A última homenagem pública que A. H. de Oliveira Marques recebeu em vida
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No ano de 1975 ou 1976 eu batia – expressão literal – à porta do Prof. Oliveira Marques da sua casa, na Rua Francisco de Andrade.
Era então Assistente da Faculdade de Letras de Coimbra e não tinha, ao tempo, qualquer Professor Doutorado em História Medieval que me pudesse orientar. Tinha apresentado, em 1971, um tese de licenciatura sobre O Mosteiro de Arouca e nela sentira um gosto muito particular pelo estudo do meio rural em que a instituição se inseria.
Queria, pois, realizar um doutoramento em História rural, tomando como campo de análise uma região no entorno conimbricense, que concretamente veio a ser a espacialidade entre Coimbra e a Foz do Mondego, a conhecida região do Baixo Mondego. Ora o único medievalista português que até àquele ano havia escrito um trabalho de fundo sobre a temática era o Prof. Oliveira Marques, que, em 1962, publicara a História da Agricultura em Portugal.
Com a afoiteza dos meus verdes anos, dirige-me pessoalmente a esse historiador, que até então só conhecia pela leitura. E a porta a que bati abriu-se-me completamente. O Mestre aceitou ser meu orientador e, o tempo o diria, viria a ser mesmo muito mais do que isso, um Amigo.
Pesquisar e reflectir sobre os dados recolhidos nessa investigação para doutoramento foi para mim um tempo feliz. Se eu era trabalhadora e metódica, o Prof. Oliveira Marques ultrapassava qualquer ser humano nessas qualidades. Logo o trabalho ia avançando a ritmo certo e programado. Claro que mais no tempo de investigar e trabalhar os dados, menos no de escrever, que é muito mais lento e subjectivo. Mas justamente quando, como acontece a qualquer um, o espaço dos nossos encontros se alongava, porque surgiam dúvidas sobre a pertinência do que estava a fazer ou a escrita emperrava, aí estava o telefone a tocar. Era o Prof. Oliveira Marques a incutir-me ânimo e a dar-me força.
Tive pois o melhor orientador possível – sabedor do tema que orientava e oferecendo-me todo o estímulo que eu precisava. As nossas sessões de trabalho eram uma alegria. Primeiro trabalhávamos a sério e sem pausa, mas depois, depois vinha o tempo de conversarmos sobre tudo. Não sei o que mais me enriquecia, se o aprofundamento da história rural medieval ou o conhecimento dos meios, dos homens, das vivências que o Prof. tinha adquirido e comigo partilhava. Sempre gostei de conversar, melhor direi, de escutar um bom conversador. Oliveira Marques, na sua assumida urbanidade, sabe, como poucos, transmitir o que pensa e apreende. E assim fui-me aproximando sempre e mais de um Mestre, e admirando um Homem. Mestre que acompanhou todas as provas e concursos da minha carreira universitária até eu chegar em 1991 a Professora Catedrática. Homem que sempre fui considerando pela frontalidade e verticalidade por que pautou a sua vida. Para finalmente ter ganho um Amigo, com quem venho partilhando, os bons e maus momentos, há mais de três décadas.
Por isso foi-me muito grato participar na Homenagem que lhe foi feita em 1982 e mais ainda recebê-lo, no fim da sua carreira, em Coimbra, numa das suas últimas lições, e de ter coordenado, juntamente com o meu Colega Carvalho Homem, a obra Na Jubilação Universitária de A. H. de Oliveira Marques, onde se condensam estudos sobre a sua polifacetada vida e obra.
E depois deste registo mais pessoal, era sobre essa obra, sobremaneira como medievalista, que me queria fixar por uns momentos.
Oliveira Marques foi muito precoce na sua produção científica. E produziu obras maiores fora do tempo. Mas que, depois do tempo, vieram a ser consagradas.
Nomeado 1º Assistente da Faculdade de Letras de Lisboa, a 17 de Outubro de 1960, entregou, a 10 de Maio de 1962, como dissertação, já impressa, a Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média, para concurso a professor extraordinário, concurso que, por vicissitudes políticas várias, nunca se realizou, acabando mesmo Oliveira Marques por abandonar a Faculdade e a função pública, a 17 de Novembro de 1964, rumando como docente para os Estado Unidos da América.
A História da Agricultura aborda, com detalhe, aspectos da produção, circulação e comercialização dos cereais. Nas condições de produção o estudo trata dos importantes vectores do clima, solo arável e mão-de-obra, nas áreas de produção analisa o solo cultivado, os cereais produzidos e o quantitativo da produção, para nos meios de produção se deter sobre as técnicas agrárias, as formas de propriedade e as formas de exploração agrária e a panificação. A análise da circulação e distribuição interna dos cereais leva o Autor a estudar celeiros e covas, a organização do comércio interno e as vias de comunicação, para depois se fixar na importação e exportação no âmbito do comércio externo e ainda a precisar as técnicas comerciais e os movimentos dos preços e dos consumos. Compreende-se bem que, dada a abrangência e variedade dos temas estudados, esta obra se tenha tornado modelo para os investigadores que à história agrária, e mesmo à história económica, se vieram a dedicar.
Mas o impacto desta magna obra, porque o seu Autor, como se disse, sempre esteve adiantado em relação ao seu tempo, só se sentiu verdadeiramente nas décadas de setenta e oitenta nas teses de doutoramento sobre história rural que então se produziram. E a obra conta actualmente com três edições.
Dois anos depois, em 1964, saía à estampa o estudo A Sociedade em Portugal no séculos XII a XIV, obra que já conhece quatro edições, para além de um tradução inglesa.
O autor demonstrava, nos inícios do seu labor historiográfico, uma inequívoca propensão para a valorização dos temas sociais. Mas Oliveira Marques estava algo só. Verdadeiramente apenas na década de 80, depois de alguns trabalhos mais profundos sobre a clerezia e nobreza, se deu relevo a todas as valências dos diversos estratos que compunham a sociedade medieval portuguesa e se incidiu sobre os aspectos do seu quotidiano de viver, sentir e morrer. Então a obra de Oliveira Marques A Sociedade Medieval Portuguesa torna-se “uma Bíblia”. Não se pode discorrer sobre as funções e os ritmos de trabalho do homem medieval, sobre as suas condições de habitabilidade, higiene ou saúde, sobre as suas manifestações exteriores de vestuário e mesa, sobre os seus afectos e crenças, sobre os seus valores culturais ou distracções ou sobre os seus modos de encarar a morte, sem recorrer a essa obra fundamental. Sempre, assim o cremos, este estudo será uma referência para quem se dedique à história medieval. Esta a característica maior da obra dos grandes Mestres.
Ainda no mesmo ano de 1964 saía a público um outro trabalho de profundo impacto na comunidade historiográfica dos medievistas. Trata-se do Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa, já com três edições. Nenhum estudioso do período medieval terá deixado de consultar esta obra, roteiro de fontes e bibliografia, mas também incentivadora da investigação medievística, na proposta de novas sendas de pesquisa e métodos de trabalhos.
Ainda na década de 60 (1965), em que este autor deixou marca maior na historiografia medieval, a par das monografias já referidas, acrescentam-se-lhe ainda estudos fundamentais, constituindo comunicações a congressos ou artigos de revista, que vieram depois a englobar-se na obra Ensaios de História Medieval Portuguesa, abordando-se na maioria dos trabalhos, como era timbre da época, a história económica. Sem esquecer que, entre 1963 e 1971, escrevia mais de oitenta artigos para o Dicionário de História de Portugal, grande parte deles dedicados a temas medievais.
Mas, por contraponto, o saber de Oliveira Marques não fez apenas renovar a história rural mas vivificar igualmente a história urbana. Esta talvez mesmo do maior gosto e interesse deste professor, um citadino por excelência, ainda que não tenha publicado até agora o trabalho de fundo que sempre sonhou, pela muita investigação desenvolvida, sobre Lisboa medieval. Nesta temática prevalecem os seus estudos mais particularizados, primeiro apresentados sob a forma de comunicações e depois reunidos em obra conjunta, o seu magistério e a sua orientação de teses de Mestrado e Doutoramento. Na colectânea Novos Ensaios de História Portuguesa, que me é afectivamente muito cara, pois, em gesto único de um grande Mestre e Amigo, o Autor ma dedicou, reúnem-se onze estudos sobre história urbana.
São artigos produzidos entre 1981 e 1987, período durante o qual Oliveira Marques regia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do Mestrado em História Medieval, o Seminário sobre “Cidades Medievais”, do qual resultaram muitas teses sobre grandes ou pequenas vilas e cidades, bem como um precioso roteiro sobre vários centros urbanos de Portugal. À leccionação de Oliveira Marques nesses Seminários e à sua devotada entrega como orientador científico se ficam a dever dissertações de Mestrado ou Doutoramento que particularizam o tecido urbano de centros como Ponte de Lima, Chaves, Guarda, Aveiro, Tomar, Óbidos, Alenquer, Santarém, Abrantes, Sintra, Setúbal, Évora e Silves. E como fruto desse mesmo Seminário, no ano lectivo de 1986-87, sob a sua coordenação sai a lume o Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, que individualiza muitos centros urbanos espalhados pelas Comarcas de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Entre Tejo e Guadiana e Algarve, alcançando mesmo a Madeira. Ainda uma vez mais, e inequivocamente, esta significativa e valiosa produção sobre a história se deve ao pioneirismo e entrega de Oliveira Marques no desbravar de novas facetas do passado medieval.
Do mesmo modo que, consciente de que a história só se pode construir sobre alicerces seguros, no Centro de Investigação que criou naquela mesma Faculdade, o Centro de Estudos Históricos, tem vindo a dirigir uma equipa, a qual com grande empenho e regularidade, publicou já vários volumes de Chancelarias e Cortes Régias, edição de fontes que prestam um relevante serviço a toda a comunidade científica em Portugal e mesmo no estrangeiro.
Mas sem tudo poder abarcar nestas breves palavras, salientemos ainda o espírito de síntese e divulgação de Oliveira Marques.
Este vasto saber condensou-se, de pronto, em amplas sínteses e, no ano de 1972, publicou o primeiro volume de uma História de Portugal, que pretendia dar a conhecer o passado pátrio no estrangeiro, sendo por isso a obra simultaneamente publicada em Lisboa, Londres e Nova York. Obra que marcou um tempo. Nenhuma outra História de Portugal havia saído depois daquela que é conhecida como a História de Portugal de Barcelos. E esta, como sempre límpida na escrita e clara na sua arquitectura, abria-se às temáticas económicas e sociais que então inovavam. Com sucessivos aumentos, pois que de um volume chegou a três, e alcançando mesmo a história do tempo presente, tem já treze edições. Mais, para além da versão inglesa e portuguesa, foi traduzida para francês, japonês, castelhano e polaco. E a partir dela Oliveira Marques elaborou uma Breve História de Portugal que conhece versões em francês, inglês, chinês, romeno, alemão e italiano.
Mas em matéria de sínteses o sonho era mais alto. Entre 1981-82 lança-se no projecto da na publicação da Nova História de Portugal e a Nova História da Expansão Portuguesa. Saíram da primeira oito volumes e da segunda dez volumes. E nos últimos anos muito do seu melhor tempo, do seu contínuo esforço, da sua denodada vontade foram investidos nesta empresa. Amor e dor, alegria e tristeza, lhe têm vindo deste projecto. Mas a obra aí está para servir os historiadores. A Nova História assume-se como uma síntese eminentemente didáctica e informativa, mas também muito actualizada. Face ao desenvolvimento dos diversos campos históricos e a um saber especializado, cada volume tem o seu coordenador e por dentro dele colaboram os investigadores que particularmente se têm dedicado às diferentes temáticas. Mas a superior orientação dos volumes é do Prof. Oliveira Marques. Escreveu sozinho um dos volumes, o quarto, que envolvia os séculos XIV e XV, coordenou outros e escreveu capítulos em muitos mais, por gosto ou por necessidade de suprir faltas.
Estou bem por dentro deste Projecto. Porque muitos dos nossos diálogos decorreram em torno das expectativas e dos desânimos que esta obra carrega. Mais objectivamente coordenei, juntamente com o meu Colega Carvalho Homem, o volume III da Nova História. E sei bem como essa coordenação foi árdua para concertar tempos, limites de páginas e escritas de doze colaboradores, melhor compreendendo o labor geral do Mestre. Mas foi-me muito grato partilhar mais esta vivência com o Prof. Oliveira Marques.
Quem escreve a uma só mão uma História de Portugal, como a que saiu em 1972, domina a história toda. Para além de que o medievalista Oliveira Marques é também o historiador especialista da I República ou da história da maçonaria. Por isso a obra Na Jubilação de Oliveira Marques foi construída na base de análises das diversas linhas fortes da sua vastíssima produção científica.
Na história da história dos séculos a haver o nome de Oliveira Marques ficará para sempre gravado. E a memória histórica de Portugal e dos Portugueses, ontem, como hoje ou amanhã, será conhecida em países europeus como a Espanha, a França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha, a Polónia e a Roménia ou transcontinentais como os Estados Unidos da América e Brasil, onde também ensinou durante alguns anos, e mesmo ainda na China e no Japão, graças ao labor de Oliveira Marques.
Nestas palavras ficaram traços de uma obra. Sobre Oliveira Marques, o cidadão comprometido com a sociedade e a política do seu tempo, a ponto de conhecer o exílio, ou o homem frontal e de vontade firme, apoiante de causas e ideais, outros falarão melhor do que eu.
Mas, acreditem, também todas essas vertentes do seu carácter eu conheço e admiro E até outras mais. Gostos de músicas, de dança e de cinema, gostos de saborear boas iguarias e bebidas, gostos de bem parecer e de bem estar, gostos de viajar, gostos de mimar certos animais…Mas o íntimo e pessoal é de cada um de nós. E esse guardo-os por dentro de mim, como a relíquia de uma dedicatória.
2. A. H. de Oliveira Marques, Historiador e Cidadão
Armando Luís de Carvalho HOMEM
- Sr. Director da Biblioteca-Museu República e Resistência
- Sr. Moderador da Mesa
- Sr. Prof. Oliveira Marques
- Srs. Profs. Maria Helena da Cruz Coelho e Fernando de Almeida Catroga, igualmente intervenientes nesta sessão
- Colegas, Amigos, Senhoras e Senhores:
Repetidamente tenho dito que, não tendo sido, no sentido escolar do termo, aluno de Oliveira Marques, o considero, no entanto, um dos Mestres que tive, um dos grandes responsáveis, além do mais, pela minha opção pela História Medieval quando, há cerca de três décadas e meia, houve que escolher tema para a tese de licenciatura, passo de carreira então existente nas Faculdades de Letras.
Tive o ensejo de frequentar a mais recente daquelas Escolas, a da UP, que na actual fase remonta ao ano lectivo de 1962/63. E acontece que iniciei o meu percurso discente pouco depois de alguns dos mais altamente classificados dos primeiros licenciados da Escola terem nela iniciado funções como Assistentes. Não estava nas tradições daquela juvenil Casa de jovens Mestres qualquer censura bibliográfica: citavam-se estrangeiros de claro perfil ideológico que alhures seria considerado, no mínimo, suspeito, de Marx/Engels a Proudhon, a Max Weber, a Émile Dürkheim ou a Werner Sombart nas Ciências Sociais e de Marc Bloch a Edward R. Palmer, a Earl J. Hamilton, a Georges Lefebvre, a Albert Soboul ou a Jacques Godechot, entre muitos outros, na Historiografia; e entre os nacionais podiam citar-se Mestres assumidamente desafectos ao Regime (caso de Luís de Albuquerque) ou historiadores que nunca foram professores universitários em Portugal (caso de José-Gentil da Silva), ou só mais tarde o vieram a ser (como Joel Serrão) ou então se encontravam ao tempo banidos do Ensino Superior do nosso País (casos de Magalhães Godinho ou de Oliveira Marques). Foi pois assim, Sr.as e Srs., que no ano lectivo de 1969/70 (o 2.º da licenciatura) pela primeira vez ouvi falar de ANTÓNIO HENRIQUE RODRIGO DE OLIVEIRA MARQUES, e logo em duas disciplinas: História Medieval de Portugal e História da Expansão Portuguesa.
A primeira, com esta designação que 1 ano antes substituíra a preexistente História de Portugal I, era ao tempo regida por um S. antigo aluno na FL/UL, que depois não seguiria carreira na Escola, ficando antes conhecido como longevo autarca, concretamente no município da Maia. Refiro-me ao já desaparecido Dr. José Vieira de Carvalho, que, faço questão de salientar, antes dessa sua viragem para a política autárquica foi indiscutivelmente um docente com méritos. Citou-nos o Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa (de que corria a 1.ª ed.: 1964), A Sociedade Medieval Portuguesa (também em 1.ª ed. – 1964 – mas aparecendo a 2.ª logo em 1971) e os Ensaios de História Medieval (também em 1.ª ed.: 1965).
A segunda das mencionadas disciplinas tinha dois responsáveis: o Doutor Luís António de Oliveira Ramos – também lic.º pela FL/UL e aí tendo iniciado carreira em 1962 – e o Doutor Eugénio dos Santos; ambos fizeram carreira na Casa, estando o primeiro hoje aposentado depois de, entre outras coisas, ter sido, nos anos 80, Reitor da UP; e o 2.º é o actual decano do Departamento de História e jubilar-se-á dentro de meses. Os 2 incluíam na Bibliografia da disciplina em causa, a recente 2.ª ed. (1968) da Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. Posso dizer que, de entre as Obras de Oliveira Marques, foi esta então a mais decisiva em termos de influência exercida: pela simples razão de que, estando eu ao tempo particularmente motivado pela História Económica – sobretudo Rural –, via aquele livro abordar à nossa dimensão problemáticas que, em termos europeus ocidentais, eu encontrava tratados tal como nas Obras de um Marc Bloch, de um Michael M. Postan, de um Bernard H. Slicher van Bath, de um Édouard Perroy, de um Georges Duby, de um Robert Fossier ou de um Guy Fourquin, entre outros que, no mesmo ano, me foram referidos em História da Idade Média.
Acasos de escolha de tema acabaram por me conduzir não à História Rural da nossa Idade Média, mas antes à Diplomática Régia e à História dos Poderes. Mas Oliveira Marques – longos anos regente de Paleografia na FL/UL (1957-1964), autor da entrada «Diplomática» (e outras correlacionadas) do Dicionário de História de Portugal (1963) e co-autor de um Álbum de Paleografia (1987), recorde-se – permaneceu-me como essencial referência da nossa Historiografia. Só o conheci pessoalmente em Maio de 1974, por ocasião de uma conferência sobre Teófilo Braga que foi proferir numa Casa de nobres tradições intelectuais e cívicas como o Ateneu Comercial do Porto. Uma relação cordial se foi estabelecendo e, pela minha parte, de grande admiração, já não só pelo Intelectual, como pelo Cidadão e pela Individualidade, frontal sempre que indispensável: fosse na FL/UL nos anos 50 e 60; na Biblioteca Nacional, de que foi Director, nos idos de 74 e 75; ou na FCSH/UNL, que ajudou a fundar e que em mais de um momento dirigiu, dos anos 70 aos anos 90; para já não falar de inúmeras entrevistas que foi dando ao longo da sua carreira e que em mais que uma circunstância acabaram por ficar registadas em livro.
Para além de tudo isto, Oliveira Marques acabou por estar presente em praticamente todos os passos do meu percurso académico:
a) Foi membro do júri das minhas provas de doutoramento (1985) e arguente da tese;
b) pertenceu ao júri do meu concurso para professor associado (1989) e foi relator do CV;
c) esteve no júri das minhas provas de agregação (1994) e arguiu o meu currículo;
d) e apenas ponderosas razões de saúde o impediram de integrar, em 1997/ 98, o júri do meu concurso para professor catedrático.
Da admiração de um jovem estudante e depois assistente por um Mestre consagrado se foi evoluindo para a estima recíproca entre dois oficiais do mesmo ofício e da mesma família intelectual e cívica, ainda que pertencendo a gerações diferentes: 17 anos nos separam etariamente. Com toda a lógica colaborei nos dois volumes miscelânicos que em 1982 assinalaram os seus 25 anos de vida universitária; e ajudei a coordenar (com Maria Helena Coelho) o livro que em 2003 marcou a sua jubilação e onde, para além do percurso biográfico, se traçou o perfil do medievista, do paleógrafo, diplomatista e coordenador da edição de fontes documentais, do estudioso da nossa Expansão, das relações luso-alemãs, da Maçonaria, da I República, do autor de obras de síntese, do director de realizações colectivas, do Historiador da Historiografia ou, finalmente, do filatelista e estudioso da História da franquia postal; e de salientar que nesta Obra colaboraram dois Colegas espanhóis e um alemão.
Quando conhecemos e admiramos Alguém há bastante tempo – 32 anos, como é o meu caso para com Oliveira Marques –, poderemos às vezes julgar já saber tudo sobre a Pessoa em causa e sobre os seu modus agendi na vida pessoal, profissional e cívica. Mas às vezes surgem surpresas, como quando alguma fonte até então inédita nos confirma o retrato daquele que admiramos mas com umas cores acentuadamente mais intensas. A que quero referir-me ? O lente de Literatura Latina da FL/UL, antigo Reitor da UL (1979-1983) e antigo leader da CAP, deputado e eurodeputado Doutor Raul Miguel Oliveira Rosado Fernandes publicou há meses um volume que intitulou Memórias de um Rústico Erudito. Viagem à volta de lentes, terras e políticos [1]. Apesar de ideologicamente distante, num sentido acentuadamente conservador, como já veremos, foi – e julgo que continua a ser – Amigo de Oliveira Marques, de quem foi também Colega na FL/UL nas décadas de 50 e de 60 (é alguns anos mais jovem); e refere-se-lhe com muita simpatia:
«Fui colega (…) de Oliveira Marques, discípulo de Kellenbenz, então em Würzburg, e que, como historiador medieval, abriu muitos caminhos para a compreensão da historiografia portuguesa. Fora sempre extremamente dotado, primeiro em Filatelia, imagine-se !; era metódico, com as ideias arrumadas e tinha uma capacidade de análise que, quando longe da paixão ideológica ou corporativo-maçónica [sic], era de uma imparcialidade digna de respeito. Veio a ser vítima das más vontades que se levantaram à sua volta, que lhe espiolharam a vida privada, e que por motivos ditos políticos, o levaram a ter de ir ensinar para Auburn, no Alabama» [fim de citação] [2].
Ora, tal como Oliveira Marques, também Rosado Fernandes, anos depois, em 1968, já doutorado, teve um grave dissabor profissional que lhe ditaria uma interrupção de 4 anos de exercício na FL/UL. No ano em causa, ao regressar de uma estadia de 3 anos como professor visitante numa Universidade norte-americana, nos termos de um protocolo que envolveu a dita Universidade, a UL e a Gulbenkian, e depois de ver a pessoa de quem academicamente dependia – um lente de Filologia Clássica que era ao tempo o único catedrático do Grupo em causa daquela Faculdade – começar a não responder às suas cartas, viu rescindido o contrato como 1.º assistente da ALMA MATER, isto por decisão do Conselho Escolar; a justificação do proponente – o lente em causa – era a prolongada ausência do País de Rosado Fernandes, num Grupo com falta de docentes; e quem propôs tal coisa soube aproveitar uma ausência de Lisboa de Orlando Ribeiro e de Lindley Cintra – que supostamente apoiariam a eventual vítima – e da cumplicidade de alguém que não perdoava a Rosado Fernandes a sua solidariedade com Oliveira Marques em 1964 [3]. Espantosamente, o Reitor da UL – um físico de renome – despachou sem mais, sem ouvir o atingido e esquecendo que a Reitoria tinha responsabilidades no ‘crime’, a estadia nos EUA por 3 anos e não por apenas 1, como inicialmente previsto.
Os absurdos da estória não ficam por aqui: o dito lente classicista reclamava-se de laico, desafecto ao Regime vigente e (pasmai, Senhores !) admirador de Afonso Costa !!!! Sem embargo, e independentemente dos seus méritos intelectuais, esteve sempre com as facções mais conservadoras e retrógradas da Universidade portuguesa. E era uma «fera», no trato com alunos e assistentes. Na década de 40 ensinara na FL/UC, de onde regressou em 1952. Não sei o que por lá se terá passado, mas o que sei é que não mais esta Escola o convidou para júris !...
É claro que Rosado Fernandes teve solidariedades: as esperadas de Lindley Cintra e de Orlando Ribeiro (que numa carta de 1967 se refere ao lente classicista como «o Bola de Unto») e também a de Oliveira Marques: numa carta expedida de Gainesville (Florida), onde então ensinava, este último escreveu, em Março de 1968:
«Dizes-me que tencionas lutar… Não o faças ! Em primeiro lugar, não vale a pena. Sempre que um catedrático se alça contra um assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e lhe retira a sua “graça e mercê”, o assistente está liquidado e não volta, pelo menos até que o catedrático morra ou se reforme. Exemplos entre muitos: Saraiva contra Nemésio, Godinho contra Heleno, eu contra Rau, Irisalva contra Heleno, Morais Barbosa contra Cintra. Coimbra, se te desse qualquer apoio, seria apenas até determinado limite, porque para eles (como para os de Lisboa) acima de tudo está o respeito total, absoluto, pela hierarquia e pelo status quo. Sobre isso nunca nos devemos enganar» [4].
Como argumentação e como segurança de fundamentação esta passagem é de antologia ! E atenção, Sr.as e Srs., quem escreve não é nenhum veterano rabugento, é um jovem universitário de apenas 34 anos, mas já com 11 de experiência profissional e quase 8 decorridos sobre o seu doutoramento.
Oliveira Marques era assim ! Oliveira Marques é assim ! E «que nunca as mãos lhe doam», mormente pela escrita, neste chamar «os bois pelos nomes» quando as circunstâncias o exigem. A admiração extreme dos seus amigos indefectíveis pode passar também pelo conhecimento de tomadas de posição como esta, face aos «Bolas d'Unto» que continuem a existir nas nossas Universidades e na Vida Intelectual portuguesa em geral.
Muito Obrigado !
Lisboa e Biblioteca-Museu República e Resistência, 11 de Dezembro de 2006
Notas:
[2] Op. cit. na n. anterior, p. 87.
[3] Op. cit. nas nn. anteriores, pp. 162-163.
[4] A. H. de Oliveira MARQUES, carta a Raul M. Rosado Fernandes, publ. em Op. cit. nas nn. anteriores, pp. 164-165. «O Bola d'Unto» aposentou-se prematuramente em 1970, por motivos de saúde. Em 1972 a UL abriu concurso para vagas de professor extraordinário de Filologia Clássica. Rosado Fernandes candidatou-se e foi aprovado («…até que o catedrático morra ou se reforme», escrevera Oliveira Marques…). Atingiu a cátedra em Dezembro de 1974. Foi Reitor da UL – o último de nomeação ministerial – de 1979 a 1983. O seu sucessor – o 1.º eleito na UL desde a I República – foi o Doutor José Manuel Gião Toscano Rico (lente de Medicina, Reitor 1983-1986).
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