DR. JOSÉ AMARAL
Um guitarrista de Coimbra em Abrantes
Rui Moreira Lopes*
“[…]além de grande académico que viveu a nossa geração, foi um artista de rara qualidade e brilhante tocando a guitarra de forma extraordinária […] brilhante companheiro que recordo com saudade […] figura brilhante daquela época.”
Augusto Camacho Vieira.
Introdução
Nem todas as cidades, vilas ou aldeias de Portugal têm ou tiveram o privilégio de terem entre os seus habitantes, alguém que deixou o seu nome gravado no “corredor da fama” da Canção de Coimbra.
Abrantes é uma cidade que tem esse privilégio ao ser o local escolhido para habitar e exercer medicina, por um dos grandes guitarristas da segunda década de oiro da Canção de Coimbra: José Amaral, de que tencionamos fazer um breve esboço biográfico no artigo que ora apresentamos.
a) Os primeiros contactos com a Guitarra de Coimbra e os grupos de Canção de Coimbra
A Primeira República prosseguia o seu caminho e os soldados portugueses que combateram nas trincheiras da Flandres durante a Grande Guerra tinham regressado recentemente a Portugal, quando, em 1919, nasceu em Folhadosa, Concelho de Seia[i], José Maria Amaral.
Fez os estudos primários na sua terra natal, tendo prosseguido os estudos no Liceu D. João III em Coimbra, cidade para onde foi habitar em 1930[ii] com apenas onze anos, contudo, aos doze anos ficou órfão de mãe e aos dezanove anos ficou órfão de pai.
Coimbra não é apenas uma cidade para se estudar, pois é também a cidade onde se canta e toca a Canção de Coimbra, mas quando José Amaral chegou em 1930, já os grandes nomes da primeira década de oiro tinham abandonado a alma mater: António Menano estava a exercer medicina em Moçambique, Edmundo de Bettencourt já tinha abandonado definitivamente Coimbra tendo partido para o seu exílio lisboeta, enquanto que o brasileiro Lucas Junot tinha regressado às suas origens e andava “perdido” no imenso sertão brasileiro.[iii]
Com esta geração fora de Coimbra, urgia fazer surgir novos valores, para darem início a uma segunda década de oiro da Canção de Coimbra, na qual integramos o Dr. José Amaral.
É ainda durante a década de 30, quando ainda é estudante de Liceu, que José Amaral começa a aprender os primeiros acordes com Júlio Augusto Sequeira Mendes[iv], tocando na sua primitiva Guitarra toeira de Coimbra, que a sua família ainda guarda religiosamente.
Além disso, também integra a Tuna Académica da Universidade de Coimbra desde 1937, com o nº 178, quando ainda é “bicho[v]”, com o naipe de Viola[vi]. Nesta época, José Amaral habita na zona do Calhabé.
Já dava “uns toques” na sua guitarra quando o Dr. António Carvalhal, que necessitava de alguém que tocasse guitarra no seu grupo convidou José Amaral a fazer parte deste, que o integrou pelo menos até 1945, quando o Dr. Carvalhal abandonou a Lusa Atenas com destino à Covilhã[vii].
Na fase seguinte constituiu-se um novo grupo com António Sobral Carvalho e Eduardo Tavares de Melo nos instrumentos e Jorge Gouveia, Camacho Vieira e Manuel Julião, na voz[viii].
José Amaral também se destacou como compositor de instrumentais de Guitarra de Coimbra nas décadas de 40 e 50 do século passado, que hoje ainda alguns dos grandes guitarristas de Coimbra têm a honra de tocar, dos quais destacamos: Variações em Lá Maior (1944), Variações em Lá Menor (1945), Variações em Ré Menor (1946), Variações em Mi Menor (1953), Variações em Sol Menor (1953)[ix], Variações em Sol Maior (1954)[x].
Já a exercer Medicina e longe da alma mater, em 1954, regressou a Coimbra, para acompanhar o Orfeon Académico de Coimbra na célebre digressão ao Brasil, onde acompanhou à Guitarra Augusto Camacho Vieira, Luís Goes e Fernando Rolim, entre outros[xi].
b) O Estudante de Medicina e alguns dos seus mestres
À medida que desenvolvia os seus estudos na Guitarra de Coimbra, também prosseguia os seus estudos na Faculdade de Medicina, onde foi caloiro em 1942, pois terminou o curso de Medicina em 1948, sem nunca ter reprovado. Durante a frequência do Curso de Medicina, terá sido aluno de grandes mestres, dos quais seleccionámos três que consideramos os mais conhecidos: o Professor Maximino Correia, que também era o Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, de quem se dizia que era um grande professor de Anatomia, onde até contava anedotas acerca do corpo humano[xii], mas também um bom justiceiro nos exames, pois quando um aluno via que não sabia a matéria desistia e regressava na época seguinte, não passando a vergonha de reprovar nem dando ao mestre o desgosto de reprovar[xiii] (também não devemos esquecer que o Professor Maximino tocava guitarra de Coimbra); O Professor Elísio de Moura, muito célebre entre os seus alunos (sobretudo pela sua característica cabeleira), por ajudar tudo e todos (deixou tudo o que tinha para a Casa de Infância Elísio de Moura que ainda existe) de quem o Dr. José Amaral teve a honra de assistir à última aula; por fim, também foi aluno do Professor Bissaya Barreto, que também deixou muita obra, entre as quais o famoso “Portugal dos Pequenitos”.
c) O Estabelecimento definitivo em Abrantes, a morte e o memorial.
O Dr. José Amaral acabou por estabelecer-se definitivamente em Abrantes, mais concretamente no Pego, onde já vivia em 1958[xiv] e exerceu medicina naquela localidade onde viveu alguns anos. Posteriormente, transferiu-se para a cidade de Abrantes onde viveu até ao final da sua vida e continuou a exercer medicina no seu consultório na Rua Nossa Senhora da Conceição, bem próximo de onde foi em tempos o Café Pelicano.
O facto de viver longe da alma mater, não foi motivo para deixar de tocar Guitarra de Coimbra, tendo fundado, em 1983, em Abrantes, o Grupo “Saudades de Coimbra” onde tocou guitarra até ao fim da vida, sempre com a sua capa traçada, da qual o Dr. Amaral afirmava: “Se esta capa falasse, tantas histórias que contava”.
Como grande nome da Guitarra de Coimbra, foi finalmente homenageado pelo Grupo de Canto e Guitarra de Coimbra de Santarém, em 27 de Maio de 2000, com uma serenata de homenagem ao Dr. Amaral que contou com a presença de muitos amigos, nomeadamente o Dr. Camacho Vieira.
O Dr. José Amaral faleceu a 12 de Julho de 2001, tendo sido sepultado no Pego, sendo mais tarde sido trasladado para o Cemitério de Abrantes.
Do seu memorial, restam-nos os seus instrumentais que muitos guitarristas ainda tocam, e que o grupo “Saudades de Coimbra”, fundado pelo Dr. Amaral e sediado em Abrantes, tem a missão de divulgar a obra do Dr. José Amaral nas suas actuações.
Além disso, também a sua memória perdura na toponímia abrantina, com uma Rua com o seu nome em Alferrarede.
Também na Serenata Tradicional que o Grupo de Canto e Guitarra de Coimbra de Santarém levou a cabo no passado dia 9 de Julho, no Largo do Seminário, foi mais uma vez lembrado o Dr. José Amaral, quando chamaram ao palco o Dr. José Amaral (filho) para lhe entregarem um CD de inéditos do Dr. José Amaral gravado pelo grupo de Santarém.
Ficará assim perpetuada a memória daquele que foi um dos grandes guitarristas na segunda década de oiro do Fado de Coimbra, que escolheu a cidade de Abrantes para viver e exercer a sua profissão.
BIBLIOGRAFIA
- CORREIA, Camilo Araújo – Coimbra Minha. Coimbra: Almedina, 1989.
- NIZA, José – Fado de Coimbra. Vol. II. [s.l.]: Ediclube, 1999.
- PELOURO DA CULTURA DA AAC – Canção de Coimbra: Testemunhos vivos (Antologia de Textos). Coimbra: Pelouro da Cultura da AAC, 2002.
- SILVA, António dos Santos e – Zeca Afonso: Antes do Mito. Coimbra: Minerva, 2000. ISBN: 972-8318-88-X.
- TUNA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA – Ficha individual do Dr. José Maria Amaral (n º 178). Coimbra: TAUC, 1952.
Agradecimentos
Um agradecimento ao Dr. José Amaral, aos meus colegas do grupo de Fados “Saudades de Coimbra”, em Abrantes (que me forneceram informações vitais para que este artigo fosse elaborado); ao Dr. Augusto Camacho Vieira que com a amizade de sempre me definiu o Dr. José Amaral em breves palavras, quando o solicitei para tal; À Tuna Académica da Universidade de Coimbra que me facilitou a ficha individual do Dr. José Amaral para incluir no artigo; ao Dr. João Luís Madeira Lopes, Advogado e exímio Guitarrista do Grupo de Santarém, por ter cedido a fotografia do Dr Amaral a tocar guitarra.
*Rui Lopes - Licenciado em História e Pós-graduado em Ciências Documentais (Arquivo), pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Estudioso da História da Canção de Coimbra e executante de Guitarra de Coimbra. Actualmente encontra-se a organizar e catalogar o Arquivo da Escola Superior de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, em Coimbra.
[i] NIZA, José – Fado de Coimbra. Vol. II. [s.l.]: Ediclube, 1999. p. 190.
[ii] Idem, Ibidem, p. 190.
[iii] SILVA, António dos Santos e – Zeca Afonso: Antes do Mito. Coimbra: Minerva, 2000. p. 33.
[iv] NIZA, José – ob. cit. P. 190
[v] Nome que designa na hierarquia da praxe o Estudante de Liceu que, neste caso, é abaixo de caloiro.
[vi] Ficha Individual do Dr. José Maria Amaral (n º 178) na Tuna Académica da Universidade de Coimbra.
[vii] PELOURO DA CULTURA DA AAC – Canção de Coimbra: Testemunhos vivos (Antologia de Textos). Coimbra: Pelouro da Cultura da AAC, 2002. p. 19.
[viii] Idem, Ibidem, p. 19.
[ix] PELOURO DA CULTURA DA AAC – ob. cit. P. 21.
[x] NIZA, José – ob. cit. P. 190
[xi] Em 2004, o Orfeon comemorou os 50 anos desta digressão por terras de Vera Cruz, com um espectáculo em Santa Clara, na Igreja de S. Francisco.
[xii] CORREIA, Camilo Araújo – Coimbra Minha. Coimbra: Almedina, 1989. p. 16
[xiii] Idem, Ibidem, p. 16
[xiv] Segundo informação do Dr. José Amaral (filho) terá ido viver para o Pego em Junho ou Julho de 1958. Contudo, a ficha da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, datada de 1952, já tem como morada o Pego, mas deve ter sido acrescentado posteriormente, porque em 1952 o Dr. José Amaral vivia e exercia medicina em Sabóia.
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