TRADIÇÕES ACADÉMICAS NO LICEU DE ÉVORA
Por José Anjos de Carvalho
1. Da criação do liceu e outros informes
A criação do Liceu de Évora provém do Decreto de 17 de Novembro de 1836, o qual teve por base o Plano dos Liceus Nacionais, da autoria do Vice-Reitor da Universidade de Coimbra, Doutor José Alexandre de Campos, na sequência da Reforma Geral do Ensino então empreendida (a Reforma do Ensino Secundário, chamada oficialmente Regulamento para os Liceus Nacionais, estabelecia uma estruturação curricular de apenas cinco anos e dividia os liceus por categorias, de acordo com as suas condições, em liceus de primeira e liceus de segunda).
O Liceu Nacional de Évora, foi instalado no “Colégio do Espírito Santo”, antiga Universidade de Évora, oito décadas depois do encerramento desta, tendo as aulas começado a funcionar com apenas 3 professores, em 18 de Outubro de 1841, (a Universidade de Évora fora fundada pelo Cardeal D. Henrique e funcionara ininterruptamente durante 208 anos, desde 1551 a 1759).
O ensino principiou com três cadeiras exclusivamente literárias, 1ª, 3ª e 10ª Cadeiras[1] e 17 alunos.
A primeira visita real que teve o Liceu foi a da Rainha D. Maria II, em 7 de Outubro de 1843, dois anos depois da sua fundação, durante uma visita que fez ao Alentejo.
O liceu passou a misto no ano lectivo de 1888-1889, com a matrícula de duas raparigas, número que subiu para a dezena em 1909-1910, quando Florbela Espanca era lá aluna, altura em que o nome do Liceu já tinha mudado para Liceu Central de André de Gouveia (o ensino secundário foi objecto de uma dúzia de reformas durante a existência do Liceu).
A partir de 1978 o Liceu Nacional de André de Gouveia passou a chamar-se Escola Secundária André de Gouveia e, no ano lectivo de 1979-1980, deixou o edifício da antiga Universidade de Évora e mudou-se para as actuais instalações, no Bairro de Nossa Senhora da Glória, em Évora.
2. Do uso do traje talar académico
Após a visita de D. Pedro V ao Alentejo, por Portaria do Ministério do Reino de 27 de Outubro de 1860, foi concedido o uso de capa e batina aos alunos do Liceu Nacional de Évora.
O Edital de 18 de Julho de 1861, publicado no jornal quinzenário «Scholastico Eborense» de 1 de Outubro de 1861, refere expressamente o seguinte: “Os alunos do Liceu Nacional desta cidade são obrigados a apresentar-se em todos os actos escolares com o vestido talar académico, cujo uso lhes foi concedido pela Portaria do Ministério do Reino de 27 de Outubro de 1860, sob pena de serem riscados do livro de matrícula os contraventores.”
A concessão do traje talar era até então (1860) exclusiva dos estudantes da Universidade de Coimbra (e, por extensão, aos alunos do Liceu de Coimbra), e só deles. No meu tempo ainda havia batinas com bandas de cetim e era frequente o uso do laço em vez de gravata.
Desde que o Liceu passou a ser misto (1888-1889), as raparigas começaram a usar também o traje talar (naquele tempo, a saia era comprida, até aos pés).
Na década de 40, havia raparigas que ainda usavam o “gorro”, no Inverno, claro. Alguns rapazes, muito raros, usavam como cobertura de cabeça aquilo a que chamávamos o “tacho”, que já se usava no séc. XIX.
3. Do Hino dos Estudantes do Liceu de Évora
O HINO DOS ESTUDANTES DO LICEU DE ÉVORA, de que se apresenta a respectiva partitura e letras, data de 1861 e é possível que exista alguma conexão com a concessão do uso do traje talar. A música é de Joaquim Sebastião Limpo Esquível e das duas letras do Hino, a que prevaleceu foi a de Martiniano Marrecas, ao que julgo.
O Hino dos Estudantes do Liceu de Évora, embora um pouco mais recente que o HINO ACADÉMICO DE COIMBRA (1853), de Cristiano de Medeiros e Sanches da Gama, é mais antigo que o chamado NOVO HINO ACADÉMICO (Oh vós, que sois sempre nobres), música de A. X. S. M. (desconheço quem seja), letra de José Nunes da Ponte (Medicina, 1879).
O Hino Académico, como lhe chamávamos, faz parte do repertório da Tuna Académica e, pelo menos do meu tempo para cá, é respeitosamente ouvido, sempre de pé, tal como o Hino Nacional, quando tocado. Isso mesmo aconteceu recentemente, na Récita do 1º de Dezembro de 2002, no Teatro Garcia de Resende, em que se comemorou também o 1º Centenário do Tuna Académica (1902-2002) e onde uma vez mais tive oportunidade de presenciar o facto.
Desconheço se há mais algum Liceus que tenha Hino Académico próprio.
4. Das associações da Academia
Associação Filantrópica Eborense
Foi criada em 1890 por estudantes desse tempo que, após a conclusão dos seus estudos, a mantiveram fora das actividades do Liceu.
O seu objectivo principal era o de ajudar os estudantes pobres mas a sua relação com a vida escolar foi diminuindo a pouco e pouco e, em 1910, com a implantação da República, o Governo Civil de Évora dissolveu esta associação, provavelmente por motivos políticos (a Associação Filantrópica coimbrã, criada em 1850, teve igual destino com o advento da Primeira República mas viria a ser restaurada poucos anos depois, em 1918, no tempo de Sidónio Pais).
Associação da Tuna Académica.
Nasce da anterior associação. Tem um carácter um pouco precário, reunia com o fim de realizar espectáculos musicais para angariar fundos destinados a custear as excursões anuais de estudantes, que normalmente se realizavam na época de Natal (no meu tempo, anos 40, havia anualmente, em Fevereiro ou Março, a chamada Excursão dos Finalistas, mas não era financiada).
Orfeon Académico.
O Orfeon foi criado no ano lectivo de 1912-1913. No meu tempo, o Orfeon era misto, constituído por 5 naipes (tenores, barítonos, baixos, sopranos e contraltos) e tinha mais de uma centena de elementos. Nele só se entrava a partir do 4º ano.
Nas apresentações em público do Orfeon era obrigatório para as raparigas o uso de vestido branco, comprido, e, para os rapazes, capa e batina.
O repertório era modesto. Em Junho de 1948, na Récita das Festas da Primavera, o Orfeon cantou o Hino Nacional, A Portugal, Costureirinha, Nasce o Dia, Coro dos Caçadores, Rapsódia Portuguesa e o Hino Académico do Liceu. Nas Récitas do 1º de Dezembro, por exemplo, o Adeste Fideles era sempre peça obrigatória.
Junta-se uma fotografia do Orfeon na Récita da Primavera de 09 de Junho de 1949, que por engano está invertida, vendo-se nela os tenores e os sopranos do lado direito quando, na realidade, estávamos à esquerda.
Associação Académica do Liceu Central de André de Gouveia.
Foi criada em 28 de Fevereiro de 1920, substituindo as anteriores. Tinha carácter cultural e filantrópico (existia ainda no início dos anos 40, quando entrei para o Liceu mas foi extinta uns dois anos depois e substituída pela Organização Nacional da Mocidade Portuguesa).
5. Dos jornais e revistas
Os alunos, ou grupos de alunos, do liceu e bem assim a Associação Académica do Liceu de Évora tiveram vários jornais e revistas, nos quais também participavam professores e antigos alunos.
Designados por Semanários:
* CORREIO ACADÉMICO (1884)
* ÉVORA ACADÉMICA (1888)
* ACADEMIA (1893-1904)
* ALVORADAS (1909-1910)
* ALMA ACADÉMICA (1913)
* GERMINAR (1913)
Designados por Quinzenários:
* SCHOLASTICO EBORENSE(1861-1863)
* O ACADÉMICO (1914-1915)
* REVISTA ACADÉMICA(1919-1920)
* O LYCEO(1920)
* O CORVO(1921- até à actualidade)
* O RENASCIMENTO(1929-1933)
O Corvo, “nome que surgiu da semelhança entre a plumagem negra do pássaro e o vestuário talar dos estudantes”, é o único jornal do meu tempo. Surgiu no 1º de Dezembro de 1921, com a criação da Associação Académica do Liceu Central de André de Gouveia e foi a publicação que se manteve activa durante mais tempo, mas períodos houve em que também não saiu.
No meu tempo só saíam apenas dois ou três números por ano lectivo. Considerá-lo como quinzenário, só por talvez o ter sido durante os primeiros tempos da sua existência, é título pretensioso que de forma alguma se coaduna com a realidade.
Lembro-me de haver também números de parede, num placard que havia nos claustros, junto à sineta das aulas, chamado O Corvo de Parede, ao que julgo.
Pelo que fica dito, presumo que os semanários só o seriam no título, sobretudo na semana em que saíam e presumo que essas saídas semanais seriam proteladas com alguma frequência. Outro tanto aconteceria com os quinzenários, tal e qual como em Coimbra.
6. Da Tuna Académica do Liceu de Évora
No Alentejo, a constituição de Tunas é tradição muito antiga. A Tuna Académica está bastante ligada às comemorações do 1º de Dezembro. A rebelião de 21 de Agosto de 1637, em Évora, deve ter contribuído para o grande entusiasmo de que se revestiam ainda no meu tempo as comemorações do Dia da Restauração Nacional.
Os primórdios da Tuna remontam ao séc. XIX. Datam do último decénio desse século tunas académicas efémeras organizadas para comemorar o 1º de Dezembro.
A Tuna Académica Eborense, assim chamada, actua pela primeira vez no 1º de Dezembro de 1900, acordando a população com o Hino da Restauração, ao percorrer as ruas da cidade ao romper da alvorada. Meses depois, em Fevereiro de 1901, dá o 1º espectáculo em benefício da Associação Filantrópica da Academia Eborense, que constitui também a sua 1ª digressão por vilas alentejanas, no caso Reguengos de Monsaraz.
No mês seguinte nova digressão, agora a Montemor-o-Novo, depois foi a vez de Badajoz e de Mérida.
A Tuna Académica do Liceu de Évora é fundada em 1902, no 1º de Dezembro, claro, e um dos seus objectivos é comemorar o 1º de Dezembro e realizar espectáculos para obter fundos para a Associação Filantrópica.
No meu tempo, no 1º de Dezembro, também percorríamos as ruas de Évora ao romper da alvorada, com o estandarte da Tuna, na companhia de muitos e muitos outros colegas que faziam algazarra. Após a saída do Liceu a primeira paragem da Tuna era sempre frente à casa do Reitor, Dr. Bartolomeu Gromicho, e depois de tocarmos o Hino Académico havia sempre ruidosos Efe-Erre-Ás. Seguidamente rompíamos a tocar pela rua, rumo às Portas de Moura, Praça do Giraldo, Jardim das Canas, etc., com paragens aqui e ali e muita algazarra, e regressávamos ao Liceu.
O repertório, não mais que oito a dez peças, incluía sempre o Hino Nacional, e o Hino da Restauração. No meu tempo, faziam parte do repertório, por exemplo, o Momento Musical e a Marcha Militar do Schubert, que me lembre, passados que são quase 60 anos que deixei o Liceu.
Junta-se uma fotografia da tuna actuando na escadaria dos claustros, por ocasião das comemorações do 1º centenário do Liceu, em 1941, e uma outra actuando no Teatro Garcia de Resende, no 1º de Dezembro de 2002, nas comemorações do seu 1º centenário.
7. Das récitas
Na década de 40, quando por lá andei, havia sempre duas récitas anuais, a do 1º de Dezembro e a das Festas da Primavera, em 9 ou 10 de Junho.
Nessas récitas havia sempre uma peça de teatro, regra geral em um acto e sobre o jocoso, actuações do Orfeon e da Tuna e, a encerrar, um acto de variedades com canções em voga, fados, tangos, boleros e por vezes poesia e/ou um monólogo também.
No acto de variedades do 1º de Dezembro de 1948, lembro-me de ter cantado a FEITICEIRA e, no das Festas da Primavera, A ÁGUA DA FONTE, fado que estava bastante na berra nessa altura. Este último, na sua versão original, é o FADO DO MAR LARGO (Ó mar largo, ó mar largo), música de Paulo de Sá, dedicada ao Paradela de Oliveira, e que foi gravado em 1927 por Elísio de Matos, acompanhado à guitarra pelo próprio Paulo de Sá e, à viola, pelo Prof. Dr. José Carlos Moreira.
8. Da praxe académica
No meu tempo havia alguma «praxe», era-se caloiro até ao 1º de Dezembro do ano seguinte.
Quem entrava para o 2º ciclo também era praxado mas só até ao 1º de Dezembro do próprio ano de entrada.
Havia eleições para a Direcção da Associação Académica, direcção que era constituída exclusivamente por estudantes, mas os caloiros não podiam votar.
Havia baptismos também, no fontanário que existe no jardim dos claustros e, ás vezes, o caloiro ia mesmo para dentro do lago.
Por vezes havia o seu corte de cabelo, muito pouco e, sobretudo, muito raro. Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual.
Talvez por não ter sido praxista, a ideia que tenho é que se tratava essencialmente de chacota, sem propriamente achincalhar os novos colegas, e se havia eventualmente violência certamente que o praxado teria muita culpa.
Até ao ano lectivo de 1939-40 era tradição, promovida pela Associação Académica, os estudantes do liceu, de capa e batina e com o Estandarte da Academia à frente, deslocarem-se em preito e romagem de saudade ao cemitério de Évora, ao Talhão dos Combatentes da 1ª Grande Guerra, no dia do Armistício (11 de Novembro).
9. Das serenatas e serenateiros
O primeiro cantor de Fados de Coimbra que terá tido o meu Liceu foi António Marques Batoque (1901-1971), natural de Évora, que se matriculou em Direito, em Coimbra, no início da década de 20, curso que concluiu em 1927, e que, sendo ainda universitário, gravou três discos de Fados de Coimbra para a COLUMBIA. Contudo, na década de 20 o que se tocava e cantava nas serenatas era essencialmente repertório regional do Alentejo e, não propriamente, Fado de Coimbra.
O cantor de maior nomeada na década de 20 teria sido José Cutileiro, depois médico militar, pai do diplomata do mesmo nome, tendo como acompanhante à guitarra Fernando Batalha, que se formaria em arquitectura.
Quando entrei para o Liceu o grande cantor e serenateiro era o Chico Carvalho (ou Chico Zé), que mais tarde, como cantor profissional, tomou o nome artístico de Francisco José.
A partir do meu 5º ano formámos um grupo de entusiásticos serenateiros (e noctívagos), só com repertório de Fados de Coimbra, grupo que se manteve até à saída do Liceu e muitas foram as serenatas que a altas horas da noite fizemos por essas ruas de Évora, às colegas e outras raparigas bonitas, sobretudo durante os nossos dois últimos anos do Liceu.
Quando no final de 1946 a antiga Emissora Nacional começou a transmitir o programa Serenata de Coimbra, aos domingos com repetição à sexta-feira, nós nunca perdíamos tal oportunidade, tal o entusiasmo que tínhamos.
As nossas guitarras eram do chamado tipo de Lisboa, embora o que cantássemos fossem Fados de Coimbra. Eu, pessoalmente, conhecia um repertório muito vasto, de várias dezenas de fados que haviam sido gravados na década de 20 (Menano, Bettencourt, Junot, Goes e Paradela).
A ideia que tenho é que, depois da saída do meu grupo, o Fado de Coimbra começou a perder cultores entre os estudantes do liceu, e esta minha asserção advém do seguinte:
Nas comemorações do 150º Aniversário da criação do Liceu (1º de Dezembro de 1991), na récita que houve no Teatro Garcia de Rezende, em que participaram também antigos estudantes só se cantaram dois Fados de Coimbra (Canção das Lágrimas e É tão lindo o teu Olhar) e quem os cantou fui eu, que deixara o Liceu havia quase meio século.
Uma dezena de anos depois, nas comemorações do 1º Centenário da Tuna Académica (1º de Dezembro de 2002), na récita realizada no Teatro Garcia de Rezende, houve fado mas fado de Lisboa e só de Lisboa (António Pinto Bastos).
Eu era para participar e até teria um acompanhante de luxo à guitarra, o António José Moreira, que muito amavelmente se prontificou a acompanhar-me, mas houve um equívoco de datas, de que fui o culpado, e a actuação não se concretizou. Daqui testemunho o meu muito apreço e profunda gratidão ao António José Moreira pela sua disponibilidade e extrema gentileza.
Sugeriram-me então dois outros acompanhantes, mas essa experiência não resultou, pelo que optei por ficar na assistência para não correr o risco de um possível fiasco.
(Estes dois factos afiguram-se sintomáticos de uma crise mais geral e profunda. Substituindo a expressão, presentemente muito controversa, de Fado de Coimbra, pela designação perfeitamente pacífica de O Canto e Guitarra de Coimbra, eu diria que o Canto entrou em decadência).
Nota Final:
Para maiores detalhes consultar: MEMÓRIA DO LICEU, de J. M. Monarca Pinheiro, Évora, 1991, e GUITARRA PORTUGUESA – da Torre de Belém às ruas e associações do Redondo e Évora, de Lino Rodrigo e Teotónio Xavier, in A Guitarra Portuguesa – Actas do Simpósio Internacional realizado na Universidade de Évora em 7, 8 e 9 de Setembro de 2001, Editora Estar, Lisboa, 2002.
Lisboa, 30 de Setembro de 2005
Por José Anjos de Carvalho
1. Da criação do liceu e outros informes
A criação do Liceu de Évora provém do Decreto de 17 de Novembro de 1836, o qual teve por base o Plano dos Liceus Nacionais, da autoria do Vice-Reitor da Universidade de Coimbra, Doutor José Alexandre de Campos, na sequência da Reforma Geral do Ensino então empreendida (a Reforma do Ensino Secundário, chamada oficialmente Regulamento para os Liceus Nacionais, estabelecia uma estruturação curricular de apenas cinco anos e dividia os liceus por categorias, de acordo com as suas condições, em liceus de primeira e liceus de segunda).
O Liceu Nacional de Évora, foi instalado no “Colégio do Espírito Santo”, antiga Universidade de Évora, oito décadas depois do encerramento desta, tendo as aulas começado a funcionar com apenas 3 professores, em 18 de Outubro de 1841, (a Universidade de Évora fora fundada pelo Cardeal D. Henrique e funcionara ininterruptamente durante 208 anos, desde 1551 a 1759).
O ensino principiou com três cadeiras exclusivamente literárias, 1ª, 3ª e 10ª Cadeiras[1] e 17 alunos.
A primeira visita real que teve o Liceu foi a da Rainha D. Maria II, em 7 de Outubro de 1843, dois anos depois da sua fundação, durante uma visita que fez ao Alentejo.
O liceu passou a misto no ano lectivo de 1888-1889, com a matrícula de duas raparigas, número que subiu para a dezena em 1909-1910, quando Florbela Espanca era lá aluna, altura em que o nome do Liceu já tinha mudado para Liceu Central de André de Gouveia (o ensino secundário foi objecto de uma dúzia de reformas durante a existência do Liceu).
A partir de 1978 o Liceu Nacional de André de Gouveia passou a chamar-se Escola Secundária André de Gouveia e, no ano lectivo de 1979-1980, deixou o edifício da antiga Universidade de Évora e mudou-se para as actuais instalações, no Bairro de Nossa Senhora da Glória, em Évora.
2. Do uso do traje talar académico
Após a visita de D. Pedro V ao Alentejo, por Portaria do Ministério do Reino de 27 de Outubro de 1860, foi concedido o uso de capa e batina aos alunos do Liceu Nacional de Évora.
O Edital de 18 de Julho de 1861, publicado no jornal quinzenário «Scholastico Eborense» de 1 de Outubro de 1861, refere expressamente o seguinte: “Os alunos do Liceu Nacional desta cidade são obrigados a apresentar-se em todos os actos escolares com o vestido talar académico, cujo uso lhes foi concedido pela Portaria do Ministério do Reino de 27 de Outubro de 1860, sob pena de serem riscados do livro de matrícula os contraventores.”
A concessão do traje talar era até então (1860) exclusiva dos estudantes da Universidade de Coimbra (e, por extensão, aos alunos do Liceu de Coimbra), e só deles. No meu tempo ainda havia batinas com bandas de cetim e era frequente o uso do laço em vez de gravata.
Desde que o Liceu passou a ser misto (1888-1889), as raparigas começaram a usar também o traje talar (naquele tempo, a saia era comprida, até aos pés).
Na década de 40, havia raparigas que ainda usavam o “gorro”, no Inverno, claro. Alguns rapazes, muito raros, usavam como cobertura de cabeça aquilo a que chamávamos o “tacho”, que já se usava no séc. XIX.
3. Do Hino dos Estudantes do Liceu de Évora
O HINO DOS ESTUDANTES DO LICEU DE ÉVORA, de que se apresenta a respectiva partitura e letras, data de 1861 e é possível que exista alguma conexão com a concessão do uso do traje talar. A música é de Joaquim Sebastião Limpo Esquível e das duas letras do Hino, a que prevaleceu foi a de Martiniano Marrecas, ao que julgo.
O Hino dos Estudantes do Liceu de Évora, embora um pouco mais recente que o HINO ACADÉMICO DE COIMBRA (1853), de Cristiano de Medeiros e Sanches da Gama, é mais antigo que o chamado NOVO HINO ACADÉMICO (Oh vós, que sois sempre nobres), música de A. X. S. M. (desconheço quem seja), letra de José Nunes da Ponte (Medicina, 1879).
O Hino Académico, como lhe chamávamos, faz parte do repertório da Tuna Académica e, pelo menos do meu tempo para cá, é respeitosamente ouvido, sempre de pé, tal como o Hino Nacional, quando tocado. Isso mesmo aconteceu recentemente, na Récita do 1º de Dezembro de 2002, no Teatro Garcia de Resende, em que se comemorou também o 1º Centenário do Tuna Académica (1902-2002) e onde uma vez mais tive oportunidade de presenciar o facto.
Desconheço se há mais algum Liceus que tenha Hino Académico próprio.
4. Das associações da Academia
Associação Filantrópica Eborense
Foi criada em 1890 por estudantes desse tempo que, após a conclusão dos seus estudos, a mantiveram fora das actividades do Liceu.
O seu objectivo principal era o de ajudar os estudantes pobres mas a sua relação com a vida escolar foi diminuindo a pouco e pouco e, em 1910, com a implantação da República, o Governo Civil de Évora dissolveu esta associação, provavelmente por motivos políticos (a Associação Filantrópica coimbrã, criada em 1850, teve igual destino com o advento da Primeira República mas viria a ser restaurada poucos anos depois, em 1918, no tempo de Sidónio Pais).
Associação da Tuna Académica.
Nasce da anterior associação. Tem um carácter um pouco precário, reunia com o fim de realizar espectáculos musicais para angariar fundos destinados a custear as excursões anuais de estudantes, que normalmente se realizavam na época de Natal (no meu tempo, anos 40, havia anualmente, em Fevereiro ou Março, a chamada Excursão dos Finalistas, mas não era financiada).
Orfeon Académico.
O Orfeon foi criado no ano lectivo de 1912-1913. No meu tempo, o Orfeon era misto, constituído por 5 naipes (tenores, barítonos, baixos, sopranos e contraltos) e tinha mais de uma centena de elementos. Nele só se entrava a partir do 4º ano.
Nas apresentações em público do Orfeon era obrigatório para as raparigas o uso de vestido branco, comprido, e, para os rapazes, capa e batina.
O repertório era modesto. Em Junho de 1948, na Récita das Festas da Primavera, o Orfeon cantou o Hino Nacional, A Portugal, Costureirinha, Nasce o Dia, Coro dos Caçadores, Rapsódia Portuguesa e o Hino Académico do Liceu. Nas Récitas do 1º de Dezembro, por exemplo, o Adeste Fideles era sempre peça obrigatória.
Junta-se uma fotografia do Orfeon na Récita da Primavera de 09 de Junho de 1949, que por engano está invertida, vendo-se nela os tenores e os sopranos do lado direito quando, na realidade, estávamos à esquerda.
Associação Académica do Liceu Central de André de Gouveia.
Foi criada em 28 de Fevereiro de 1920, substituindo as anteriores. Tinha carácter cultural e filantrópico (existia ainda no início dos anos 40, quando entrei para o Liceu mas foi extinta uns dois anos depois e substituída pela Organização Nacional da Mocidade Portuguesa).
5. Dos jornais e revistas
Os alunos, ou grupos de alunos, do liceu e bem assim a Associação Académica do Liceu de Évora tiveram vários jornais e revistas, nos quais também participavam professores e antigos alunos.
Designados por Semanários:
* CORREIO ACADÉMICO (1884)
* ÉVORA ACADÉMICA (1888)
* ACADEMIA (1893-1904)
* ALVORADAS (1909-1910)
* ALMA ACADÉMICA (1913)
* GERMINAR (1913)
Designados por Quinzenários:
* SCHOLASTICO EBORENSE(1861-1863)
* O ACADÉMICO (1914-1915)
* REVISTA ACADÉMICA(1919-1920)
* O LYCEO(1920)
* O CORVO(1921- até à actualidade)
* O RENASCIMENTO(1929-1933)
O Corvo, “nome que surgiu da semelhança entre a plumagem negra do pássaro e o vestuário talar dos estudantes”, é o único jornal do meu tempo. Surgiu no 1º de Dezembro de 1921, com a criação da Associação Académica do Liceu Central de André de Gouveia e foi a publicação que se manteve activa durante mais tempo, mas períodos houve em que também não saiu.
No meu tempo só saíam apenas dois ou três números por ano lectivo. Considerá-lo como quinzenário, só por talvez o ter sido durante os primeiros tempos da sua existência, é título pretensioso que de forma alguma se coaduna com a realidade.
Lembro-me de haver também números de parede, num placard que havia nos claustros, junto à sineta das aulas, chamado O Corvo de Parede, ao que julgo.
Pelo que fica dito, presumo que os semanários só o seriam no título, sobretudo na semana em que saíam e presumo que essas saídas semanais seriam proteladas com alguma frequência. Outro tanto aconteceria com os quinzenários, tal e qual como em Coimbra.
6. Da Tuna Académica do Liceu de Évora
No Alentejo, a constituição de Tunas é tradição muito antiga. A Tuna Académica está bastante ligada às comemorações do 1º de Dezembro. A rebelião de 21 de Agosto de 1637, em Évora, deve ter contribuído para o grande entusiasmo de que se revestiam ainda no meu tempo as comemorações do Dia da Restauração Nacional.
Os primórdios da Tuna remontam ao séc. XIX. Datam do último decénio desse século tunas académicas efémeras organizadas para comemorar o 1º de Dezembro.
A Tuna Académica Eborense, assim chamada, actua pela primeira vez no 1º de Dezembro de 1900, acordando a população com o Hino da Restauração, ao percorrer as ruas da cidade ao romper da alvorada. Meses depois, em Fevereiro de 1901, dá o 1º espectáculo em benefício da Associação Filantrópica da Academia Eborense, que constitui também a sua 1ª digressão por vilas alentejanas, no caso Reguengos de Monsaraz.
No mês seguinte nova digressão, agora a Montemor-o-Novo, depois foi a vez de Badajoz e de Mérida.
A Tuna Académica do Liceu de Évora é fundada em 1902, no 1º de Dezembro, claro, e um dos seus objectivos é comemorar o 1º de Dezembro e realizar espectáculos para obter fundos para a Associação Filantrópica.
No meu tempo, no 1º de Dezembro, também percorríamos as ruas de Évora ao romper da alvorada, com o estandarte da Tuna, na companhia de muitos e muitos outros colegas que faziam algazarra. Após a saída do Liceu a primeira paragem da Tuna era sempre frente à casa do Reitor, Dr. Bartolomeu Gromicho, e depois de tocarmos o Hino Académico havia sempre ruidosos Efe-Erre-Ás. Seguidamente rompíamos a tocar pela rua, rumo às Portas de Moura, Praça do Giraldo, Jardim das Canas, etc., com paragens aqui e ali e muita algazarra, e regressávamos ao Liceu.
O repertório, não mais que oito a dez peças, incluía sempre o Hino Nacional, e o Hino da Restauração. No meu tempo, faziam parte do repertório, por exemplo, o Momento Musical e a Marcha Militar do Schubert, que me lembre, passados que são quase 60 anos que deixei o Liceu.
Junta-se uma fotografia da tuna actuando na escadaria dos claustros, por ocasião das comemorações do 1º centenário do Liceu, em 1941, e uma outra actuando no Teatro Garcia de Resende, no 1º de Dezembro de 2002, nas comemorações do seu 1º centenário.
7. Das récitas
Na década de 40, quando por lá andei, havia sempre duas récitas anuais, a do 1º de Dezembro e a das Festas da Primavera, em 9 ou 10 de Junho.
Nessas récitas havia sempre uma peça de teatro, regra geral em um acto e sobre o jocoso, actuações do Orfeon e da Tuna e, a encerrar, um acto de variedades com canções em voga, fados, tangos, boleros e por vezes poesia e/ou um monólogo também.
No acto de variedades do 1º de Dezembro de 1948, lembro-me de ter cantado a FEITICEIRA e, no das Festas da Primavera, A ÁGUA DA FONTE, fado que estava bastante na berra nessa altura. Este último, na sua versão original, é o FADO DO MAR LARGO (Ó mar largo, ó mar largo), música de Paulo de Sá, dedicada ao Paradela de Oliveira, e que foi gravado em 1927 por Elísio de Matos, acompanhado à guitarra pelo próprio Paulo de Sá e, à viola, pelo Prof. Dr. José Carlos Moreira.
8. Da praxe académica
No meu tempo havia alguma «praxe», era-se caloiro até ao 1º de Dezembro do ano seguinte.
Quem entrava para o 2º ciclo também era praxado mas só até ao 1º de Dezembro do próprio ano de entrada.
Havia eleições para a Direcção da Associação Académica, direcção que era constituída exclusivamente por estudantes, mas os caloiros não podiam votar.
Havia baptismos também, no fontanário que existe no jardim dos claustros e, ás vezes, o caloiro ia mesmo para dentro do lago.
Por vezes havia o seu corte de cabelo, muito pouco e, sobretudo, muito raro. Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual.
Talvez por não ter sido praxista, a ideia que tenho é que se tratava essencialmente de chacota, sem propriamente achincalhar os novos colegas, e se havia eventualmente violência certamente que o praxado teria muita culpa.
Até ao ano lectivo de 1939-40 era tradição, promovida pela Associação Académica, os estudantes do liceu, de capa e batina e com o Estandarte da Academia à frente, deslocarem-se em preito e romagem de saudade ao cemitério de Évora, ao Talhão dos Combatentes da 1ª Grande Guerra, no dia do Armistício (11 de Novembro).
9. Das serenatas e serenateiros
O primeiro cantor de Fados de Coimbra que terá tido o meu Liceu foi António Marques Batoque (1901-1971), natural de Évora, que se matriculou em Direito, em Coimbra, no início da década de 20, curso que concluiu em 1927, e que, sendo ainda universitário, gravou três discos de Fados de Coimbra para a COLUMBIA. Contudo, na década de 20 o que se tocava e cantava nas serenatas era essencialmente repertório regional do Alentejo e, não propriamente, Fado de Coimbra.
O cantor de maior nomeada na década de 20 teria sido José Cutileiro, depois médico militar, pai do diplomata do mesmo nome, tendo como acompanhante à guitarra Fernando Batalha, que se formaria em arquitectura.
Quando entrei para o Liceu o grande cantor e serenateiro era o Chico Carvalho (ou Chico Zé), que mais tarde, como cantor profissional, tomou o nome artístico de Francisco José.
A partir do meu 5º ano formámos um grupo de entusiásticos serenateiros (e noctívagos), só com repertório de Fados de Coimbra, grupo que se manteve até à saída do Liceu e muitas foram as serenatas que a altas horas da noite fizemos por essas ruas de Évora, às colegas e outras raparigas bonitas, sobretudo durante os nossos dois últimos anos do Liceu.
Quando no final de 1946 a antiga Emissora Nacional começou a transmitir o programa Serenata de Coimbra, aos domingos com repetição à sexta-feira, nós nunca perdíamos tal oportunidade, tal o entusiasmo que tínhamos.
As nossas guitarras eram do chamado tipo de Lisboa, embora o que cantássemos fossem Fados de Coimbra. Eu, pessoalmente, conhecia um repertório muito vasto, de várias dezenas de fados que haviam sido gravados na década de 20 (Menano, Bettencourt, Junot, Goes e Paradela).
A ideia que tenho é que, depois da saída do meu grupo, o Fado de Coimbra começou a perder cultores entre os estudantes do liceu, e esta minha asserção advém do seguinte:
Nas comemorações do 150º Aniversário da criação do Liceu (1º de Dezembro de 1991), na récita que houve no Teatro Garcia de Rezende, em que participaram também antigos estudantes só se cantaram dois Fados de Coimbra (Canção das Lágrimas e É tão lindo o teu Olhar) e quem os cantou fui eu, que deixara o Liceu havia quase meio século.
Uma dezena de anos depois, nas comemorações do 1º Centenário da Tuna Académica (1º de Dezembro de 2002), na récita realizada no Teatro Garcia de Rezende, houve fado mas fado de Lisboa e só de Lisboa (António Pinto Bastos).
Eu era para participar e até teria um acompanhante de luxo à guitarra, o António José Moreira, que muito amavelmente se prontificou a acompanhar-me, mas houve um equívoco de datas, de que fui o culpado, e a actuação não se concretizou. Daqui testemunho o meu muito apreço e profunda gratidão ao António José Moreira pela sua disponibilidade e extrema gentileza.
Sugeriram-me então dois outros acompanhantes, mas essa experiência não resultou, pelo que optei por ficar na assistência para não correr o risco de um possível fiasco.
(Estes dois factos afiguram-se sintomáticos de uma crise mais geral e profunda. Substituindo a expressão, presentemente muito controversa, de Fado de Coimbra, pela designação perfeitamente pacífica de O Canto e Guitarra de Coimbra, eu diria que o Canto entrou em decadência).
Nota Final:
Para maiores detalhes consultar: MEMÓRIA DO LICEU, de J. M. Monarca Pinheiro, Évora, 1991, e GUITARRA PORTUGUESA – da Torre de Belém às ruas e associações do Redondo e Évora, de Lino Rodrigo e Teotónio Xavier, in A Guitarra Portuguesa – Actas do Simpósio Internacional realizado na Universidade de Évora em 7, 8 e 9 de Setembro de 2001, Editora Estar, Lisboa, 2002.
Lisboa, 30 de Setembro de 2005
[1] As cadeiras eram as seguintes: Gramática Portuguesa e Latina, Clássicos Portugueses e Latinos (1ª Cadeira), Ideologia, Gramática geral e Lógica (3ª Cadeira) e Oratória, Poética e Literatura Clássica, especialmente a Portuguesa (10ª Cadeira).
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