Comparando imagens da indumentária ligada aos rituais e cerimónias de ensino superior disponíveis em sites com tendência algo prolifernante para a recuperação/invenção/reinvenção de uniformes (em França, a adesão parece ser comedida em sectores mais tocados pela herança laicista e dessacralizadora), constata-se que as linhas de força deste fenómeno acabam por tocar as fronteiras do crescente movimento internacional das confrarias gastronómicas e báquicas. Nestes casos, os modelos vestimentários fundem aleatoriamente peças extraídas de diversas épocas e contextos, aproximando-se de experiências fantasistas ensaiadas pela indústria cinematográfica de Hollywood no género "peplum" e de "aventuras picarescas e de capa e espada": para o 1º caso, pense-se em películas como "Os Trabalhos de Hércules" (1958), "O Gigante do Vale dos Reis" (1960), numa mescla de fantasia, mito e imaginário; para o 2º caso, teremos Errol Flyn en "Robim dos Bosques" e no "Ladrão de Bagdad", ou o galã Stuart Granger em "Scaramouche" (1952).
Atentando em elementos do corpus iconográfico comparativo recolhidos por Armando de Carvalho Homem, constatamos soluções no mínimo curiosas, todavia possíveis em tempos de pós-modernismo:
a) na Universidade Politécnica de Kiecle (Polónia) como que se faz recurso assumido à Murça de arminhos dos antigos reitores da Universidade de Bolonha, o mesmo sucedendo quanto aos barretes mergulhados na tradição italiana e de sugestão orientalizante;
b) as mangas revestidas de peles ricas foram uma constante no vestuário de luxo da nobreza europeia ao longo dos séculos XV e XVI;
c) na Universidade Vasilis Goldis (Roménia), opta-se descomplexadamente por um chapéu consagrado a partir da tradição de Oxford, com radicações nos EUA;
d) no caso do trajo docente adoptado na Universidade do Algarve, pormenores se vislumbram que parecem remeter para o universo grego/oriental.
A uma extrema simplificação minimalizante que quase desagua em singela gabardina ou sobretudo de executivo (ex: trajo da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias), como que se opõe uma tendência para o império da profusão cromática, sobrecarga da função simbolizadora e mistura aleatória de elementos franceses, belgas, italianos, espanhóis, portugueses e britânicos, num jogo de "rouba e cose" que, sendo imaginoso, não deixa de concitar perplexidades.
As tendências assinaladas são ainda mais ostensivas no universo das confrarias, movimento surgido na Bélgica/e França pela década de 1970, que se reclama herdeiro da tradição medieval das guildas e corporações profissionais. O movimento das confrarias rapidamente alastrou na Europa continental. A Confraria do Vinho do Porto, instituída em 1982, terá sido uma das primeiras a irromper em Portugal, misturando a opa religiosa com o chapéu bolonhês do século XV. Nas décadas de 1980-1990 foram criados em Portugal pelo menos 22 grupos dedicados à gastronomia, de parceria com outros vocacionados para a difusão dos vinhos.
Salvo casos raros mais voltados para a reciclagem de vestimentária nobiliárquica anterior ao século XVI, as confrarias portuguesas optaram pela recuperação de elementos oriundos da tradição popular e religiosa como o chapéu de feltro domingueiro, a opa processional (com e sem mangas; com e sem romeira), o gabão e o capote.
Um outro polo português deste movimento de reinvenção de tradição vestimentárias, de que não falaremos aqui, respeita aos novos Trajos Académicos discentes surgidos no após 1974 em diversas Academias ligadas a estabelecimentos de ensino superior. Se alguns resultam da reciclagem de uma tradição autêntica e bem documentada (caso da Escola Superior Agrária de Coimbra), outros são fruto da mais fértil invenção.
Bem diversos do comedimento do "trajar" português são os percursos das confrarias francesas e belgas, cujos trajos fundem arbitrariamente chapéus à Oxford, gorras renascentistas, colares, debruns de peitos e mangas, túnicas de monges, becas judiciárias e universitárias, escapulários e opas, num regresso festivo ao ostentatório e ao excesso visual. Um dos mais celebrados pontos de encontro deste tipo de confrarias tem lugar anualmente na Bélgica desde 2004, sendo ponto alto o desfile dos grupos presentes.
Em todos os casos observados e a observar em termos de Academias estudantis, estabelecimentos de ensino superior, confrarias laicas e outros, o regresso ao HÁBITO TALAR parece ser um dos traços mais salientes. É tempo de recordar duas grandes cesuras cronológicas que ajudaram a alicercar a história da moda no Ocidente:
Tempo 1: as profundas alterações registadas no vestuário ocidental a partir de ca. 1350. O primeiro passo traduziu-se na distinção clara era vestuário masculino e vestuário feminino. O segundo passo, ligado ao século XV, passou pela separação quase radical entre moda masculina laica (vestes curtas) e moda masculina correlacionada com funções corporativas e governativas. O Hábito Talar, com ou sem capa, ficaria doravante confinado aos membros do clero regular e secular, juizes, advogados, médicos, parlamentares, docentes universitários, embaixadores, funcionários de universidades e câmaras municipais. A separação referida acabaria por implicar a distrinça entre trajo de trabalho quotidiano e Trajo de Gala.
Tempo 2: o Decreto da Convenção (1793), filho da Revolução Francesa, que suprimiu as distinções vestimentárias onde se escorava a normativa do vestir-se distintamente de acordo com o estatuto de cada uma das três Ordens sociais. Foram os tempos da democratização do vestir e da igualitarização (não obstante, nunca se conseguiu neutralizar o toque de "individialismo estético").
Escassos duzentos a cento e cinquenta anos após as ofensivas laicizadoras, dessacralizadoras e uniformizadoras registadas no mundo universitário após a Revolução Francesa de 1789, a maré como que reflui. Em França, país mais fortemente marcado pela rejeição dos antigos trajos e leis proibicionistas quanto às Praxes (Bisutages), a Toge, o Birret e o Epitógio não foram integralmente abandonados. Nos meios estudantis gauleses persistem pontualmente tradições como o Barrete académico (La Faluche) e festividades pontuais como "Les Bitards" de Poitiers. Espanha, cujo governo central suprimiu na década de 1850 a Loba e Mantéu de Salamanca, impondo a Beca de advogado à escala geral e nacionalizando as Insígnias Doutorais, talvez seja o caso onde a uniformização atingiu maior expressão.
Em Portugal, as tentativas uniformizadoras e nacionalizadoras implementadas durante a Primeira República a partir da tradição conimbricense, vieram a conhecer crescente sonegação desde 1974. No reino do "politeísmo dos valores" (Michel Maffesoli), cada instituição e cada Academia apostam na construção identitária mais por diversificação e e menos por mimetismo. Aceitando o "trajo" e as "insígnias" como bens simbólicos de valor acrescido, entre a escolha omnisciente e omnipotente de um governo central de rosto desconhecido e a possibilidade de os membros de cada instituição democraticamente escolherem (mesmo que inventando) determinados símbolos em contexto autonómico, parece-nos preferível a segunda solução.
FontesBélgica: "Confréries" e "Confréries Gastronomiques du Namurois", http://www.pro-liege.be/
France: "Les Confréries Gastronomiques en Loiret", www.logis-de-france-loiret.com/
Portugal: "Confrarias de Portugal: www.gastronomias.com/confrarias/-35k
AMNunes
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