Caldas Barbosa maltratado na RTP
Já demos notícia abreviada sobre Domingos Caldas Barbosa (ca. 1740-1800), antigo militar, antigo estudante da UC, Padre titular da capelania do Tribunal Casa da Suplicação, poeta, tocador de viola de arame e cantor. Conjuntamente com nomes como Francisco da Silveira Malhão e António Justiniano Baptista Botelho pode ser considerado um dos precursores da Canção de Coimbra.
O Lereno figura como personagem na série em exibição na RTP1, às 6ªs feiras, dedicada à vida e obra de BOCAGE (Manuel Maria de Barbosa du Bocage, 1765-1805). Com efeito, Bocage, Caldas Barbosa e o Padre José Agostinho de Macedo, conviveram na década de 1790, em Lisboa, na Nova Arcádia. Os desentendimentos entre O Lereno, Elmano Sadino (=Bocage) e outros elementos da academia, motivaram a Bocage violentos sonetos de escárnio, que roçam o racismo mais primário. Tudo isto se passou antes de 1797, ano em que Bocage foi preso por maus costumes.
Os serões culturais da Nova Arcádia estão visivelmente mal caracterizados na série televisiva. Por exemplo, no 2º episódio exibido na noite de 6ª feira, 27 de Janeiro de 2006, os argumentistas valorizavam a figura excêntrica de Bocage, apresentando um Caldas Barbosa efeminado, a declamar sonsos versos arcádicos em pronúncia brasileira, aqui e ali a trautear em playback enfadonhas modinhas no bandolim.
Toda esta tentativa de caracterização pela negativa está errada. Caldas Barbosa tocava viola de arame e cantava, declamava com agrado dos auditórios e escrevia peças de teatro. Era um poeta improvisador, bastante apreciado no seu tempo, não obstante ser mulato. Um mulato assimilado e invejado. Os tiques presentes na série televisiva não correspondem à verdade histórica, pese embora o facto de Caldas Barbosa ser um homem colado à situação e não um contestatário. O pior de tudo é observar no personagem a continuada ausência do Hábito Talar Eclesiástico (para mais numa sociedade em que o hábito fazia o monge) e a exibição de um bandolim do século XX, com pá e cravelhas do século XX. Isto sim, além de muito mau, representa ignorância dos conselheiros técnicos que prestaram apoio aos realizadores da série. Faltam ali cordofones de salão setecentista como a viola de arame, a guitarra inglesa e a cítara.
Já na série exibida pela RTP1 no mesmo horário, imediatamente antes da estreia de BOCAGE, concebida por Moita Flores, cujo tema era "Pedro e Inês", se verificava que nos reinados de D. Afonso IV e D. Pedro I, a maioria dos actores usava frequentemente guarda-roupa da época de D. Manuel I e dos inícios do reinado de D. João III. Nesta matéria, os realizadores de séries televisivas portuguesas terão ainda de percorrer um longo caminho, seja em termos de abordagem dos guarda-roupas de época, seja nas minudências sempre omissas a que chamaremos etnografia do quotidiano (a louça, a barba, a higiene, o banho, a retrete, os ferimentos, o vestir, o barbeiro, a sangria). Se o actor faz muito (por exemplo, Nicolau Bryner foi um óptimo D. Afonso IV em "Pedro e Inês. Pena estar vestido de D. Manuel I ou de Henrique VIII de Inglaterra!), os cenários e a recriação etnográfica e histórica dos estilos de vida ajudam bastante. Sem convicente etnografia do quotidiano, por muito que o actor valha, teremos figurantes que se passeiam em determinados cenários.
Bocage foi seguramente uma das mais notáveis figuras da poética do século XVIII. A minha avó paterna, analfabeta, nascida, vivida e falecida numa aldeola remota, sabia recitar de cor dezenas de anedotas atribuídas ao engenho de Bocage. O rival Caldas Barbosa ainda era cantado por músicos populares amadores brasileiros no século XX. Se não foi um intelectual contestatário, O Lereno também não era o lambebotas que a série televisiva insinua. Se os autores da série tivessem lido "Sonetos", do mesmo Bocage, perceberiam que os serões da Nova Arcádia eram bastante concorridos e aplaudidos. Também lá cantava e tocava "bandurra" (cítara) outro mulato brasileiro, Joaquim Manuel, a quem Bocage dedica os terríficos sonetos CLXXV e CLXXVI.
Não existem razões válidas hoje em dia para se tentar recriar os ambientes musicais do século XVIII com instrumentos do século XX. Há museus, há postais, há fotografias, há construtores especializados no fabrico de réplicas, há executantes que dominam repertórios de época.
Nota: um nosso leitor veio oportunamente precisar que, além do playback francamente mal dobrado nas partes do canto, as posições dos dedos não correspondem às notas que seriam de ouvir no bandolim, notas essas que afinal se executam em "guitarra clássica" na banda sonora. São incongruências a mais, tendo em conta que os Segréis de Lisboa já reconstituiram e gravaram em cd melodias de Caldas Barbosa ("Modinhas e Lundus dos séculos XVIII e XIX", Lisboa, Movieplay, MOV 3-11042, ano de 1997, faixas 4 e 9; complementarmente o cancioneiro impresso com transcrição de Manuel Morais, "Modinhas, lunduns e cançonetas com acompanhamento de Viola e Guitarra Inglesa", Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000).
AMNunes
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