Canção de Coimbra / Reflexões ( I I )
Terminamos a abordagem deste primeiro tema com mais algumas considerações que reputamos pertinentes.
Assim: quando se identifica e caracteriza o segundo momento de renovação do discurso literário da Canção de Coimbra (o chamado período de intervenção...), como fez José Manuel Beato (1), pensamos ser importante nele incluir também (e não só incluir , mas até realçar…) a vertente poética de José Afonso que, dando suporte letrístico às suas famosas baladas (Minha mãe, Menino d’oiro, Pastor de Bensafrim, Tenho barcos,tenho remos, Senhor poeta, Canção de embalar, Maria, Menino do Bairro Negro, Coro da Primavera/Canto jovem, Lago do breu, Vampiros, sem esquecer, obviamente, a “Balada de Outono” e “Traz outro Amigo também”, entre outras ), é responsável por uma das maiores “revoluções”, temática e estética, na história da música coimbrã … (foi a “pedrada no charco”!!.) E a propósito, citamos a Prof. Elfriede Engelmayer, académica austríaca estudiosa da obra poética de José Afonso, que, no seu trabalho “Utopia e passado: as canções de José Afonso”, diz : “José Afonso é também um grande poeta, mas a sua obra não figura em nenhuma antologia e praticamente ninguém o reconhece como tal” ( 2 ) . Haverá então em José Afonso um poeta oculto pelo Zeca cantor !...,não sendo certamente este caso o único entre os cultores da Canção de Coimbra . Com efeito, ocorre-me a propósito questionar se, nesse grande vulto da música coimbrã, Luiz Goes, os seus incomparáveis talentos de cantor, intérprete e compositor, poventura, não terão deixado ainda sobressair, na justa medida, a sua obra poética !...
José M. Beato (1), no seu testemunho, refere-se ainda à inclusão da “grande poesia” na vertente poético- literária da Canção de Coimbra. Talvez por lapso (?), o Autor reporta este facto à actualidade ... ,ao momento presente!!...
Ora, a verdade é que em 1983 (já lá vai quase ¼ de século!... ), numa entrevista que nos foi solicitada nesta matéria para um Semanário (3) pode ler-se : “ao passar em revista as letras de muitos fados e canções de Coimbra, constatei, com algum espanto, que, para além de Manuel Alegre, António Nobre e E. Bettencourt, grandes vultos da poesia portuguesa, que tinham passado por Coimbra e ouvido a sua canção, não tinham ainda sido cantados!...”(A) Esta circunstância, foi a principal motivação que nos levou às gravações, ainda em vinil ( LP’s ), dos discos “Coimbra dos Poetas”. (ed. Fotosonoro, com António Brojo, António Portugal, Aurélio Reis e Luís Filipe) e «Ecos da Canção Coimbrã» (ed. Polygram, com Octávio Sérgio, Sérgio Azevedo e Durval Moreirinhas) editados, respectivamente, em 1983 e 1987, e onde, para além de E. Bettencourt, António Nobre e Manuel Alegre, nos aparecem poemas de Luís de Camões, Afonso Lopes Vieira, Almeida Garrett, Antero de Quental, Miguel Torga, João de Deus, Afonso Duarte, José Gomes Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Ary dos Santos entre outros, com realce para Eugénio de Andrade (5 poemas)! Então, ao contrário do que parece concluir-se das palavras de José M. Beato (1) , não é “agora”, mas foi já há muito tempo, que a grande poesia começou a “entrar”, significativamente, no repertório da Canção de Coimbra…
Duas questões podem naturalmente colocar-se:
Porquê esta nossa opção pela grande poesia ?
Quais os critérios que utilizamos na selecção dos poemas ?
1. Relativamente à primeira questão, e antes do mais, queremos regozijar-nos pela adesão notória a esta “prática”, referida por J.M. Beato (1) (pese embora a sua incorrecta “localização” temporal…), pois ela é, efectivamente, bem evidente em algumas das gravações vindas a lume na última década .
A Canção de Coimbra (por alguns considerada a expressão de um folclore urbano), sendo eminentemente dinâmica, não podia deixar de reflectir as alterações da realidade social e académica em que se integra ... Contudo, e para além de outras temáticas eventualmente mais consentâneas com o nosso tempo, a permanência imprescindível da sua faceta lírica (“romântica”) exige, quanto a nós, uma componente poética actualizada, essencialmente diferente da dos anos 30-50 do séc. passado... Aliás, esta relativa “pobreza” da poesia no fado de Coimbra tem sido comentada, com alguma frequência, ao longo da sua história…A título de exemplo, cito o meu saudoso amigo e contemporâneo Fernando Assis Pacheco que, a propósito de uma reportagem sobre o concerto de apresentação da colectânia “Tempo(s) de Coimbra” na Aula Magna (Lisboa), escreveu: “Tempo(s) de Coimbra confirmou-me ainda uma velha suspeita, a de que o suporte letrístico é muitas vezes abaixo do aceitável, prolongando até aos anos 50 (e mesmo depois, quanta lamechice !) um romantismo dessorado…”(sic)( 4 ) . Sobre esta questão pensamos que, na falta de “letras” actuais e de qualidade, há sempre, em alternativa, o recurso à «grande poesia» pois, como é sabido, esta prima pela sua intemporalidade! No que nos diz respeito, não hesitamos: o “Poema com letra maiúscula”foi, nos anos 80, e continua a ser, actualmente, a nossa opção...
2. Quanto à segunda questão, é óbvio que a selecção dos poetas e dos poemas não foi nem poderia ser aleatória...
Entendemos que, no fado em geral, e muito especialmente no canto coimbrão, em que a vertente interpretativa é fundamental, o poema, para além de qualidade literária, deve motivar claramente essa interpretação, seja pela força emocional da palavra, pelo lirismo emergente da composição, ou mesmo pela preexistência de «música» na própria poesia!... Ora isto, como é óbvio, não acontece em todos os poemas nem em todos os Poetas, ... mesmo nos de elevada qualidade estética e/ou literária... Em suma: nem toda a «grande poesia» é cantável, pelo menos em «jeito coimbrão». Por exemplo, em relação a Eugénio de Andrade, considerado um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do séc. XX, com tradução em 23 línguas ... (do servo-croata ao chinês ou do japonês ao basco!..) escreveu-se recentemente, a quando do seu falecimento (2005) ( 5 ): «deu uma outra dimensão ao lirismo amoroso, muito ligado à pulsão dos sentidos» (Vasco Graça Moura); ... «apetece logo caracterizar esta poesia como uma espécie de música» (Oscar Lopes); ... «nunca ninguém como ele, soube por tanta côr e sensibilidade na poesia» (Eduardo Lourenço). Estas opiniões insuspeitas, de certa forma, reforçam o que atrás ficou dito, e abonam a nossa preferência de há vinte anos, bem expressa no trabalho «Ecos da Canção Coimbrã» (1983)...
Vários outros exemplos poderiam ser cotejados na História da poesia portuguesa mas, não cabe aqui fazer essa análise, por escassez de espaço e, obviamente, de «engenho e arte»...
* Cultor da Canção de Coimbra ( Canto e composição ).
Bibliografia
(1)”História do Fado de Coimbra” ( DVD ) estem LOSANGO 2004.
(2) Diário de Coimbra, 7./6/1999
(3) Semanário “O Jornal “ ( Supl. Educação ), 12/1983
(4) Semanário “O Jornal”,8/3/1985
(5) Expresso ( Única ),nº 1703, 18/6/05
(A) A propósito, refira-se que, para além destes, alguns outros (não muitos …) grandes nomes da poesia portuguesa , esporadicamente, também já tinham sido “chamados “ por cultores do Fado/Canção de Coimbra ( Ângelo de Araújo, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, José Niza, entre outros ) a dar suporte literário às suas composições musicais.
Legenda para a Foto:
Memória/Momentos: Nos dois documentos que servem de “fundo” à composição fotográfica, atente-se nos dizeres : “Fados de Coimbra” por Adelina Fernandes !!...(Queima das Fitas- 1937); “Ballada de Despedida” (1899-1900).Quanto aos“momentos registados em película” “desafiam-se” os leitores a reconhecerem as pessoas e/ou “personalidades” presentes em A (anos 50), B (U.S.A.,1962) e C (Sé Velha, Maio,1978- célebre serenata que marcou a “retoma”do fado de Coimbra, após uma década de “ostracismo”…Aqui, neste momento, “nasceu” a tradição do “Coimbra tem mais encanto…”, mas isso é outra “história” que ficará para uma próxima oportunidade…
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