse anualmente devassa das pessoas que mantinham relações com freirinhas. Nos mosteiros femininos de Santana, Santa Clara e Celas procuravam os estudantes amores, poesia, suspiros e doces. De Santa Clara vinham as deliciosas Arrufadas, de Celas o gostoso e erótico Manjar Branco, de Semide as Nevadas, de Tentúgal os Pastéis, de Pereira do Campo as Queijadas[3]. Não menos procura tinham as compotas e os pires de marmelada, pratada com grande saída junto de professores e estudantes ainda no tempo em que Antero de Quental e João de Deus frequentaram a Universidade.
A prática das serenatas nas portarias dos conventos estava em moda nos finais do século XVIII. A elas se refere expressamente o estudante de Leis, cantor, tocador de viola de arame e guitarrista Francisco da Silveira Malhão, que na década de 1780 (1783-1789), actuou com regularidade junto aos colégios universitários dos Militares e de São Pedro, e percorreu as portarias dos conventos femininos de Lorvão, Sendelgas e Celas (Cf. Francisco da Silveira Malhão, “Vida e feitos de…”, 3ª edição, Volume I, Lisboa, 1824, págs. 209-210).

Amor vive n’alma
De Márcia escondido
E Márcia em amor
Se tem convertido.

Nem só às portas dos conventos femininos se organizavam os outeiros, havendo notícia de manifestações similares juntos aos reais colégios universitários de São Pedro e São Paulo.
De acordo com os estudos levados a cabo pela historiadora Maria Antónia Lopes, os outeiros remetem-nos para as imagens e papel social da mulher no Antigo Regime[4]. No Antigo Regime, as imagens oficiais da mulher oscilam entre o medo, a inventariação dos defeitos, a segregação sexual e a normativização das incapacidades femininas. Confinada à casa e à obediência, a mulher vive no lar. Em oposição ao recato quotidiano do lar, Maria Antónia Lopes opõe a sociabilidade dos conventos, espaços onde as freiras cultivavam relações amorosas, manifestações poéticas e teatrais. A literatura coeva, no seu acervo crítico, inverte o retrato da situação, dando a entender que os freiráticos eram objecto de exploratório capricho às mãos das freiras. O freirático ansiava uma carta, um suspiro, um mote, um pratinho de doce. Ao mínimo sinal corria à grade, à roda, à igreja, aos recadinhos das serventes e alcoviteiras[5].
No último quartel do século XVIII, os abadessados haviam extravasado a portaria dos conventos, tendo passado a significar, em sentido mais lato, ajuntamento de poetas com intuitos de poetar, declamar, ouvir ou executar trechos musicais. Por exemplo, nos dias 8 e 13 de Maio de 1814, os estudantes festejaram a vitória dos aliados sobre Napoleão Bonaparte, com outeiros poético-musicais. O processo de laicização dos outeiros conheceria os seus dias de glória no tempo em que Almeida Garrett e António Feliciano de Castilho frequentaram a Universidade. Ambos celebraram o triunfo da Revolução Liberal de 1820 com dois famigerados outeiros na Sala dos Capelos, nas noites de 21 e 22 de Novembro de 1820. Garrett voltaria a organizar um outeiro poético nas noites de 2 e 3 de Fevereiro de 1821, visando homenagear Borges Carneiro e o liberalismo[6].
A moda dos outeiros cívicos persistia em Coimbra, agora aproveitada na celebração da Primavera pelos poetas do grupo de Castilho, nas festas ocorridas no dia 1 de Maio de 1822[7]. Em 1824, os estudantes dedicaram três outeiros ao triunfo da causa miguelista, nas noites de 23, 24 e 25 de Fevereiro. Feliciano de Castilho participou activamente nos referidos outeiros, evento marcado por tumultos, pateadas violentas e 44 prisões.
A “traição” de Castilho à causa liberal nunca seria esquecida. O conflito gerado em torno da Questão Coimbrã (1865-1866) ressuscitou o caso, e Teófilo Braga não deixou de o anatematizar na sua História da Literatura Portuguesa. Na década de 1860, os estudantes conimbricenses já não perdiam tempo com outeiros, agora apodados de prática sociabilitária árcade, jesuítica e classicista. No volume V da História da Literatura Portuguesa, expressamente dedicada ao Romantismo, e publicado em 1880, Teófilo Braga estigmatiza Castilho e os outeiros políticos, “velha usança, que de todo passou de moda, e deixou ao abandono os poetas que ficaram hoje a suspirar pelas brisas”[8].
Desde finais do século XVIII que o estudante freirático tendia a desaparecer. Os antigos outeiros conventuais persistiriam em Coimbra para além da Revolução de 1820, junto do mosteiro de Santa Clara e do Convento das Teresinhas, e neles marcou presença António Feliciano de Castilho. Entre 1816 e 1826 esteve em voga o outeiro político, espécie de recital cívico de homenagem a grandes figuras (liberais, miguelistas) e ao renascer da Primavera.
A breve trecho, nem a nova modalidade dos outeiros cívicos logra escapar à mudança de gostos e códigos sociabilitários, crescentemente apostada nas assembleias, teatros e associações, onde se davam bailes, fantasias mascaradas, declamações, cantorias, joguinhos de prendas. Os mosteiros são oficialmente extintos em 1834. Com a fundação da Academia Dramática, em finais da década de 1830, a declamação poética é integrada nos saraus académicos, brilhando os melhores vates no interlúdio das peças teatrais. Em algumas casas particulares coimbrãs irrompem as assembleias festivas (salões), onde participam convidados masculinos e femininos. Nestas assembleias culturais canta-se, dança-se, come-se, toca-se piano, declama-se poesia. Aclama-se a valsa, a mazurca e a polca, a par da contradança, da jiga do solo inglês, do cotilhão e do lundum. Mais para o final do século XIX algumas mulheres conquistam um papel cultural crescentemente activo. Foi o caso da poetisa Amélia Jany, convidada de honra do Teatro Académico durante décadas[9], declamadora que reunia periodicamente na sua casa de habitação junto à Couraça de Lisboa poetas, dançarinos e instrumentistas.
À medida que o outeiro poético declina, outras formas de cortejamento da figura feminina conquistam terreno e cultores, entre elas o gosto pela realização de serenatas. Após o Terramoto de 1755, cataclismo que deixou marcas em Coimbra, as habitações vão deixando de ostentar nas molduras das janelas as ancestrais gelosias de madeira ou adufas (persianas ou grades de madeira reguada), por detrás das quais espreitavam recatadamente as mulheres. Os cachorros de pedra, outrora destinados a sustentar as adufas, começam a rarear nas novas construções, e os antigos apenas servem de suporte a vasos de flores. Ouvido o toque dos serenateiros em arruada lenta, silhuetas abeiram-se dos cortinados e fazem sinais de velas, mostrando um recato não inteiramente passivo.
NOTAS
[1] Cf. Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra (1537-1990), Lisboa, Rei dos Livros, 1990, pág. 30, e anotação nº 1 para a indicação das fontes.
[2] Sigam-se as interessantes crónicas de Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, Bric-à-Brac. Notas históricas e arqueológicas, Porto, Livraria Fernando Machado & Cª. Lda., 1926, págs. 100-116.
[3] Cf. Paulino Mota Tavares, “Iguarias e manjares do século XVII”, in História, nº 21, Julho de 1980.
[4] Maria Antónia Lopes, Mulheres, espaço e sociabilidade. A transformação dos papéis femininos em Portugal à luz das fontes literárias (segunda metade do século XVIII), Lisboa, Livros Horizonte, 1989.
[5] João José Cardoso, “Amores d’estudante”, in Via Latina, Coimbra, Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra, Dezembro de 1986, págs. 19-21.
[6] Para uma visão comparativa com os divertimentos havidos na cidade do Porto, vide Maria da Conceição Meireles Pereira, “O Porto no tempo de Garrett”, Porto; BPMP, 2000, pág. 36. Naquela cidade, os oiteiros ainda tinham lugar nos anos de juventude de Camilo castelo Branco, congregando tocadores de guitarra, poetas repentistas, declamadores, consumidores de doces e de licores.
[7] António Feliciano de Castilho, A Primavera, 2ª edição, Lisboa, Na Typographia de A.I.S. de Bulhões, 1837, pág. 92.
[8] Teófilo Braga, História da literatura portuguesa, Volume V, O Romantismo, Mem Martins, Europa América, sem data, pág. 311.
[9] Em Maio de 1891 o grupo de poetastros Os Polainudos, a que pertenciam Fausto Guedes Teixeira, Eugénio de Castro, Armando Navarro, Henrique de Vasconcelos, Agostinho de Campos, Alberto de Oliveira, Mendes dos Remédios, Alberto Osório e Castro, organizou no Jardim Botânico um outeiro poético onde foi convidada de honra Amélia Jany. Sobre este assunto, João Jardim de Vilhena, Uma página das minhas memórias... Amélia Jany, Coimbra, Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Volume XXV, 1961, págs. 5-14.

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