O Fado no Alentejo
Paulo LIMA, posicionado na esteira de plurímos recolectores e investigadores que pacientemente colectaram amostras da produção poética oral popular, aventurou-se no Alentejo da 2ª metade do século XIX e 1ª metade da centúria de XX em busca de fragmentos do Fado. Encontrou-os, proliferantes, no fado narrativo em décimas produzido localmente ou transladado da literatura de cordel impressa, enquanto forma de construção da identidade e projecto de ilustração cultural do operariado e campesinato local.
Largamente apoiado nos ricos fundos documentais do Centro de Tradições Populares da Universidade de Lisboa (ver prefácio de Maria Aliete Galhoz, pp. 15-17), na releitura crítica das monografias clássicas dedicadas ao Fado, na visitação da imprensa periódica de época, em arquivos municipais e recolhas orais ao vivo junto de protagonistas como Manuel José Santinhos, Paulo Lima assina uma obra que tem tanto de surpreendente como de cientificamente inovadora.
Não sendo um trabalho voltado para os referentes da Galáxia Sonora Coimbrã, a obra de Paulo Lima faculta pistas muito úteis para a contextualização da prática do Fado na Região de Coimbra em desempenhos de figuras como Manuel Alves ("o Cavador", Anadia), Adelino Veiga (Coimbra), Francisco Caetano (Coimbra) e seus irmãos, ou mesmo Rosa do Regimento. Um futuro estudo de fundo, centrado sobre os nomes apontados, permitiria clarificar com maior rigor a produção de dois universos culturais que sendo distintos, permutaram, influenciaram-se e tenderam a confundir-se em determinados contextos: o Fado "propriamente dito" (Afonso de Sousa dixit) e a Canção de Coimbra (vulgarmente rotulada de "Fado de Coimbra").
Lentamente, aliás com exasperante lentidão, começam a vir à tona novos e importantes dados sobre as origens e radicações geográficas do FADO. Se há 110 anos um ilustre e conceituado musicólogo como Ernesto Vieira podia escrever tolices sem contestação, tipo que o Fado nascera em Lisboa e de Lisboa migrara para Coimbra pela mão dos estudantes, hoje ninguém se surpreende ante descobertas que contraditam substancialmente os escritos fadógrafos clássicos.
Mas não foi apenas em Lisboa, Alentejo e Coimbra que o Fado serviu de elemento estruturante da identidade operária e de franjas do campesinato rural. Comparativamente importará estudar a cidade do Porto para a mesma época, da qual pouco ou nada se sabe. Sabe-se, no entanto, que não obstante as manobras de ocultamento intentadas por Alberto Pimentel na sua "A triste canção do sul", de 1904, o Fado era bem conhecido e de longa data praticado na cidade do Porto. No caso de São Miguel, Açores, o Centro de Tradições Populares da Universidade de Lisboa conseguiu recolher importantes textos oriundos daquela ilha, datáveis do 1º quartel do século XX, ilha onde o fado coreográfico também conheceu importante prática com auxílio da Viola da Terra. Sabido isto, não deixam de causar perplexidade dois importantes pormenores correlacionados com esta matéria: a) em 1994 o guitarrista natural da Ilha de São Miguel, José Pracana, organizou na RTP-Açores um longo programa sobre o Fado em São Miguel, tendo convidado para interlocutor José de Almeida Pavão. Almeida Pavão, lente da Universidade dos Açores, com doutoramento feito na área da literatura popular e com ligações científicas aos docentes do Centro de Tradições da Universidade de Lisboa, mostrou-se totalmente amnésico em relação à questão da produção do fado (em particular do fado operário) na Ilha de São Miguel. Por seu turno, José Pracana, limitou-se a acompanhar nesse programa fados com a Guitarra de Fado e nem por um momento lhe ocorreu que deveria convidar um tocador local de Viola da Terra para solar variações sobre fado e acompanhar pelo menos um fado cantado; b) passados 10 anos sobre estes acontecimentos, em 2004, o jornal o "Público" e a editora Corda Seca fizeram sair uma pomposa e muito discutível colecção de discos de fados, projecto que contou com a colaboração iconográfica de José Pracana. Mesmo aceitando que a responsabilidade da selecção sonora não passou pelas mãos de José Pracana, será que o guitarista informou devidamente a equipa promotora para a necessidade de conferir visibilidade à pratica diferenciada do Fado nos Açores? Não escrevo estas palavras de ânimo leve, pois o meu avô materno, Francisco Paulo Martins (1913-1973), cantava melodias de fados vulgarizadas e para elas improvisava "trovas" de sua autoria pelos anos de 1930 a 1950. Na década de 1960 chegou a frequentar os meios fadísticos lisboetas como boieiro da marinha mercante. Em 2005 consegui finalmente arranjar cópia de um caderno manuscrito onde constam alguns dos fados que acabo de referir. Alguém ficará minimamente surpreendido se eu disser que no meio das cantorias estava a letra completa da balada Ultra-Romântica "O Noivado do Sepulcro", peça que inspirou longa genealogia de "fados à campa", também detectada no Alentejo por Paulo Lima, cuja origem não é Lisboa, nem Coimbra, mas sim o Ultra-Romântico Porto da década de 1850?
Paulo Lima transcreve exaustivamente letras, reproduz raros folhetos de cordel que outrora os quiosques e os almocreves vendiam a pataco como alguns que cheguei a conhecer num recanto de gaveta de família com prantos à morte do Rei D. Carlos e as eternas desgraças de Inês de Castro, havendo ainda lugar a dois cds com amostragens sonoras.
Para saber mais: Paulo LIMA, "O Fado Operário no Alentejo. Séculos XIX-XX. O contexto do profanista Manuel José Santinhos", Vila Verde, Tradisom, 2004.
Agradecimentos: José Moças, pela oferta e pelo inovador trabalho
AMNunes
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