sábado, fevereiro 18, 2006

Manuel da Fonseca

Biografia e entrevista retiradas do site da Escola Secundária Manuel da Fonseca de Santiago do Cacém.

Manuel da Fonseca foi um dos autores cantados por Adriano Correia de Oliveira, no LP "Adriano Correia de Oliveira - Que Nunca Mais", da Orfeu (STAT 033), Edição Arnaldo Trindade, disco que tem a colaboração da guitarra de Carlos Paredes.
foto de António Ferreira

Manuel da Fonseca nasceu em 15 de Outubro de 1911, em Santiago do Cacém. Aqui se manteve até completar a instrução primária.

Desde muito cedo, por influência do pai, se iniciou no mundo da leitura.

Na escola, cultiva a sua paixão pela escrita.

A continuação dos estudos leva-o a Lisboa onde frequenta o colégio Vasco da Gama, o Liceu Camões e a Escola Lusitânia e, mais tarde, a Escola de Belas Artes. As férias passa-as em Santiago do Cacém.

Na grande cidade dá longos passeios. A vida nocturna fascina-o.

Encontra os seus primeiros empregos no comércio e na indústria. Apesar de muito ocupado, encontra tempo para o toureio e o desporto - jogou futebol, interessou-se pela espada e florete e ousou mesmo ganhar um campeonato de boxe.

Em 1925 publica num semanário de província os seus primeiros versos e narrativas.Foi habitual colaborador em revistas literárias, como O Pensamento, Vértice, Sol Nascente e Seara Nova. Contestatário e observador por natureza, a sua escrita era seguida de perto pela censura.

Faleceu em 11 de Março de 1993, com 81 anos.

OBRA:

Rosa dos Ventos (poemas), 1940 Planície (poemas), 1942 Aldeia Nova (contos), 1942 Cerromaior (romance), 1943 O Fogo e as Cinzas (contos), 1951 Seara de Vento (romance), 1958Poemas Completos, 1958 Um Anjo no Trapézio (contos), 1968 Tempo de Solidão (contos),1973 Crónicas Algarvias (contos), 1986
Morreu um neo-realista, um escritor que recusava esse rótulo de estilo - e, com ele, a memória duma época de miséria e ousadias, de tertúlias e repressão. Ficaram livros, depoimentos, as crónicas nos jornais, e a entrevista que hoje publicamos, a última que deu, no poiso duma das suas últimas tertúlias
Nuno Lopes


MANUEL DA FONSECA "

Escrevo porque sou do contra"

Ao princípio da madrugada do passado dia 11 de Março falecia Manuel da Fonseca. Contava 81 anos de idade e mais de meio século de actividade literária. Esta é provavelmente a sua última entrevista, dada no seu paradeiro habitual, o Café Expresso, ao largo da Misericórdia, em Lisboa - primeira de uma série, integrava-se num projecto que procuraria traçar o perfil não só do escritor como do cidadão. Manuel da Fonseca nasceu em Santiago do Cacém e começou por escrever no jornal local: «Há sempre aquela ‘gavetazinha’ que um rapaz tem na escrevaninha e que sem o saber vai lá uma pessoa de família, uma tia... e foi assim que começaram a aparecer os meus primeiros escritos em alguns jornais. Eu escrevo, não desde 38, mas logo no início de 30, as pessoas é que não sabem e não me cabe informá-las.»
EXPRESSO - O Manuel da Fonseca é considerado um precursor do neo-realismo em Portugal. Há um tempo atrás afirmou que não era tanto assim, neo-realismo era uma palavra que nem lhe passava pela ideia...
MANUEL DA FONSECA - E assim é! Sinto-me mal em relação a isso. Eu nem sequer disse que era neo-realista. Foram os críticos que acharam que eu era neo-realista, eu não disse nada. No fundo, era um indivíduo que lá tinha a minha ideia sobre o que seria - isso era antes uma palavra para defesa da vida e à defesa da Censura. Foi uma palavra que o Joaquim Namorado arranjou para fugir à Censura.
EXP. - Se tivesse de lhe dar um nome, qual seria?
M.F. - Talvez dissesse antes uma literatura de realismo dialéctico, mas não sei.
HERBERTO HELDER - (intervindo da mesa ao lado, que o Café Expresso é tertúlia dos clientes de sempre) Um realismo lírico...
M.F. - Lírica é toda a nossa literatura, até a mais dramática. A gente começa a escrever porque são aquelas coisas que acontecem perante o ambiente em que nós nascemos. Quando nascemos somos contra, é próprio de quem nasce estar contra os que cá estão. Toda a arte está contra. Escrevo porque estou contra!

Comecei a escrever porque de tudo o que já experimentara era o que melhor fazia. Escrevi em vários jornais - ganhava bem, cerca de 400$00 por crónica, e escrevia duas por semana. E certo que no República ganhava menos, mas eles também tinham dificuldades e não era só isso que contava. Acho que o escritor deve ser um profissional e como tal viver da economia própria do produto que faz, e isso, é claro, também obriga a determinadas coisas...
EXP. - Como por exemplo?
M.F. - A publicidade, as entrevistas, os comentários...
EXP. - Isso não será fazer parte de uma engrenagem em que tempos atrás se recusava a participar?
M.F. - E não participo. Eu não sei de nada. Isso é com o editor, ele é que sabe. Os meus livros por exemplo, continuam a vender. Não se diz nada, não se faz publicidade, mas eles vendem!
EXP. - E quanto a uns livros que estão prometidos?
M.F. - Se começo a escrever, nunca mais paro. E dia e noite e não tenho sossego. Por isso estou parado. Também não preciso. Arrumei uns papéis e logo se verá. De facto, tenho um que começaria com o fim da 1 Guerra Mundial e depois viria até ao 25 de Abril. Seriam três volumes, mas não sei... E depois, é como lhe digo, não ando tão necessitado como isso. Talvez noutro tempo.
EXP.- Trata-se de um romance Histórico?
M.F.- O romance histórico é um romance menor; é uma pequena história, e esta é própria do indivíduo e não do todo. Não é criação.
EXP. - E o sucesso do Memorial do Convento?
M.F. - Tem uma coisa rara que era muito comum no século XIX e que o Saramago faz muito bem, a ironia. Mas não deixa de ser uma pequena história.
EXP. - Então a literatura deve apenas reflectir o presente?
M.F. - Claro está! Não há futurismos na literatura. O único homem que falou de futuro, e no sentido técnico, é o Júlio Verne. De resto, não há futuro, o presente já é futuro.
EXP. - Veio para Lisboa muito cedo. Como vê a evolução da cidade?
M.F. - Lisboa é muito bonita e eu gosto muito: é uma aldeia. Veja por exemplo a Estefânia. Aquele bairrozinho para onde vim morar quando vim do Alentejo está agora irreconhecível..; e ainda bem. Lisboa está diferente e para melhor, mas ainda continua a ser aquela Lisboa que me levou a gostar ainda mais do Alentejo, do meu Alentejo. Tudo é ao contrário desse Alentejo, e por isso eu aprendi a gostar ainda mais dele. As pessoas zaragatam, fazem-nos ma cara, mas são encantadoras. Lá fora, há tanta gente nas ruas, e não acontece nada. Aqui basta darmos dois passos para encontrarmos uma discussão, uma exaltação, mas isso é vida, é cor.
EXP. - É fado...?
M.F. - Gosto de tudo que vem do povo. Pode ter nascido nas vielas ou até ter raízes africanas, não se sabe, mas é do povo e eu gosto. Temos aquela Amália que é um caso sério, uma grande senhora. E tínhamos o Alfredo Marceneiro. Cheguei a ser amigo do Marceneiro, fomos presos juntos e estive muitas vezes na sua casa.
EXP-...
M.F. - Havia ali na Rua Morais Soares um café de camareiras, a Rosa Branca: umas pequenas que faziam uns brindes e depois nós comprávamos. Conversava-se e ouvia-se o fado. As duas por três, houve lá qualquer coisita entre dois pretendentes e uma camareira e, zás pás trás, pancadaria geral - eu fiquei na mesma cela que o Alfredo. Passei a ir com ele aos fados. Certa vez fomos ouvir a Amália ali para o Bairro Alto, ia também connosco o Carlos de Oliveira, e o Alfredo puxou de debaixo da mesa um álbum onde guardava crónicas minhas... Outra vez, também nos fados, vimos um homem já velhote, baixinho, assim como que apagado, não se fazendo anunciar, e de repente o povo apercebe-se da sua presença, levanta-se e aplaude-o. Era o Teixeira de Pascoaes!
EXP. - O fado foi também uma forma de aproximar o povo dos considerados grandes poetas...
M.F. - Então não foi? Teve um papel muito importante. A Amália, e depois outros. Veja por exemplo esse grande rapaz, o Ary, o Ary dos Santos, as coisas bonitas que fez. E o Carlos do Carmo? E um rapaz que também fez isso, aquelas voltas, é magnifico!
EXP. - A memória é uma constante no que diz.
M.F. - No viver, sim. Está ali o Herberto Helder que é um dos grandes poetas, e meu amigo. Aqui estamos todos reunidos, bebemos qualquer coisa, e conversamos como iguais, não há cá essas coisas de «eu sou mais importante que tu portanto cala-te».
EXP. - Definiria assim o seu estilo de viver...
M.F. - Não tenho a noção do tempo. Quero é estar à volta de uma mesa com uns amigos. Uma vida simples e pura. Ando muito a pé, tenho amigos estranhos, converso aqui e ali, oiço muito, e lá nos encontramos nas tabernas.
EXP. - E como se movimenta nos meios literários?
M.F.- Muito mal. É uma jogada fina. Dizes bem de mim que eu digo bem de ti, nós é que somos bons. E um mundo com muita hipocrisia. Eu não frequento os meios literários, sou muito malcriado porque digo logo o que sinto. Aliás nisso sou como o Lobo Antunes. Hoje há uma intelectualidade balofa, uma vaidade de calça de ganga: grandes parangonas nos jornais deste e daquele escritor, mas tudo é efémero, nada vai ficar - como a rosa daquele poeta francês. Veja por exemplo o Fernando Pessoa. Eu conheci o Manuel Martins da Nóbrega, que foi patrão do Fernando Pessoa. Costumava dizer às vezes, quando ia ao escritório e via a máquina de escrever em determinado lugar: «O meu Fernando esteve cá a trabalhar.» Veja esta singeleza de ter convivido com um génio e a forma simples e grande ao mesmo tempo ao dizer «o meu Fernando», é muito bonito, quase comovedor até...
EXP. - E em relação aos críticos?
M.F. - São uns senhores muito altos que não sabem do que falam, põem um adjectivo seguido de outro com um ponto de exclamação a meio, e nós não percebemos nada. O melhor é ler o livro!
EXP. - E com a política?
M.F. - A política é trágica e já não me interessa no sentido que me interessou. Mas continuo a ir ao Alentejo e a falar com os camponeses. E continuo no PCP, embora em relação ao actual momento não disponha de dados para estar aqui a falar. As circunstâncias do mundo mudaram-se e a política mudou-se. Mas devo-lhe dizer que também não é como os jornais dizem. Mas enfim, eu sou do contra na política.

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