domingo, novembro 27, 2005

Postal para Frias Gonçalves
Noite Serena (serenata-lundum)
De: António M. Nunes
Meu Caro F. Frias Gonçalves, agradeço-lhe a fineza de em Domingo friorento nos ter enviado de prendinha uma agradabilíssima versão instrumental completa da melodia "Noite Serena", com seu arranjo para guitarra e execução polivalente em Guitarra de Coimbra e viola nylon. A composição a que o meu Amigo chama "Sereno corre o Mondego", não é popular (embora esteja popularizada em todo o país desde a 2ª metade do século XIX), tendo sido identificada pelo 1º verso de uma copla popular muito cantada pelos ranchos conimbricenses que animavam as Fogueiras de São João e as serenatas populares fluviais.
Muito grato pela amabilidade, devolvo-lhe em texto algumas informações porventura úteis, acrescentando que em devido tempo publicaremos neste Blog a solfa completa de Noite Serena.

Peça composta entre 1855-1858 por José António dos Santos Neves Dória, sendo a letra de Camilo Castelo Branco (1850), salvo a parte corresponde ao estribilho, cujo autor não conseguimos identificar. Há uma gravação no CD "Olhar Coimbra", SPA, Ano de 1998, pelo grupo Arrium Porrium. Voz de Maria de Lurdes Garcia; Guitarras de Coimbra (António Ralha, Jorge Gomes); Viola (Pedro Lopes); Cavaquinho (Jorge Pessoa); Flauta (Isabel Pinto). Durante longos anos, Noite Serena foi palmarés do Grupo de Cordas do Ateneu de Coimbra. A dita versão está registada pelo Grupo de Cordas e Cantares de Coimbra, no CD "Torre de Santa Cruz", Coimbra, Rijo Madeira Audiovsisuais, ano de 2002, faixa nº 2, com atribuição errada a José Elyseu. Há outra gravação instrumental no CD "Antigos Tunos da Universidade de Coimbra. Sine Musica nulla vita", Coimbra, Agitarte, sem data, AGT 00395, faixa nº 13, com identificação autoral correcta.
Das gravações antigas, documentalmente identificadas, cujas matrizes fonográficas são autênticas raridades, lembremos a do cantor activo em Lisboa, Avelino Baptista, no 78 rpm Zo. 52060 (Noite Serena, ano de 1905). Temos ainda uma nota relativa a uma gravação efectuada pelo cantor e guitarrista Reynaldo Varela nos alvores do século XX, não conseguimos encontrar os dados relativos à matriz fonográfica e ao ano de gravação.
Melodia escrita em compasso binário simples e Modo menor (tom de Mi Menor), com passagem a Mi Maior na entrada do estribilho. Canta-se cada uma das quadras sem repetição dos versos e entra-se logo no estribilho, onde há coro para primeira e segunda vozes. A melodia espelha alguma elaboração, embora o fraseado musical seja relativamente simples. O ritmo de lundum, está adequado às possibilidades da Viola Toeira, instrumento onde se notabilizou Dória como solista e acompanhador de cantores. Noite Serena apresenta um ritmo bastante sincopado. “Uma marchinha”, diriam os musicólogos desatentos. Um lundum mal disfarçado, acrescentaremos. De salientar a forte marca romântica de algumas quadras cantadas na presente serenata: a figura idealizada da mulher-anjo, a natureza confidente do sofrimento íntimo, a solidão.
Nos meios populares locais foi usual abrir este tema com a conhecida quadra escrita por João de Deus em 1860 (Nestas águas do Mondego/Se pode a gente mirar). Foi um dos temas mais aplaudidos nas vozes das tricanas e nas Fogueiras de São João. Esta serenata grangeou enorme popularidade em todo o país. O folclorista Júlio Andrade ("Bailhos, rodas e cantorias", Horta, 1960, pág. 332) detectou uma variante nas Ilhas do Pico e Faial nos ínícios do século XX. Domingos Ciríaco Cardoso adaptou Noite Serena a uma das suas operetas, no último quartel do século XIX. Integrou ainda o elenco musical da opereta dramática "O Brasileiro Pancrácio", encenada por José de Almeida e levada à cena na Figueira da Foz, tendo sido cantada pelo tenor Alexandre Louro. José de Almeida e Alexandre Louro ignoravam quem fora o autor de Noite Serena, pelo que na ficha técnica da referida opereta constavam os nomes de Freitas Gazul (compositor e maestro) e Sá de Albergaria (letrista). Atribuir Noite Serena à autoria de Freitas Gazul (música) e Sá Albergaria (letra) é erro desonesto que remonta pelo menos a 31 de Março de 1913, data em que os artistas referidos fizeram estrear no Teatro Avenida, Lisboa, a opereta "O Brasileiro Pancrácio". A contrafacção, presente no CD "Árias de Operetas Portuguesas", Lisboa, Movieplay, MOV31.097, ano de 2000, faixa nº 2, não deixa margem para qualquer dúvida. A melodia de José Dória mantém-se assaz próxima do original, sendo diminutas as alterações introduzidas pelo maestro Freitas Gazul. Onde o trabalho de Gazul verdadeiramente se nota é ao nível da harmonização. Parte da letra interpretada no referido fonograma é efectivamente da autoria de António da Costa Couto Sá de Albergaria (1850-1921), que não toda a letra, uma vez que o estribilho ancestral poucas alterações sofreu. Afinal quem é o autor da contrafacção? Francisco de Freitas Gazul (1842-1925) , ou, antes dele, Domingos Ciríaco Cardoso (1846-1900)? Círiaco Cardoso não terá sido, pois era um compositor bem relacionado com a orquestra do Teatro Académico de Coimbra e chegou a colaborar na partitura de uma récita de quintanistas. A contrafacção deve ser apontada a Freitas Gazul, o que não deixa de ser estranho, pois os meios musicais lisboetas conheciam Noite Serena desde pelo menos 1858-1859, altura em Dória deu concertos em Lisboa, perante figuras graúdas como Sá de Noronha, Cossul e a cantora Rey-Balla. Considerando que nas histórias do Fado de Lisboa em voga na primeira quinzena do século XX (mormente Tinop e Alberto Pimentel) se considerava pouco escrupulosamente a Canção de Coimbra como um especial tipo de Fado, não surpreende esta falsificação de autorias. Se a Canção de Coimbra não possuía identidade musical distinta do Fado, e se evolucionara a partir do Fado (dizia-se e escrevia-se), como admitir em 1913 que Noite Serena tivesse nascido do engenho de uma das figuras mais paradigmáticas das origens da Canção de Coimbra?

Vem meu anjo que eu não posso
Viver n’este ermo sem ti
Vem meu anjo senão voas
Cuidarei que te perdi.

(estribilho)
Que noite serena
Que lindo luar
Que linda barquinha
Que eu vejo no mar
Vem, vem, oh meu anjo
Fujamos d’aqui
Que a noite está bela
O amor nos sorri.

Tu já sabes quantas mágoas
Uma saudade contém
Ah! São muitas, sinto-as todas
Vem meu anjo, corre, vem.

Aqui nesta soledade
Cada flor é tua imagem
Cada mumúrio um suspiro
Cada gemido uma aragem.

Vejo em tudo a tua sombra
Mas eu chamo-te, e não falas
Vem meu anjo de ternura
Que estas flores são tuas galas.

Vem, rainha destes prados
Que o teu trono tens aqui
Deixa as turbas desse mundo
Que não é mundo p’ra ti.

Tens um ermo aonde a vida
É tranquila em singeleza
Onde o eterno ostenta as pompas
Da formosa natureza.

Tens no alvor da madrugada
As canções do rouxinol
Que festeja os froixos raios
Que lhe dá benigno sol.

Tens, à tarde, os horizontes
Purpurinos, d’além mar
Que nos fazem sentir n’alma
Sensações d’um vago amar.

Tens, à noite, este silêncio
De saudade e de tristeza
Quando a alma vela tanto
E adormece a natureza.

Tens em cada instante, um ente
Que te diz, em voz da terra
Mil celestes pensamentos
Que no coração encerra.

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