quarta-feira, outubro 18, 2006

A DECADÊNCIA SOLENE DA ACADEMIA DE COIMBRA
Por Álvaro Vieira

"Le parole sono importanti!", protesta uma personagem de um filme de Nanni Moretti. As palavras são sempre importantes, de facto, mas aquelas que se gravam no metal e se cravam nas paredes são-no ainda mais. Quanto mais pública e perene é a mensagem, tanto maior é a responsabilidade que implica. Os dirigentes da Associação Académica de Coimbra (AAC) ou não percebem isto ou são demasiado cobardes para o deixar transparecer. Esta semana, cumprindo uma deliberação da Assembleia Magna - designação fantástica, atendendo ao número de participantes e à qualidade das intervenções ali produzidas... -, transformaram a fachada da sede da AAC num Gólgota onde "crucificaram" o reitor. Deixaram-no exposto, numa tentativa de condenação perpétua, numa placa que o presidente da mesa da assembleia, com toda a cagança, toda a pujança e aqui sai um F-R-A, descerrou: "O dia 20 de Outubro de 2004 não será esquecido pelos estudantes da Universidade de Coimbra. O reitor Seabra Santos violou o conceito de universidade livre e democrática, solicitando a presença das autoridades no espaço universitário. Este acto resultou numa carga policial sobre os estudantes e na detenção de um colega no Pólo II da Universidade de Coimbra" (UC), escreveram os estudantes numa placa colocada ao lado da outra, semelhante, que evoca os 35 anos da Crise Académica de 69. Não perceberam que, ao estabelecerem esta equivalência, estavam a insultar a memória da luta dos camaradas de 1969. Nessa altura, a academia clamava por uma sociedade mais justa e igualitária, não pedia privilégios de casta ou corporação como reivindica, em última análise, esta tese mal assumida de que a UC deve voltar a ser um santuário vedado à polícia. A UC nunca será democrática, se nela a força da turba se impuser ao direito e à razão.
Foi isso que a intervenção policial de Outubro de 2004 impediu. O que vi na televisão foi uma série de gente a empurrar e pontapear uma porta, tentando forçar a entrada num espaço onde decorria uma sessão de um órgão democraticamente eleito, cujo funcionamento os mesmos manifestantes já haviam boicotado, por duas vezes, através de invasão. Ao recorrerem à força, os estudantes, que até tinham motivações generosas, perderam por completo a razão, da mesma forma que a dissipam quando, em nome da greve, encerram faculdades. O cadeado é um atentado à autodeterminação, tem uma natureza bruta e fascista que é também a das mãos que o manipulam.Esta foi também a semana em que o reitor cancelou a abertura solene das aulas, alegando que o encerramento da Porta Férrea pelos estudantes, marcado para a mesma hora - outra deliberação da Assembleia Magna -, inviabilizava a realização da cerimónia no ambiente de festa que a justificava. Com uma ingenuidade tão grande como o seu ego, a direcção da AAC reagiu com uma carta aberta à comunidade universitária, a afirmar que Seabra Santos era o único responsável pelo cancelamento do evento, uma vez que os dirigentes estudantis até tinham tentado, com o reitor e outras instâncias, encontrar "soluções" como "a entrada por diferentes locais, a adaptação de horários, etc." - numa palavra, "sabotar" a deliberação aprovada pelos colegas que era suposto representarem. Se a AAC ainda fosse uma entidade credível, esta direcção era imediatamente destituída.Sempre que se vissem confrontados com deliberações contrárias à sua consciência, os dirigentes da AAC deviam dizê-lo francamente e apresentar a demissão. Infelizmente, desde há alguns anos que preferem desempenhar o papel mesquinho de tampão, e tentar, na sombra, conter parte do extemismo da Assembleia Magna.Muitos professores da UC divertem-se a ver Seabra Santos, eleito com o apoio dos estudantes, envenenado com a sua própria promessa de jamais chamar a polícia à universidade. No geral, o corpo docente olha para estas guerras como se elas não lhe dissessem respeito. Mas dizem. A abertura solene das aulas não faz falta a ninguém, mas a liberdade de a realizar faz.

[texto editado no jornal "Público", de 23 de Outubro de 2005, retirado do endereço "queuniversidade.weblog.com/pt"]

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