domingo, novembro 06, 2005


Segundo dia das III Jornadas de Temática Musical promovidas pela AATUC. Eduardo Aroso, ladeado por Polybio Serra e Silva, está a ler um texto elaborado pelo Grupo "Os Quatro Elementos", que a reguir se reproduz, com os agradecimentos dos leitores do Blog.:
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UM CAMINHO ENTRE CAMINHOS[1]
Os Quatro Elementos

Que fruto nos dá aquela árvore?
Pode essa mesma árvore dar sempre e exactamente o mesmo fruto?
Mais ainda: se com o passar dos anos minguar o fruto, debruçar-nos-emos então sobre o problema da raiz?

Nesta imagem podemos ver o clássico problema da tensão entre a tradição e a renovação, entre passado e futuro. Se nos referirmos àquele tipo de árvore imortal de que nos fala a Bíblia, essa árvore de eterna sabedoria, então podemos estar tranquilos: a raiz nunca seca e haverá sempre fruto.

De um ponto de vista culturalmente amplo, podemos dizer que se a árvore se refere àquela Tradição (com T maiúsculo), ou seja a Tradição das Grandes Idades de que nos fala, por exemplo, Corbin, Guénon ou Lévi-Strauss, então temos uma problemática que foge ao nosso tema, sendo certo que todos vivemos mais ou menos imersos num vago e grande inconsciente colectivo, como diria Carl Jung.
Noutro contexto, falamos da tradição coimbrã, tradição que embora com t minúsculo, porque de um ciclo de tempo bem menor, ainda assim preenche a nossa vida, deslizando em nós como o caudal de um rio. Herança cultural do chamado fado e da guitarra de Coimbra, onde o estudante de antanho, que à parte uma ou outra circunstância não se mesclando com outros estratos sociais, partilhava contudo da mesma paisagem, do mesmo canto dos rouxinóis, e que acabaria até por assimilar esse peculiar jeito de cantar das antigas lavadeiras do Mondego. E o resto era a vida académica, fosse no estudo ou na diversão. Com o tempo estruturou-se, inquestionavelmente, um modo de cantar e tocar próprios na Lusa-Atenas.

Quem cria faz sobre algo ou alguma coisa, esse algo que parece ser um reduto, não só para manter a continuidade, mas para garantir a alegria de caminhos novos entre os velhos, ou caminhos entre os caminhos.
No entanto, não devemos esquecer a expressão “vinho novo em odres velhos”. Infelizmente, têm-se verificado, em maior ou menor grau, provas da sua validade. No entanto, haverá sempre vinho feito a partir de alguma coisa. Aliás convém não esquecer as sábias palavras de Santayana “aqueles que não conseguem recordar o passado estão condenados a repeti-lo”.
De vários modos e diversas sensibilidades tem sido feita alguma história das andanças do canto e da guitarra. Disso não iremos tratar. Tentaremos, isso sim, equacionar, no que for possível, o problema de uma encruzilhada que se nos deparou e ainda depara. Encruzilhadas que aliás têm surgido a outros que andam por idênticos caminhos.
Dum modo muito breve, pelo condicionalismo do tempo, vamos tocar alguns tópicos que, noutros momentos, já foram por nós mais ou menos desenvolvidos, e continuarão (deverão) sê-lo noutras circunstâncias:
1) O paradigma do chamado fado clássico de Coimbra;
2) A questão da menor ou maior universalidade do canto e da guitarra;
3) A questão poética;
4) A problemática da continuidade na criação musical, nomeadamente se o problema é de seguir no tempo em linha recta (onde poderá surgir o perigo, por exemplo, do “tal vinho novo em odres velhos”), ou se poderá haver uma espécie de paralelismo ou convergência, isto é, caminhos que recolham motivações e outros elementos culturais e estéticos que possam ser tangenciais ou mesmo convergentes à tradição de Coimbra, mas também alicerçados noutro tipo de tradição.

Quanto ao paradigma do fado clássico, não nos parece desejável continuar a compor fados onde se pode “enxertar” qualquer agradável redondilha, às vezes até com sentido bem diferente do inicial. Também já não é possível a habitual introdução que muitas vezes não sugere a melodia do canto, bem como o desajuste do próprio interlúdio entre as quadras. E ainda a repetição igual, ou quase igual, de dois em dois versos, bem como um certo modo de acompanhamento instrumental pouco cuidado.
Descontando os poucos sonetos que foram musicados (coisa estranha num país de grandes sonetistas!), o fado clássico, de indubitável valor histórico, coloca hoje ao compositor um problema. Para nós, aquilo que deve ter continuidade é mais o sopro do que a forma.
Analisando o processo histórico do que pode ser continuidade, verificamos que ninguém anula a arquitectura do Mosteiro dos Jerónimos ou da Sé Velha para justificar algumas construções de arrojado ou atrevido pós-modernismo; ninguém anula um soneto de Sá de Miranda para justificar o lirismo moderno de uma Florbela Espanca ou do ainda mais recente Ary dos Santos; ninguém anula os mais-que-perfeitos concertos brandeburgueses de J.S. Bach para justificar a contemporaneidade de um Stockhausen.
A “libertação” desse modelo apertado de fado clássico foi tentada por alguns, e conseguida nalguns casos, mais por sensibilidades pessoais que por diferentes ou até radicais estruturações musicais. Duas ou três excepções poderão ser assinaladas. Esta circunstância coloca o problema do objectivo e do subjectivo, sendo que na arte também há a indubitável objectividade, ou seja, o adquirido e o implantado.
O que marca cada época é difícil de ser ignorado na concepção de quem se propõe criar alguma forma de arte.

Pensamos que a procura de um outro modo de compor para canto, e o respectivo acompanhamento, coloca desde logo a questão poética, isto é, a procura da grande poesia, da melhor poesia. Esta atitude não garante o que se pretende, mas pode conduzir mais naturalmente à unidade da obra de arte. Uma linha melódica que siga o desenvolvimento de um poema, e que não se force a frases excessivamente simétricas e repetitivas, pode tornar mais variada a composição, não em forma de manta de retalhos, e dar-lhe autonomia, no chamado princípio, meio e fim. Um bom poema tem música em si mesmo.
Assim, há que buscar a nossa melhor poesia como móbil desejável para uma composição autónoma, onde a introdução instrumental abra o horizonte para a atmosfera musical vindoura, e o seu desenvolvimento seja feito de modo a tornar a obra irrepetível, onde não possa, em circunstância alguma, haver separação do desenvolvimento do poema, da música e dos acompanhamentos. Dir-se-ia até, em várias circunstâncias, a escolha do próprio tom, que confere sempre uma peculiar sonoridade, sobretudo nos instrumentos de corda, não só pelos harmónicos mas pela subjectividade das vibrações inerentes ao poema. Esta insistência é já histórica em muitos compositores da chamada música erudita, e não só.
Autonomia estética que, privilegie a questão da prosódia, ou seja, o respeito pela acentuação da palavra e logo da frase poético-musical, sem atropelos para o encaixe, a qualquer custo, no discurso melódico.
Autonomia que deve conter, tanto quanto possível, conhecimentos de harmonia e composição, que valem também, é certo, se assimilados pela intuição e sensibilidade pessoais.
Unidade musical que possa recorrer às mudanças de compasso que forem necessárias, sem concessão a facilidades, bem como a modulações, se necessárias.
Unidade também que pode requerer (ou não) alguns acordes menos vulgares.
Neste contexto, apenas um pequeno parêntesis para dizer que temos tentado incursões para criar algum discurso musical que possa, com alguma coerência, contemplar, por exemplo, acordes de sétima maior e de nona, e que na composição procuram ter uma lógica de aglutinação do todo. Para esses acordes, invulgares na tradição musical coimbrã, contribui, no nosso grupo, a presença do baixo acústico, que empresta um indispensável colorido e equilíbrio harmónicos, numa formação de três instrumentistas e um cantor. Do maior ou menor êxito deste critério, di-lo-á o futuro.

Seria interessante, se tempo houvesse, trazer a questão do que é ser letrista e do que é ser poeta. É certo que os que criam versos a um jeito mais fácil de serem musicados, os letristas, nem são poetas propriamente ditos, mas também poderão sê-lo. Verdade também que grandes poetas nunca tiveram inclinação para letristas. Mas certamente que todos os versos sonham com o que disse o poeta castelhano António Machado: “a maior glória de um poema é ser cantado”. E, com raras excepções, grandes poetas portugueses não nos deram a alegria de serem cantados na Lusa-Atenas, antes que o chamado fado de Lisboa o fizesse pela voz dos seus cantores.
Paradoxalmente, o ribeirinho fado das vielas e das tabernas começa, mais cedo do que o seu congénere coimbrão, a despontar para poetas como Guerra Junqueiro (recorde-se que, deste autor, Amália gravou, no Brasil, em 1945 um poema). Mais muitos outros: Camões, Pessoa, Cesário Verde, Pedro Homem de Melo, David Mourão-Ferreira, e até para o surrealista Alexandre O’Neill ou o inconformado Ary dos Santos. Ainda outro paradoxo: se é certo que o espírito da Presença tinha, instrumentalmente, irrompido com Artur Paredes, afirmando-se e depois ultrapassando-se com Carlos Paredes, na poesia despontado com Bettencourt e outros, sobretudo nos seus já surrealistas Poemas Surdos, o que é certo é que essa ímpar voz de cristal canta sobretudo canções populares. Resolve o paradoxo, mais tarde, Luiz Goes que, pelo modo de cantar, de compor e de ser acompanhado, vem afirmar definitivamente o espírito da Presença, enquanto José Afonso nos mostra uma sensibilidade bem diversa, que incarna muito mais no espírito da corrente do neo-realismo.
Com estas figuras a que poderíamos juntar outras, chegados aqui, coloquemos a pergunta já formulada por muitos: qual o grau de universalidade da música de Coimbra? Miguel Torga disse que “O universal é o local sem paredes”. A dificuldade é saber quais são essas paredes que podem impedir de se ser universal. Sim, porque Coimbra tem melodia, tem timbre, e é bom pensar assim em tempos de normalizações e formatações europeias e mundiais. Mas as paredes, são paredes de instituições, são paredes de rijos preconceitos, são muros feitos de amadorismo (no mau sentido) de algum não-saber, ou serão mesmo paredes de apatia por não termos sonhos para sonhar?
Porém, quando se dá o salto mágico, quando se equaciona o mundo, quando o nosso acto é já descobri-lo, a partir do lugar onde se está, então a História diz que aquilo que é muito local pode (com alma, muita alma) ser universal, como o foi o caso dos castiços D. Quixote de la Mancha e de Sancho Pança, que de tão castelhanos se tornaram universais, ou do nosso Camões que pôs o lusitano Velho do Restelo a perder, não impedindo este a universalidade da Gesta dos Descobrimentos.

Quase a finalizar voltemos à ideia inicial de encruzilhada. Prosseguimos em espiral ou queremos o eterno retorno, isto é, voltar exactamente ao mesmo sítio? Quando assim é, a natureza prega-nos a partida, e induz-nos na tentação de pôr o tal “vinho novo em odres velhos”. Se é indiscutível que há uma tradição musical coimbrã, com momentos marcadamente decisivos, acompanhada de uma tradição poética às vezes excessivamente académica, quanto a nós há que, para novos caminhos, procurar dum modo mais dinâmico, através de um pensamento reflexivo sobre o que é a tradição portuguesa num sentido mais amplo e profundo.
Há que ser como Jano: olhar o passado e o futuro com o mesmo rosto. A raiz temo-la na Renascença Portuguesa, na filosofia de um Sampaio Bruno, na poesia de um Teixeira de Pascoaes, no espírito histórico e lusíada de um Jaime Cortesão, numa utopia de um Agostinho da Silva, na força popular de um António Aleixo. Temos, enfim, uma tradição lírica dos cancioneiros, que se expressa numa linha de continuidade até aos dias actuais; na épica que faz com que, no dizer de Pessoa, “possamos ir às Índias dentro de nós” ou sem marcação no mapa; cancioneiros satíricos também dos quais herdámos a veia para as canções chamadas de intervenção social.
E temos sobretudo (porque as saudades são do futuro) o presente ansioso e talvez desconhecido, daqueles jovens que hão-de ficar nas páginas da história e a quem ainda ninguém deu atenção, mesmo que não tenham currículo, pois a criação artística não se alimenta de currículos. Esses que trazem o poema iniciado ainda na luz dos olhos. É preciso não esquecer o que alguém disse: “quando aparece um bom poeta não há ninguém para dar por ele.” E quem diz poeta, diz músico, ou artista plástico. Hoje é mais verdadeiro, porque aquilo que é falso subiu ao poder e inundou o nosso gosto, à hora marcada na televisão.
Terminamos com a ideia anteriormente citada relativa à procura de um caminho próprio. Na encruzilhada surge o problema: prosseguimos numa espécie de eterno retorno, em linhas que com o tempo tocam o mesmo ponto? Avançamos de um modo diferente, já em espiral, numa sobreposição vertical de possibilidades, mas numa realidade nuclear, numa base de tradição coimbrã?
Perante estas duas vias, temos vindo a optar por uma outra escolha. Preferimos, com os riscos inerentes, linhas de outras proveniências culturais e estéticas susceptíveis todavia de serem convergentes num ponto comum, já definido, da nossa sensibilidade. E a nossa sensibilidade é também a do lugar onde estamos. Mas o lugar é a lente através da qual se procura a visão e não aquilo que é visto.
Se é certo que o fenómeno da mundialização da cultura merece reflexão, também é certo que julgamos desnecessários enxertos estilísticos exóticos ao nosso modo de ser, enxertos de qualquer ordem, roupagens ou posturas engagés que murcham muito depressa no tempo. O sol é o mesmo em qualquer espaço do planeta, e no entanto, o que dele colhemos é aquele que nos chega ao local onde vivemos. Legitimamente procuramos um caminho próprio. Aproximamo-nos desse fogo que tanto pode queimar como redimir quem dele se abeira. O futuro dirá se ficámos no átrio ou avançámos mais.
Ainda acreditamos nas camonianas musas que continuam a segredar o nosso destino maior, ao invés de tantos projectos efémeros de pequenos e desperdiçados ciclos da História; as camonianas musas vestem-se de muitas maneiras, o seu beijo de fogo faz estremecer qualquer um, quando lança a sua voz ou pelos acordes da guitarra e da viola.

Os Quatro Elementos
José Santos Paulocantor
Álvaro Arosoguitarra portuguesa
Eduardo Arosoguitarra clássica (“viola”)
José Carlos Teixeira baixo acústico

Coimbra, Casa da Cultura, 5.11.05

[1] Comunicação apresentada pelos Quatro Elementos nas III Jornadas Temáticas Musicais organizadas pela AATUC, a 5 de Novembro de 2005, na Casa da Cultura de Coimbra.

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