terça-feira, maio 09, 2006

MEMÓRIA DE UM VERÃO ESPINHENSE
(Homenagem a Ângelo Vieira de Araújo)

O nome de Ângelo Vieira de Araújo (o «Jibambo») era-me familiar desde a infância: as referências lá em casa eram mais que muitas. Quando, por volta dos 17 anos, comecei a interessar-me seriamente pela viola de acompanhamento, em breve cheguei aos temas de sua autoria, desde cedo apreciando muito em especial o «Soneto (Carta)»[1] e «Contos Velhinhos»[2].
Conhecer ao vivo o autor destes temas constituiu para mim experiência inolvidável. Foi em Espinho, em Agosto de 1969. Durante 15 dias vizinhei “barraca” de praia com o Dr. Ângelo de Araújo, que por ali esteve, entre o mar e S. João da Madeira. Múltiplas foram as manhãs de conversa entre ele e o meu Pai, Armando de Carvalho Homem (1923-1991). E era um prazer ouvi-lo (eu pouco saberia dizer, ao tempo). Ângelo de Araújo estava bem dentro de situações actuais, já que acompanhara de perto a actividade de Luiz Goes / João Bagão / Ayres de Aguillar / Fernando Neto / António Toscano / João Gomes na gravação do LP Coimbra de ontem e de hoje (1967) e na preparação de actuações radiofónicas[3] e televisivas. Motivavam-no tanto a fidelidade aos originais[4] como uma expressão poética que – tal como a guitarra – soasse à Coimbra; ou, pelo menos, não destoasse… Por isso lhe merecia reparos o poema de Leonel Neves para «Toada do Penedo da Saudade»[5], que L. Goes interpretara no referido programa – o problema essencial estava no verso “os moços das capas pretas”:

- Isto – enfatizava Ângelo de Araújo – nunca se disse em Coimbra !...

E, em boa verdade, a designação do estudante como “moço” e da capa como “preta” (em vez de “negra”) não é muito corrente no discurso poético coimbrão…
Outro ponto estava no uso de expressões demasiado realistas nos poemas, v.g. os dois últimos versos de uma das hipóteses de 2.ª quadra para «Canção das Lágrimas»: “e tanta água que é pura / a lavar sujas vielas[6]. Neste ponto era Carvalho Homem particularmente concordante, e ambos apontavam ainda a duvidosa inseribilidade coimbrã de temas como o chamado «Um Fado de Coimbra» (“fechei a porta à desgraça / e entrou-me pela janela”) ou o «Fado dos Cegos» (“sou ceguinho de nascença / isto assim não é viver”).
É claro que, a 30 e tal anos de distância, uma questão se pode pôr:

· Ângelo de Araújo (e, com ele, Carvalho Homem) estava a dar-se conta de uma situação histórica (em Coimbra tem-se escrito e dito assim e não assado…) ?

· Estava a exprimir o seu gosto pessoal ?

· Ou, mais do que tudo isto, estava a produzir um discurso normativo para a criação poética coimbrã ?

Talvez um pouco de tudo… Mas é óbvio que, nos longínquos sixties, nenhum dos interlocutores então no cenário espinhense colocaria as questões a este nível: estava-se longe de uma perspectiva historiográfica – e não meramente memorialística – do Canto e da Guitarra e, por outro lado, gostos são gostos[7]… e Ângelo de Araújo, que a todos desvanece pelo seu inexcedível humanismo, sempre foi Alguém tolerante e aberto.
É também evidente que os diálogos escutados naquele Verão me marcaram profundamente: por alguma razão estou hoje a evocá-los…

Só voltei a encontrar Ângelo de Araújo nos anos 80. E nos primeiros anos do novo século, já a residir em Lisboa, frequentemente me encontrei com ele em cafés e restaurantes do eixo Praça de Londres / Avenida de Roma: esplanada da Mexicana, antigo Café Roma [8], etc. E foi o reencontro do Grande Senhor, permanentemente atento ao que se passa na Galáxia, de incansável memória para coisa passadas e indefectível amigo-do-seu-amigo. Tudo razões mais do que suficientes para a elaboração deste pequeno apontamento…

Lisboa, 9 de Maio de 2006

Armando Luís de Carvalho Homem

[1] Existia em disco a clássica interpretação de Luiz Goes (início dos anos 50; com António Brojo / António Portugal [gg.] / Aurélio Reis / Mário de Castro [vv.]); bastante mais tarde conheci uma outra versão (mais próxima do original) vocalizada por Almeida Santos (fim dos anos 50, com António Brojo e penso que Gabriel de Castro e António Roxo Leão); tratou-se de um EP 45 RPM gravado por ocasião de uma missão da U. Coimbra a Lourenço Marques; entre quem ia (António Brojo) e quem estava (os restantes) se constituiu um grupo para actuações várias e para a dita gravação.
[2] Existiam em disco versões de José Afonso (início dos anos 50; com os mesmos acompanhantes da interpretação de Luiz Goes referida na n. anterior) e de Mário Veiga (anos 60; com Hermínio Menino / Manuel Borralho [gg.] / Jorge Rino / Rui Borralho [vv.]).
[3] Nomeadamente o programa «Evocação de Coimbra», EN, 1.º programa, transmitido quinzenalmente; uma das emissões foi integralmente preenchida com temas vocais de Ângelo de Araújo.
[4] Era por isso que a interpretação goesiana do «Soneto» lhe não merecia cabal aprovação.
[5] Existiam versões gravadas de Augusto Camacho e de José Paradela de Oliveira.
[6] Sublinhado meu.
[7] Julgo que é nesta linha que se tem situado o Doutor José Mesquita desde os anos 70 (vejam-se recentes textos seus no blog http://guitarradecoimbra.blogspot.com): a criação é livre, em cada momento a inspiração / motivação é uma (e não outra), o receptor do texto musical e poético reage em sintonia ou em assintonia…
[8] Substituído entretanto por uma casa de uma cadeia internacional de fast food

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