quarta-feira, setembro 20, 2006

ESTÓRIAS À LENTE (7)

XXXI.

Esta deu-se no final da década de 50. Um lente de Direito da UL passou por uma situação curiosa quando, In illo tempore, se apresentou à prova oral de Direito Corporativo. O Mestre respectivo era uma personagem dispéptica, ultramontana e de feitio complicado, que exercia um ensino à base da memorização. Na cadeira em causa adorava perguntar o que eram as «Casas do Povo» e as «Casas dos Pescadores» e quem lhes podia pertencer; em ambos os casos, a lista das potenciais pertenças era longa, bem longa; e memorizar tudo aquilo… imagine-se !...
O aluno que foi lente estava, obviamente, bem preparado. O Mestre começou por lhe perguntar o que eram as «Casas dos Pescadores» e quem lhes podia pertencer. E o aluno embala na resposta… mas a dado momento dá-se conta de que o que estava a dizer correspondia afinal às «Casas do Povo». Com um sangue-frio que depois nem ele saberia explicar, conseguiu dizer:

- Peço desculpa, Sr. Prof., V. Ex.ª perguntou-me quem pode pertencer às «Casas dos Pescadores» e eu acabo de me dar conta de que, por lapso, estou a dizer quem pode pertencer às «Casas do Povo». Se me permite vou até ao fim, e direi depois aquilo que de facto me foi perguntado.

O lente manteve-se esfíngico e o aluno prosseguiu; chegado ao fim das «Casas do Povo», disse o seguinte:

- Agora sim, vou dizer quem pode pertencer às «Casas dos Pescadores».

E lá disse, sem mais novidades. Sempre de fisionomia imperturbável, o lente foi depois fazendo mais perguntas, em sequência de prova, com o aluno a responder a pleno contento.
Até que a prova chegou ao seu termo. Cá fora o aluno viu-se rodeado por Colegas que lhe testemunhavam a admiração por quanto se passara.

- Como é que tu conseguiste ?! Foi fantástico ! etc.

As provas orais daquele dia foram prosseguindo. Chegadas ao fim e decorrido algum tempo, sai um contínuo a ler a pauta; o aluno em causa tivera nota alta. Logo depois sai o lente, com o Conselheiro-Presidente do júri. E cumprimenta o aluno, dizendo:

- Ai, gostei muito ! Mas por outro lado que pena ! Tinha sido um chumbinho tão bonito !...

XXXII.

No dito ano de 1967/68 tiveram lugar – em Janeiro – as provas de doutoramento de dois ilustres lentes de Direito: o já desaparecido Doutor Orlando Alves Pereira de Carvalho e o Doutor António Castanheira Neves.
Aí por Novembro já se falava desses actos. E alguns Mestres de cadeiras do 1.º ano – o de Introdução ao Estudo do Direito e o de Direito Romano – aconselharam os seus alunos a assistir às provas, até porque as teses dos dois candidatos eram obras que, a médio prazo, iríamos ter necessariamente de consultar.
Nos ditos dias de Janeiro lá fui à Sala dos Capelos. Na santa ignorância dos meus 17 anos recém-feitos (em 1967/12/12), que julgava eu que fossem umas provas de doutoramento ? Por ambiente familiar, eu tinha conhecimento dos actos solenes de imposição de insígnias. E em anos anteriores, visitas de chefes de Estado ou de Governo ao nosso País tinham incluído o doutoramento «honoris causa» na UC, de que a Televisão dera imagens [i]. Pensava assim eu, quando no primeiro dia entrei na Nobre Sala, que os doutorandos teriam por certo preparado os seus trabalhos ao longo de vários anos; que o júri, em sessão fechada, lhes teria avaliado os méritos; que o ir a «provas» era sinal de juízo positivo; e que as ditas seriam a exposição pelo candidato dos delineamentos da investigação culminante na tese e o relatório final do júri sobre a mesma; e, daí a algum tempo, a imposição solene das insígnias doutorais.
Era mesmo uma «santa ignorância». As duras interpelações que vi serem feitas aos candidatos, as ásperas e alongadas discussões entre Orlando de Carvalho / Ferrer Correia, Orlando de Carvalho / Pires de Lima e Castanheira Neves / Eduardo Correia (bem como os comentários dirigidos de Sebastião Cruz na sua argumentação a Castanheira Neves) foram algo que se me gravou profundamente na memória e que, a longo prazo, me ditaria uma linha de conduta, como candidato que também fui [ii] e como arguente que, desde 1988, em diversas ocasiões tenho sido.

Flashes desse distante Janeiro:

1) Primeiro dia, discussão da tese de Orlando de Carvalho: o arguente foi o Doutor António de Arruda Ferrer Correia; uma das críticas ao candidato esteve no «elevado número de notas» que o trabalho comportava, algumas das quais tão específicas e tão desenvolvidas que deveriam ter sido reduzidas ao mínimo e depois objecto de trabalho autónomo; e a nota tal da página tal parecia-lhe desnecessária. Orlando de Carvalho atacou esta questão de frente. Referiu a crítica ao montante das notas e particularmente à nota tal da página tal, «que V. Ex.ª creio que considerou desnecessária»…

- Totalmente desnecessária ! – precisou Ferrer Correia.
- Bem, esse «totalmente» é que eu não admito !...
- Mau, ó Dr. Orlando de Carvalho…

Mas este já interrompera. E seguiram-se, seguramente, três minutos, se não mais, com os dois a falar em simultâneo e em altos brados. Até que o Presidente do júri, Doutor Afonso Queiró (Director da Faculdade), bateu duas vezes com uma mão na outra e proclamou:
- Um de cada vez !...

2) Primeiro dia, discussão da tese de Castanheira Neves: o arguente foi o Doutor Eduardo Henriques da Silva Correia; já para o fim da prova, estiveram longos minutos a discutir o conceito de «pré-predicação jurídica»… Hoje em dia, qualquer antigo aluno do Doutor Castanheira Neves (jubilado há alguns anos) ou qualquer antigo ou actual aluno do seu discípulo Doutor Fernando Bronze saberá plenamente do que se trata; mas ao tempo, entre os estudantes na Sala – por maioria de razão se do 1.º ano –, a ininteligibilidade foi total…

3) Segundo dia, primeira prova de interrogatório de Orlando de Carvalho: foi no domínio do Direito Civil, arguente o Doutor Fernando de Andrade Pires de Lima; não poderia haver duas pessoas mais diferentes, cientificamente e não só; Pires de Lima conduziu a prova de forma por vezes acre; num dado momento interrompe o candidato e faz-lhe a seguinte observação:

- Vamos lá com calma, que já está para aí a meter água !...

4) Segundo dia, primeira prova de interrogatório de Castanheira Neves: foi no domínio do Direito Romano, arguente o Doutor Sebastião Costa Cruz; já se sabia que este ia dizer algo sobre o novo Código Civil, que entrara em vigor um ano antes; os Doutores Fernando Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela (ambos no júri) andavam impantes, com o que consideravam ser um feito marcante da Escola civilística de Coimbra; mas Sebastião Cruz não ficara satisfeito: achava que algumas formulações legais não estavam perfeitas e que o recurso ao Direito Romano as poderia ter melhorado; e ali o disse, num dado momento da prova; está claro que os visados não ficaram propriamente de facies sorridente…

A fechar: Passe a (porventura) imodéstia, mas orgulho-me de saber o que se pode (e não pode) ou deve (e não deve) dizer em provas académicas; e terei começado a aprendê-lo na Sala Grande dos Actos, nesse tão distante Janeiro de 1968…


XXXIII.

In illo tempore, quando eu ingressei na licenciatura em História da FL/UP (1968), havia no 1.º Grupo da Faculdade de Ciências (Álgebra e Geometria, vulgo «Matemática Pura») [iii] um lente que destoava:

1. Era ultra-conservador, homem do Regime, dirigente da Mocidade Portuguesa e provavelmente ligado à Causa Monárquica, isto numa área do Saber onde boa parte das glórias científicas (v.g. Ruy Luís Gomes [1905-1984]) estava – ou tinha estado – ligada à Oposição de esquerda;
2. a sua Ciência parecia estar muito abaixo da média entre os seus pares: era considerado um marrão memorizador e praticava um ensino (v.g. em Geometria Descritiva ou em Análise Infinitesimal) desse quilate; chegava a reprovar nas orais alunos que lá chegavam bem classificados, por questões de minudência extrema; resultado: todos os anos migrava para Coimbra um bom contingente de reprovados na segunda disciplina mencionada, rumo ao ensino humanista de Luís de Albuquerque (1916-1992);
3. pessoa de trato ríspido, não seria, naturalmente, personagem simpática à generalidade dos alunos;
4. a juntar a tudo isto, não lhe faltavam características picarescas: a voz estrídula, quase de falsete; os litros de água de Colónia que sobre si derramava; as explicações que dava às vezes nas aulas sobre a sua vida pessoal, mormente as razões por que não casara e ficara celibatário[iv]; ou – the last but not the least – um pormenor de dicção que noutras circunstâncias passaria, mas que com ele era mais uma acha para a fogueira de laracha que o rodeava: pronunciava os ss como se do dígrafo inglês th (v.g. em three = três) se tratasse; a juntar a isto, um acentuado sotaque nortenho (nortâinho); daí que, por exemplo, a frase «Salvo raras excepções, os investigadores não nascem espontâneamente: é necessário criá-los e ampará-los !» [v] soasse mais ou menos como isto: «Thalvo rarath exthepthõeth, oth invethtigadoreth não nathem ethpontâneamente: é nethetrio criá-loth e ámpará-loth!»; entre os estudantes era conhecido pelo diminutivo do nome próprio, pronunciado à maneira
5. todavia, politiqueiro, ligado – via-Mocidade Portuguesa – a Marcello Caetano (!!!!!), com ligações também ao universo das empresas, lá se doutorou e foi fazendo carreira; chegou a Director da Faculdade; o pior foi o concurso para professor catedrático…

Foi na Primavera de 1962. O Salão Nobre da Faculdade de Ciências (aos Leões) abarrotava de gente, que compreendia uma multidão de alunos na expectativa da tourada que constava ir dar-se (ainda que não houvesse grandes dúvidas de que depois seria aprovado por unanimidade, como de facto aconteceu). O arguente do primeiro dia foi um velho e respeitado lente da Casa já jubilado, pessoa austera e tida como da Oposição. Como toda a gente esperava, arguição dura, para um candidato mostrar o que valia… se o conseguisse…
Dada a palavra ao candidato, este, claramente inseguro, começa com um discurso redondo, repleto de citações e paráfrases do próprio arguente («Votha Eithelênthia dithe, math depoith Votha Eithelênthia também dithe, e dithe maith athim e maith athado…). Ao fim de largos minutos o arguente perde a paciência e ‘atira-lhe’ (só…) com esta:

- Mas para que é que o Sr. está para aí btha-btha-btha-btha ? Ainda não disse nada de jeito !...

Post-scriptum: Este episódio foi-me narrado, há já cerca de 25 anos, pelo meu Velho Amigo Raul Barros Leite, antigo elemento do Orfeão Universitário do Porto (1955-1966) e actual Presidente da Direcção da Associação dos Antigos Orfeonistas da UP, que assistiu às provas do dito concurso.
NOTAS:

[i] Maxime aquando da visita do Presidente brasileiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, integrada nas Comemorações Henriquinas (1960); sendo que, na reportagem da cerimónia coimbrã, um locutor da RTP se referiu à Via Latina como «Avenida Latina» !...
[ii] Doutoramento (1985) e agregação (1994).
[iii] Mecânica e Astronomia constituíam o 2.º Grupo, vulgo «Matemática Aplicada»; daí que nas Faculdades de Ciências os Grupos 1.º e 2.º fossem correntemente designados como «as Matemáticas».
[iv] Havia quem dissesse que lhe «puxava o pé para a chinela»…
[v] Da «oração de sapiência» que proferiu na abertura das aulas em Outubro de 1968, a que assisti.
Armando Luís de Carvalho HOMEM

relojes web gratis