A CANÇÃO DE COIMBRA NO SÉCULO XIX (1840-1900)
2ª Parte: A Memória e os Sons
III. Elementos para a abordagem da Tocata Tradicional Mondeguina
Por António Manuel Nunes
Nota: Por mais de um ano estiveram parados os trabalhos de edição on line do manuscrito em epígrafe, situação devida à necessidade de completar a recolha sobre instrumentos como o Guitarrinho e a Gaita-de Foles. O resto deveu-se à embirração quase insuperável entre o texto e as exigências do autor. Merecem uma palavra de subido agradecimento o Doutor Nelson Correia Borges, o Dr. Jorge Gomes, o Dr. José Alberto Sardinha, o Dr. Flávio Pinho, o Maestro João Anjo, o Eng. Henrique Oliveira, o construtor Fernando Meireles e o Dr. Artur Ribeiro (Museu Académico). O Sr. Carlos Dias, para quem a Alta mereceria melhor sorte, sabe bem do merecimento em que o tenho.
Nos dias 23, 24, 25 e 28 de Outubro de 1987 ocorreu o “1º Encontro sobre a Alta de Coimbra”, promovido pelo Grupo de Arqueologia e Arte do Centro (GAAC). No decurso deste evento, Nelson Correia Borges apresentou um espectáculo animado pelo Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal. O agrupamento iniciara a sua actividade em Janeiro de 1986, e à data do “1º Encontro sobre a Alta de Coimbra”, procedera à reconstituição das Fogueiras de São João, no Largo do Salvador (Junho de 1986) e no antigo Largo da Feira dos Estudantes (Junho de 1987).
Classificando o folclore de Coimbra como um património cultural digno de redescoberta, divulgação e preservação, o director técnico e artístico do grupo efectuou uma documentada viagem ao tempo dos trajos populares, canções comunitárias estudantis (Quitollis), danças tradicionais das Fogueiras de São João (Ai Gabriel, Bonequinha, Balancé, Dá cá um Beijo), danças e modas antigas (Estalado, Vá Laranja ao Ar, Farrapeira, Folgadinho, Vira de Coimbra), e modas novas surgidas no último quartel do século XIX e alvores do século XX nas Fogueiras do Largo do Romal e do Pátio da Inquisição, acusando influência da zarzulela e da opereta (Jovens Sereias, As Camélias). Ao apresentar os tocadores, Nelson Borges sublinhava:
“Igual preocupação de verdade norteou este grupo na recuperação do som tradicional dos toques de Coimbra, através dos seus instrumentos típicos de corda: bandolins de Coimbra, rabeca, violas toeiras, cavaquinhos de Coimbra, violões e guitarras”[1].
A expressão tocata mondeguina aplica-se ao conjunto de instrumentos musicais que caracterizam e identificam a(s) sonoridade(s) coimbrã(s), mercê dos seus timbres, afinações, configurações anatómicas e toques, seja em prestações solistas, como acontece com a viola toeira, a guitarra toeira de 17 trastos, a requinta da guitarra toeira, a guitarra de Coimbra de 22 trastos de tipo Artur Paredes, o cavaquinho, o guitarrinho, seja em prestações de conjunto.
Instrumentos “Típicos” de Coimbra e outros Instrumentos
Instrumentos portugueses, situáveis nas grandes genealogias de outros instrumentos congéneres portugueses ou europeus, os cordofones mais comuns da tocata tradicional coimbrã possuem marcas distintivas, detectáveis em aspectos subtis, como as anatomias, as afinações, os timbres, os esquemas de dedilhação e o trabalho artesanal de ornamentação. Mas, em muitos aspectos, não deixavam de ser instrumentos musicais localmente adaptados, marcados pelo ferro quente do hibridismo. Assim aconteceu com as variantes regionais da viola de arame, da guitarra, do cavaquinho ou da gaita-de-foles.
A abordagem desta matéria é sem dúvida difícil, dado laborar com base em discursos consolidados há décadas sobre critérios menos do terreno da organologia e da etnomusicologia e mais da identidade, do nacionalismo/regionalismo, repousantes em modelos ideais como o mito da “guitarra” tomado como sinónimo de Fado, o misticismo de um determinado cordofone como ícone identitário absoluto de uma determinada região, ou até o mito da chamada “guitarra portuguesa”.
À semelhança da falsa querela da “casa portuguesa” – que nunca existiu enquanto realidade etnográfica unitária -, o levantamento organológico regional raramente confirma modelos unitários para todo o território português. A comprová-lo, instrumentos como o cavaquinho, a gaita-de-foles, as violas de arame e as guitarras, apontam para o hibridismo regional, vivido à margem de qualquer utopia conducente a um único modelo.
A relativa estabilização regional de um determinado modelo organológico não significava um confinamento pitoresco ossificado. Em fase anterior à emergência do movimento Romântico é praticamente impossível rastrear uma ligação directa entre “instrumentos musicais típicos” e uma determinada região. Atente-se nas figurinhas setecentistas que exibem executantes de instrumentos populares nos presépios portugueses barrocos. O que caracteriza a produção cerâmica de imaginários como J. Machado de Castro, José Joaquim de Barros, António Ferreira e outros discípulos, nos presépios da Basílica da Estrela, Marqueses de Belas, Sé de Lisboa, Necessidades, Igreja de São José, Madre de Deus, Patriarcado de Lisboa e Palácio de Queluz, é uma acentuado hibridismo sem fronteiras delimitadas que, apontando vagamente para Belém (Palestina), ocidentaliza grande parte dos cenários e figurantes[2].
A presepística barroca não pode ser erroneamente tomada como exaltação da cultura “pitoresca” popular. Era apenas uma forma de deleite do clero e da nobreza, não raro transpondo para o panorama cortesão português modelos bebidos no presépio napolitano. Os tocadores de pandeiro, castanholas, gaita-de-foles, sanfona, viola, tambor, não apontam necessariamente para uma territorialização musical definida, embora seja visível o quanto os barristas se inspiraram em desfiles de romeiros, peditórios de cegos de sanfona e arraiais populares (ex: Pesépio da Igreja de São José, Lisboa).
O presépio barroco não representava ainda a aceitação do povo e dos seus costumes no universo mental do clero e da nobreza, cujos divertimentos passavam por instrumentos e danças palacianas. Na dança aristocrática os corpos não se tocavam, evoluindo em vénias, arquinhos e mesuras de coreografia repousada. Antes da era das grandes revoluções políticas e do advento do Romantismo não existia a noção de “objecto pitoresco” preservado e exposto numa mesa de sala, num átrio, café ou taberna. As gentes do povo usavam os objectos enquanto estes revelassem utilidade. Em perdendo utilidade eram queimados ou despejados em monturos. Não passava pela cabeça dos camponeses que o seu desconfortável casebre de pedra nua e cobertura de colmo tivesse valor, que a grosseira saia de baeta interessasse ao museu/pintor/fotógrafo, que o arado das lavras merecesse ser guardado num museu, ou que a canga dos bois pudesse ser dependurada na parede de um café ou taberna.
Enquanto as elites letradas urbanas não sacralizaram os objectos e artefactos do quotidiano popular agro-piscatório, os camponeses apenas neles viam desconforto físico, violentas tarefas garantísticas da economia de subsistência, analfabetismo e temor reverencial perante as autoridades. Os vínculos que sujeitavam o camponês aos grandes senhores do clero e da nobreza tinham deixado de existir, mas as terríveis condições de vida diária e os artefactos da cultura material que constituíam os cenários da existência campesina não cessavam de lembrar os velhos tempos. Conservador em termos de família e de religião, em podendo, o camponês abandonava a caroça de palha, os coturnos de pau, a saia de estamanha e a tosca casa de pedra solta onde sibilava a ventania. Todo o luxo do camponês endinheirado ou do torna-emigrante bem posto na vida consistia em construir uma nova casa de aparelho caiado, cozinha com chaminé e telhados cerâmicos.
Sem preocupações de exaustividade, atente-se nos seguintes exemplos elucidadivos, que por contraditarem substancialmente o “essencialismo identitário” popular, carecem de reflexão:
Classificando o folclore de Coimbra como um património cultural digno de redescoberta, divulgação e preservação, o director técnico e artístico do grupo efectuou uma documentada viagem ao tempo dos trajos populares, canções comunitárias estudantis (Quitollis), danças tradicionais das Fogueiras de São João (Ai Gabriel, Bonequinha, Balancé, Dá cá um Beijo), danças e modas antigas (Estalado, Vá Laranja ao Ar, Farrapeira, Folgadinho, Vira de Coimbra), e modas novas surgidas no último quartel do século XIX e alvores do século XX nas Fogueiras do Largo do Romal e do Pátio da Inquisição, acusando influência da zarzulela e da opereta (Jovens Sereias, As Camélias). Ao apresentar os tocadores, Nelson Borges sublinhava:
“Igual preocupação de verdade norteou este grupo na recuperação do som tradicional dos toques de Coimbra, através dos seus instrumentos típicos de corda: bandolins de Coimbra, rabeca, violas toeiras, cavaquinhos de Coimbra, violões e guitarras”[1].
A expressão tocata mondeguina aplica-se ao conjunto de instrumentos musicais que caracterizam e identificam a(s) sonoridade(s) coimbrã(s), mercê dos seus timbres, afinações, configurações anatómicas e toques, seja em prestações solistas, como acontece com a viola toeira, a guitarra toeira de 17 trastos, a requinta da guitarra toeira, a guitarra de Coimbra de 22 trastos de tipo Artur Paredes, o cavaquinho, o guitarrinho, seja em prestações de conjunto.
Instrumentos “Típicos” de Coimbra e outros Instrumentos
Instrumentos portugueses, situáveis nas grandes genealogias de outros instrumentos congéneres portugueses ou europeus, os cordofones mais comuns da tocata tradicional coimbrã possuem marcas distintivas, detectáveis em aspectos subtis, como as anatomias, as afinações, os timbres, os esquemas de dedilhação e o trabalho artesanal de ornamentação. Mas, em muitos aspectos, não deixavam de ser instrumentos musicais localmente adaptados, marcados pelo ferro quente do hibridismo. Assim aconteceu com as variantes regionais da viola de arame, da guitarra, do cavaquinho ou da gaita-de-foles.
A abordagem desta matéria é sem dúvida difícil, dado laborar com base em discursos consolidados há décadas sobre critérios menos do terreno da organologia e da etnomusicologia e mais da identidade, do nacionalismo/regionalismo, repousantes em modelos ideais como o mito da “guitarra” tomado como sinónimo de Fado, o misticismo de um determinado cordofone como ícone identitário absoluto de uma determinada região, ou até o mito da chamada “guitarra portuguesa”.
À semelhança da falsa querela da “casa portuguesa” – que nunca existiu enquanto realidade etnográfica unitária -, o levantamento organológico regional raramente confirma modelos unitários para todo o território português. A comprová-lo, instrumentos como o cavaquinho, a gaita-de-foles, as violas de arame e as guitarras, apontam para o hibridismo regional, vivido à margem de qualquer utopia conducente a um único modelo.
A relativa estabilização regional de um determinado modelo organológico não significava um confinamento pitoresco ossificado. Em fase anterior à emergência do movimento Romântico é praticamente impossível rastrear uma ligação directa entre “instrumentos musicais típicos” e uma determinada região. Atente-se nas figurinhas setecentistas que exibem executantes de instrumentos populares nos presépios portugueses barrocos. O que caracteriza a produção cerâmica de imaginários como J. Machado de Castro, José Joaquim de Barros, António Ferreira e outros discípulos, nos presépios da Basílica da Estrela, Marqueses de Belas, Sé de Lisboa, Necessidades, Igreja de São José, Madre de Deus, Patriarcado de Lisboa e Palácio de Queluz, é uma acentuado hibridismo sem fronteiras delimitadas que, apontando vagamente para Belém (Palestina), ocidentaliza grande parte dos cenários e figurantes[2].
A presepística barroca não pode ser erroneamente tomada como exaltação da cultura “pitoresca” popular. Era apenas uma forma de deleite do clero e da nobreza, não raro transpondo para o panorama cortesão português modelos bebidos no presépio napolitano. Os tocadores de pandeiro, castanholas, gaita-de-foles, sanfona, viola, tambor, não apontam necessariamente para uma territorialização musical definida, embora seja visível o quanto os barristas se inspiraram em desfiles de romeiros, peditórios de cegos de sanfona e arraiais populares (ex: Pesépio da Igreja de São José, Lisboa).
O presépio barroco não representava ainda a aceitação do povo e dos seus costumes no universo mental do clero e da nobreza, cujos divertimentos passavam por instrumentos e danças palacianas. Na dança aristocrática os corpos não se tocavam, evoluindo em vénias, arquinhos e mesuras de coreografia repousada. Antes da era das grandes revoluções políticas e do advento do Romantismo não existia a noção de “objecto pitoresco” preservado e exposto numa mesa de sala, num átrio, café ou taberna. As gentes do povo usavam os objectos enquanto estes revelassem utilidade. Em perdendo utilidade eram queimados ou despejados em monturos. Não passava pela cabeça dos camponeses que o seu desconfortável casebre de pedra nua e cobertura de colmo tivesse valor, que a grosseira saia de baeta interessasse ao museu/pintor/fotógrafo, que o arado das lavras merecesse ser guardado num museu, ou que a canga dos bois pudesse ser dependurada na parede de um café ou taberna.
Enquanto as elites letradas urbanas não sacralizaram os objectos e artefactos do quotidiano popular agro-piscatório, os camponeses apenas neles viam desconforto físico, violentas tarefas garantísticas da economia de subsistência, analfabetismo e temor reverencial perante as autoridades. Os vínculos que sujeitavam o camponês aos grandes senhores do clero e da nobreza tinham deixado de existir, mas as terríveis condições de vida diária e os artefactos da cultura material que constituíam os cenários da existência campesina não cessavam de lembrar os velhos tempos. Conservador em termos de família e de religião, em podendo, o camponês abandonava a caroça de palha, os coturnos de pau, a saia de estamanha e a tosca casa de pedra solta onde sibilava a ventania. Todo o luxo do camponês endinheirado ou do torna-emigrante bem posto na vida consistia em construir uma nova casa de aparelho caiado, cozinha com chaminé e telhados cerâmicos.
Sem preocupações de exaustividade, atente-se nos seguintes exemplos elucidadivos, que por contraditarem substancialmente o “essencialismo identitário” popular, carecem de reflexão:
-a comprovada implantação das violas de arame nos tecidos regionais (ressalvando o caso dos Açores onde a Viola da Terra conseguiu manter-se), não evitou a sua avassaladora substituição pelo acordeon em quase todo o território continental;
-os trajos populares de noivos, nos quais não se enxerga “o tradicional vestido branco” antes de 1900, passaram a seguir a moda e adpotaram progressivamente desde o início do século XX o vestido branco como sinónimo do trajo de noiva;
-a Árvore de Natal, oriunda da Alemanha, introduzida em Portugal pelo Rei D. Fernando, consorte de D. Maria II, poucas décadas volvidas passou a integrar-se na categoria de “tradição de Natal”;
-o Dia de S. Valentim, ou dos Namorados, sem qualquer expressão na cultura portuguesa até à década de 1980, graças às campanhas comerciais fomentadas na década de 1990 transformou-se rapidamente em “tradição”;
-o “Dia das Bruxas”, desconhecido em Portugal até à década de 1990, passou à categoria de “tradição” devido aos projectos extracurriculares concretizados nas escolas pelas educadoras de infância e docentes de Inglês;
-o apregoado apego à arquitectura popular e à falsa “casa portuguesa” nunca conseguiu evitar que os populares endinheirados nos circuitos da emigração optassem pela construção de “casas à brasileiro”, “chalets de telhados suíços”, e vivendas à americana (Açores). Na visão do camponês emigrado, o casinhoto de pedra nua, a cobertura de colmo, o chão de terra batida, a negra cozinha sem chaminé, as lojas do gado, eram símbolos de inferiorização social. Ao regressar à terra, o emigrante fazia questão de mostrar que melhorara as suas condições económicas. O não respeito pela continuidade de elementos arquitectónicos “típicos” era tão evidente que na década de 1980 quase todos os municípios optaram pela imposição de legislação restritiva, impondo nas aldeias e núcleos históricos janelas de guilhotina, empenas triangulares, telhados cerâmicos (pese embora o facto de em muitas localidades os tectos serem fechados com palha, lajes de granito e placas de lousa, sem olvidar os litorâneos “palheiros” de ripas de madeira);
-o “tipicismo” das festas do São João do Porto não impediu que os alhos porros começassem a ser substituídos na década de 1960 pelos multicolores martelinhos de plástico;
-festejos açorianos de dimensão tradicional e conservadora como os Impérios do Divino Espírito Santo, onde os imperadores eleitos ou sorteados eram coroados nas igrejas pelos párocos, aceitaram de boamente na década de 1970 a invenção/incorporação das californianas Rainhas;
-em muitas igrejas portuguesas, o apreço comunitário pelo edifício e a devoção a determinados santos não impediu que párocos, benfeitores e comissões fabriqueiras transformassem a traça original dos templos ou substituíssem os santos antigos por novas e vistosas imagens;
-apesar do seu evidente conservadorismo estético, a Canção de Coimbra não deixou de aceitar a incorporação da nova Guitarra (1945-1954) e da viola de cordas de nylon (1958-1969);
-num género musical e artístico como o Fado, produzido em função do grande espectáculo e dos ditames da indústria cultural para as massas, verifica-se desde finais da década de 1960 um crescente abandono da Guitarra do Fado, ou do tipo lisboeta, e respectiva substituição pela Guitarra de Coimbra se tal processo suscite a emergência de movimentos de salvaguarda;
-nos anos que se seguiram a 1974 os portugueses trocaram os natalícios São Nicolau e Menino Jesus pela figura norte-americana do Pai Natal, não havendo notícia de que a nova “tradição” tenha motivado fricções sócio-culturais.
Só após a abolição das ordens sociais de Antigo Regime foi possível “descobrir” e “valorizar” a cultura popular, movimento que não nasceu no povo mas nas elites citadinas letradas. A descoberta do povo passou a atribuir valências de fruição cultural e funções de sustentação da identidade nacional a objectos etnográficos, costumes folclóricos e instrumentos que anteriormente eram considerados grosseiros pelos seus próprios detentores.
Nas danças populares os pares cingiam-se corporalmente, pulavam e rodopiavam, incorporavam graçolas de mandadores, gritos, provocações cantadas ao desafio, palmas e estalidos de dedos, em manifesto confronto com as antigas coreografias aristocráticas da giga, pavana, galharda e minueto[3]. Nos instrumentos populares predominavam os encordoamentos metálicos, de pendor mais rústico, em contraste com os encordoamentos doces e aveludados das palacianas cordas de tripa.
A crescente proclamação da “genuidade” e “autenticidade” do folclore regionalmente confinado implicou, na voz dos alvitristas, a invenção de um discurso purista, a folclorização. Porém, a folclorização, cujo movimento viveu um crescendo entre a geração neogarretiana de 1890, a 1ª República e o Estado Novo[4], não evitou a adopção de coreografias de “fora da terra” como a valsa, a polca, a mazurca (dita também “valsa de dois passos” ou “mazuca”), a contradança (“contry dance”), a escocesa (dita “chotiça”)[5] e o pas-de-quatre (dito “passecate”).
O facto de alguns instrumentos terem conhecido forte implantação regional não estancou o seu abandono e até desaparecimento. No caso dos Açores, o apreço pela Viola da Terra não evitou a substituição da antiga pá de madeira por cabeças de guitarra de Fado nas décadas de 1940 a 1960 nos violeiros activos nas ilhas Graciosa, Pico e Faial. No município de Viana do Castelo, os acordeons quase fizeram desaparecer a Viola Braguesa e o cavaquinho. Na Beira Litoral, a memória da Viola Toeira esfumou-se, engolida pelos acordeons e grupos à base de “jazzes”, os últimos campeantes a partir da Primeira Guerra Mundial.
Muitas vezes eram os próprios tocadores que tomavam a iniciativa e mandar serrar a pá antiga das violas, apresentando como argumento as vantagens de afinação trazidas pela chapa de leque. Na cidade de Coimbra, onde a Viola Toeira era um dos instrumentos musicais mais apreciados, verificou-se na segunda metade do século XIX a tranquila transição para a guitarra localmente herdada da Guitarra Inglesa e de modelos entretanto estabilizados em Lisboa e no Porto.
Na cidade do Porto, a veemente afirmação da vernaculidade cultural local não impediu a partilha da Viola Braguesa (dita chuleira e ramaldeira) com o Minho, nem o abandono da Guitarra do Porto desde as décadas de 1920-1930 a favor das guitarras de Lisboa e de Coimbra.
No tocante às gaitas-de-foles, o amor dos gaiteiros às suas raízes não obstou à troca dos foles de pele de cabrito pelos de borracha, nem à substituição de algumas peças de fabrico local por outras vindas da Galiza. No resto do país, cavaquinhos e violas de arame como que foram engolidos pelo acordeon.
Ao contrário do que se possa pensar, muitos dos instrumentos de violaria regional eram de fabrico quase amador e rudimentar, com marceneiros a imitarem modelos de luxo. Tudo isto se traduzia no uso de madeiras baratas, ilhargas mal coladas, escalas empenadas, pontos demasiado rasos sobre o braço, desagradável resvalamento de cordas, sonoridade pouco definida e tendência para a desafinação. Sempre que um bom tocador podia adquir um instrumento de melhor fabrico, não deixava de o fazer. O deitar a viola de arame na cama, polindo-a e tangendo-o, com tais carinhos que faziam irar enciumadas noivas e esposas, não era impeditivo de aceitação de novidades[6].
O movimento de salvaguarda de instrumentos tradicionais é muito recente em Portugal. Pode dizer-se que começou na Academia de Coimbra, em 1972, com a abertura de uma escola de ensino de Guitarra de Coimbra, em conjuntura revlucionária de abandono da CC, tendo alastrado já depois de 1974 aos Açores (Viola da Terra nos Conservatórios de Angra e Ponta Delgada a partir de 1982) e ao Alentejo (resgate da Viola Campaniça, desde a década de 1980). A obra de Ernesto Veiga de Oliveira sobre os instrumentais tradicionais portugueses, editada em 1966, facultou a primeira síntese de conjunto, com base em recolhas de campo, fotografias e pesquisa de arquivo[7]. Na sua esteira surgiriam os primeiros movimentos individuais e colectivos de reconstituição de instrumentos tradicionais, eventualmente apoiados em trabalhos fonográficos: Pedro Caldeira Cabral, Júlio Pereira, Domingos Machado, Fernando Meireles, José Lúcio.
Sem prejuízo de outras classificações, a abordagem dos instrumentos musicais que enformam a tocata tradicional coimbrã resulta satisfatoriamente tipificada mediante recurso ao esquema adoptado por Ernesto Veiga de Oliveira em “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa, FCG, 1964, págs. 9-10: forte predomínio dos cordofones; presença rarefeita dos aerofones (flauta travessa); ferrinhos e pandeiros nas Fogueiras de São João; ausência ostensiva de concertinas e acordeons no perímetro da Alta Salatina, embora haja notícia do uso do harmónio na Romaria do Espírito Santo pela década de 1930; não emprego de tambores nas danças e cantares tradicionais, sendo as percursões efectuadas em pandeiros (Fogueiras), ou no tampo das violas toeiras e guitarras[8]. Esta última característica, comum aos tocadores populares açorianos, ainda se pode escutar em guitarradas do período 1890-1930, herdadas de Antero da Veiga, Artur Paredes e Afonso de Sousa.
Viola Toeira
A utilização da viola de arame na cidade de Coimbra é de remota antiguidade. No “Regimento da Procissão do Corpo de Deus”, exarado nos livros camarários em 1517, preceitua-se que um grupo de quatro anjos “irão tangendo viollas”[9].
Se há um instrumento musical que carateriza a sonoridade coimbrã entre o ocaso do século XVIII e o crepúsculo do século XIX, esse cordofone é a Viola Toeira, outrora largamente difundida nas comunidades urbanas e rurais da Beira Litoral. A documentação escalpelizada para o longo período balizado entre o século XVI e o término do século XIX não regista a expressão “viola toeira”. As denominações predominantes nos documentos escritos e quadras populares, falam de “viola”, por vezes de “viola de arame”, e mais frequentemente de “banza”[10].
O vocábulo “viola” identificava imediatamente, e sem qualquer equívoco, o cordofone que na primeira metade do século XX o cronista coimbrão Octaviano de Sá rotulou de “viola toeira”[11]. Todavia, a expressão “viola toeira” não foi inventada por Octaviano de Sá, conimbógrafo que a tomou de empréstimo à linguagem técnica utilizada nas oficinas de violeiros da cidade. À crónica de “O Primeiro de Janeiro”, assinada por Octaviano de Sá, foi o musicólogo Armando Leça (1893-1977) colher a expressão logo consagrada no livro “Música Popular Portuguesa”[12], donde transitou com grande sucesso para Ernesto Veiga de Oliveira (“Instrumentos Populares Portugueses”, 1966).
Viola Toeira era uma denominação restrita de violeiros/construtores, que não de tocadores, cantadeiras e versejadores. Tem-se relacionado esta nomenclatura com a designação da corda de sol ou corda toeira da viola regional coimbrã (Armando Simões, “A guitarra”, 1974), subalternizando-se o rigor dos acordes, ou a cor dos sons, produzido pelo número de cordas do instrumento.
Na boca das cantadeiras populares e nas vozes académicas circulavam quadras, comuns a outros espaços portugueses, alusivas à “banza” ou viola de arame: “A viola sem a prima/É como a filha sem pai/Cada corda seu suspiro/Cada suspiro seu ai”; “A viola sem a prima/A prima sem a toeira/São como a mulher casada/Que pensa que está solteira”; “Toca-me nessa viola/Repenica-me esses dedos/Se faltar alguma corda/Aqui tens os meus cabelos”.
O cordofone popular a que no século XX se passou a chamar “viola” era anteriormente designado nas comunidades populares por “violão” e mais institucionalmente por “viola francesa”, assim se procedendo à distinção imediata entre a Viola Toeira de cordas dobradas/triplicadas e violão de seis cordas singelas.
A Viola Toeira conheceu os seus dias de glória em mãos de mestres de alto coturno como Manuel da Paixão Ribeiro (fins do século XVIII e inícios do século XIX), e José Dória (entre as décadas de 1840-1860). Foi o instrumento basilar utilizado nas serenatas e pândegas académicas, romarias do Espírito Santo (Santo António dos Olivais), Santo Amaro (Lages), Senhor da Serra (Semide), São João da Figueira da Foz, Nossa Senhora da Encarnação (Buarcos), Santa Comba (Quinta dos Melros), arraiais de São João, São Martinho do Bispo, Rainha Santa Isabel, serenatas futricas, visitação de Presépios, Espera dos Reis Magos e piqueniques estivais de beira rio. Instrumento nobre, instrumento plebeu, a toeira marcou presença nos salões, teatros, serenatas, romarias e danças. Nela se interpretaram os mais rebuscados clássicos e as mais singelas melodias brotadas do engenho popular.
As versões de fabrico mais rústico e despojado coexistiram com exemplares de luxo, remanescentes em exemplares do Museu Nacional Machado de Castro (oficina dos Brunos) e do Museu da Música (Lisboa, Alto dos Moinhos, exemplares de José Bruno e António Augusto dos Santos).
No tocante ao fabrico, estudo e execução da toeira, saliente-se a publicação do método de Manuel da Paixão Ribeiro no ano de 1789, onde o cordofone é associado a um repertório de salão fidalgo e burguês (modinhas e minuetos), e o seu fabrico na oficina dos irmãos Brunos, ao Paço do Conde, nas décadas de 1850 e 1860.
É relativamente consensual entre os investigadores que a Viola Toeira atingiu o seu derradeiro pico de glória nos anos de 1840-1860, graças ao virtuosismo de José Dória e às extraordinárias técnicas de fabrico dos Brunos. Os derradeiros continuadores credíveis desta arte local foram António Augusto dos Santos e Raul Simões. Após longo interregno seria esta arte superiormente continuada por Fernando Meireles.
A partir da década de 1870, a toeira persiste nos meios populares, mas perde o favor dos instrumentistas académicos. Por 1900 quase não se via nas mãos dos tocadores populares convidados a animar os ranchos de São João, a fazermos fé no lamento do articulista de “O Tribuno Popular”, edição de 21 de Junho de 1902. O instrumento continuava, no entanto, a vender-se fartamente nos povoados rurais do concelho de Coimbra e nos municípios circunvizinhos. Tanto podia ser comprado por gentes que se deslocavam ocasionalmente a Coimbra, como levado pelos próprios violeiros conimbricenses que percorriam as feiras da região com carroças. Este processo de fabrico/vendas declinou a partir dos finais da Primeira Guerra Mundial, devido à crise económica e à proliferação de acordeons e de jazes nos meios rurais.
Um dos últimos representantes dos mestres de toeira foi o violeiro e executante Raul Simões. Em dois registos, efectuados para a Alvorada antes de 1962 (Estalado e Vira de Coimbra), Raul Simões acompanha a cantadeira Estela Abrantes, revelando notável mestria na execução dos rasgados, alternados com “pancadas” de tampo. Raul Simões, além de construtor de violas toeiras, era mestre na arte dos rasgados, ponteios e “pancadas”. Relata-nos quem frequentou a sua oficina ao bairro de Santana, pela década de 1960, que nas “pancadas” chegava a utilizar “unhas” postiças de casca de noz, devidamente preparadas e aplicadas na polpa do polegar. Conversando com Raul Simões, Ernesto Veiga de Oliveira anotou um curioso apontamento no qual o construtor e executante faz as seguintes demonstrações:
-afinação da toeira por ouvido, a partir da corda de Sol;
-confirmação do esquema clássico de afinação Mi, Si, Sol, Ré, Lá. Para evitar a lassidão das cordas, nomeadamente o Si, Raul Simões opta por subir meio tom a todas as ordens (Mi=Fá, Si=Dó, Sol=Sol#, Ré=Mib ou Ré#, Lá=Sib ou Lá#). Raul Simões exemplifica as suas informações com o Estalado (Malhão) em Ré Maior, e com um apontamento do Vira de Coimbra Valseado em ternário composto;
-explica que as toeiras de “escala traçada” tinham melhor sonoridade. A solução consistia em contornar o problema resultante do desgaste dos pontos de latão amarelo alteando ligeiramente os trastos sobre o braço plano e no prolongamento dos pontos, ficando 10 extra-caixa de ressonância e 4 entre o rebordo da caixa e a boca;
-utilização de um toque misto, combinando o dedilhado que erradamente se pretende ser oriundo da guitarra (polegar+indicador), o ponteio (polegar), o rasgado (polegar no toque ascendente, indicador/médio/anelar e mínimo no toque descendente) e as pancadas. O toque mais vulgar era o rasgado singelo, à base de polegar/indicador. Os chamados “mestres de conta” (tocadores dignos de fama pública) executavam frequentemente o rasgado dobrado, abrindo a mão direita em leque nos toques descendentes e assim sublinhando a mudança dos compassos. No toque misto, era possível articular trechos de ponteio de grande efeito, com o polegar, acordes rasgados e desenho melódico nas cordas finas de Ré e Si, entre o 5º e o 10º pontos.
A boca oval deste cordofone estava adaptada às percussões habitualmente desferidas nos rebordos superior e inferior. As violas mais antigas, de que não há exemplares, teriam bocas redondas, cobertas com rosáceas nos instrumentos de luxo. Em abono desta hipótese, vale a pena lembrar que o escultor conimbricense Machado de Castro representou as violas populares de arame com boca redonda nos presépios da sua fábrica. A evolução para a boca oval, algures na passagem do século XVIII (barroco final) para o Romantismo, será resultado não de um capricho de violeiro mas de uma necessidade prática de ajustar o instrumento à música de rua.
A ausência da corda de Mi grave supria-se premindo o 2º ponto da ordem de Ré. O Sol grave obtinha-se baixando um tom à corda de Lá, expediente que se aplicava frequentemente. Determinadas peças exigiam a passagem do Mi a Ré, conforme se veio a convencionar entre os tocadores de Viola da Terra da Ilha de São Miguel e de Viola Beiroa (=Bandurra). Sendo embora um cordofone delicado, os tocadores do rasgado costumavam zurzir a toeira com golpes muito vigorosos, separando bem os acordes de modo a evitar a sensação auditiva de “empastelamento”.
Quanto ao aspecto anatómico, a toeira é uma viola de arame grácil e leve, com a caixa de ressonância mais pequena do que as suas irmãs braguesa, amarantina, campaniça, beiroa e da terra. O corpo da toeira lembra vagamente um oito. O tampo superior, via de regra ornado com belos embutidos, apresenta uma boca de formato ovalado. O braço de madeira, de superfície plana, é relativamente curto e seccionado em dez trastos extra-caixa, rematando em pá-lira de madeira lindamente esculpida, onde encaixam seis cravelhas de cada lado. A toeira arma com cinco ordens, sendo as três primeiras duplas, e as duas últimas triplas (12 cordas de arame). As cinco ordens que presidem ao encordoamento da toeira têm as seguintes designações: primas, segundas, terceiras ou toeiras, contras ou requintas, baixos ou cimeiras. As ordens triplas incluem bordões.
No tocante às dimensões convencionais, assinalemos:
-comprimento: 86 cms
-comprimento da caixa: 39,5 cms
-escala: 23,5 cms
-trastos: 10
-boca oval: 8x4,5 cms
-largura do bojo superior: 20 cms
-largura do bojo inferior: 26 cms
-largura da cinta: 14,5 cms
-ilharga junto ao cepo: 7,5 cms
-ilharga junto ao atadilho: 9,3 cms
O mais conhecido sistema de afinação desta viola continua a ser o mesmo indicado por Manuel da Paixão Ribeiro em 1789, começando do agudo para o grave: Mi (primas), Si (segundas), Sol (toeiras), Ré (requintas), Lá (baixos). A audição das gravações de Raul Simões, no Vira de Coimbra e no Estalado, confrontada com fotografias do mestre, indicia que a afinação “Paixão Ribeiro” nem sempre permite tirar o melhor rendimento das peças populares, pelo que os tocadores do povo lançariam mãos de outros dispositivos: alteamento dos tons naturais, evitando que a viola ficasse “choca”; passagem das primas a Ré em números que exigiam dos tocadores outros recursos[13].
O emprego de cordas de latão amarelo confere à toeira uma sonoridade arcaica. Nos exemplares mais singelos, as cordas toeiras eram de latão amarelo, bem como as duas cordas finas dos baixos. O cravelhame de madeira (“carrapetas”) potencia a desafinação frequente do instrumento, podendo ser apontado como um dos motivos que mais pesou na substituição esmagadora da toeira pela guitarra no meio académico oitocentista.
Sobre o sistema de encordoamento e afinação da viola de arame utilizada na cidade de Coimbra se registaram instruções de carácter metodológico, advindas de mestres com formação musical. Estas instruções, mais ou menos eruditas, são comparáveis às regras de gramática, deixando na sombra eventuais dedilhos e afinações de rua.
O mais antigo é o clássico de Manuel da Paixão Ribeiro, “Nova arte de viola, Coimbra, Na Real Imprensa da Universidade, 1789. Comporta um desenho com os nomes de cada nota na escala, esquemas relativos à formação de acordes e repertório à base de minuetos e modinhas. Uma dessas modinhas é da autoria do lente de Música da UC, instrumentista e compositor José Maurício.
O segundo, encontra-se assinado com as iniciais S. M. M. P., “Methodo pratico de conhecer e formar os tons, ou acordes na viola”, Coimbra, Na Real Imprensa da Universidade, 1826. Contém 20 páginas de instrucções, método de afinação e dedilhação e tablatura com letras.
Neste “método” de 1826, o autor ensina a afinar a viola pelo antigo sistema de ouvido:
-afinar uma corda toeira pelo tom de Sol
-afinar a outra corda toeira em uníssono com a primeira (Sol)
-pisar as toeiras no 3º ponto para achar o tom dos baixos
-achado o tom dos baixos, o bordão deve ficar uma oitava abaixo do tom
-pisar os baixos no segundo ponto para obter o tom das segundas soltas
-achado o tom das segundas, pisar as mesmas no terceiro ponto e teremos o tom das requintas
-pisando as requintas no segundo ponto obtém-se o tom das primas
Em 1964, Ernesto Veiga de Oliveira dava a toeira por quase extinta, observação comprovada aquando da morte de Raul Simões pela década de 1970. Nos finais dos anos de 1970 a Câmara Municipal de Coimbra encetou acções no sentido de revitalizar a Viola Toeira. Os resultados foram desencorajadores, num ciclo de aposta forte na reabilitação da Guitarra de Coimbra e da CC (Escola Municipal do Chiado, 1978-1990).
O formador de Guitarra de Coimbra Jorge Jomes tentou sensibilizar os frequentadores da Escola do Chiado (1978-1990) para o desaparecimento da toeira. Na década de 1980, caberia ao jovem construtor Fernando Meireles reabilitar a construção da Viola Toeira pelos modelos da oficina de violaria dos irmãos Brunos. A casa de músicas Olímpio Medina tinha e vendia esporadicamente “toeiras” de origem duvidosa quanto à fiabilidade do produto. Em termos de grupos urbanos ligados à prática da música popular, a viola de arame estava na moda, mas quase todas as formações optavam por utilizar a braguesa. Quando se perguntava ao director de um grupo folclórico da Beira Litoral se tinha Viola Toeira na tocata, a resposta era invariavelmente “não sei do que está a falar”, ou então “temos uma”, quando na realidade a viola de arame que se via era uma braguesa.
Muito lentamente, fruto da acção de directores e ensaiadores de grupos folclóricos mais sensíveis ao risco de extinção de um cordofone tão emblemático da Beira Litoral, a toeira começou a reaparecer no Grupo Típico de Ançã (Cantanhede), Grupo Etnográfico do Lorvão (Penacova), Grupo Folclórico de Souselas (Coimbra), Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal (anos de 1986 a 1990), GEDEPA (Mealhada, 2006) e pela mão de Jorge Gomes no Grupo Folclórico de Coimbra (2005 e ss.).
Quanto a projectos sonoros envolvendo a toeira, são do nosso conhecimento:
-José Lúcio Ribeiro de Almeida, “Cordofones Portugueses”, Porto, Areal Editores, 2000, um manual escolar ilustrado para apoio aos alunos de Educação Musical do 5º e 6º anos do 2º Ciclo do Ensino Básico, acrescido de fotografias, textos, tablaturas, e de um corajoso cd de exemplificação. A faixa nº 3 é inteiramente dedicada à Viola Toeira. Este estudioso mantém na internet um site muito completo com informações didácticas sobre a viola toeira: http://www.jose-lucio.com/);
-alusões no site At-Tambour.com, onde é dada por extinta (http://www.attambur.com/);
-menção no site http://www.cantodaterra.net, com tablaturas dos acordes;
-CD “Toeira Guitar”, LBM 0104, ano de 2004, com 17 faixas sonoras. Trabalho muito interessante e de pendor experimentalista, realizado por Luís Baptis, músico com formação musical nos territórios do Jazz. O cordofone utilizado não nos parece fiável do ponto de vista das dimensões nem da configuração anatómica. Tendo da toeira o “parecer”, lembra uma viola braguesa onde um carpinteiro de serração industrial rasgou uma boca oval. (Cf. http://www.musiclbm.com/en/ e http://www.luisbaptis.com/).
Cavaquinho[14]
O cavaquinho utilizado em Coimbra, a que os estudantes chamavam machinho no século XVIII, é um cordofone de caixa pequena e esguia, e braço plano de 12 trastos, rematado por pá-lira de 4 cravelhas. De acordo com os exemplares fabricados na segunda metade do século XIX pelo violeiro António dos Santos, com oficina na Rua Direita, o cavaquinho media 50 cms de comprimento, 9,5 cms de cabeça, 17 cms de braço, 23,5 cms de caixa, tampo superior com 10,5 cms, tampo inferior com 13,5 cms, cinta de 7,8 cms, altura da caixa com 3 cms em cima e 3,4 cms em baixo. Quanto ao sistema de afinação, as quatro cordas do cavaquinho acompanhavam a Viola Toeira, afinando do grave para o agudo (Ré, Sol, Mi, Si)[15].
-CD “Toeira Guitar”, LBM 0104, ano de 2004, com 17 faixas sonoras. Trabalho muito interessante e de pendor experimentalista, realizado por Luís Baptis, músico com formação musical nos territórios do Jazz. O cordofone utilizado não nos parece fiável do ponto de vista das dimensões nem da configuração anatómica. Tendo da toeira o “parecer”, lembra uma viola braguesa onde um carpinteiro de serração industrial rasgou uma boca oval. (Cf. http://www.musiclbm.com/en/ e http://www.luisbaptis.com/).
Cavaquinho[14]
O cavaquinho utilizado em Coimbra, a que os estudantes chamavam machinho no século XVIII, é um cordofone de caixa pequena e esguia, e braço plano de 12 trastos, rematado por pá-lira de 4 cravelhas. De acordo com os exemplares fabricados na segunda metade do século XIX pelo violeiro António dos Santos, com oficina na Rua Direita, o cavaquinho media 50 cms de comprimento, 9,5 cms de cabeça, 17 cms de braço, 23,5 cms de caixa, tampo superior com 10,5 cms, tampo inferior com 13,5 cms, cinta de 7,8 cms, altura da caixa com 3 cms em cima e 3,4 cms em baixo. Quanto ao sistema de afinação, as quatro cordas do cavaquinho acompanhavam a Viola Toeira, afinando do grave para o agudo (Ré, Sol, Mi, Si)[15].
Guitarrinho
Uma variante do cavaquinho, muito celebrada em Coimbra e em povoados limítrofes como Tentúgal, era o guitarrinho. Enquanto cordofone, o guitarrinho nada tem a ver com a guitarra, a não ser uma ligeira semelhança de caixa, cuja configuração reproduz o bandolim.
O barbeiro e tocador de violão José Lopes da Fonseca (José Trego) possuia um destes guitarrinhos. Ao que consta, eram quase todos provenientes das oficinas de Braga e ainda se vendiam na primeira metade da década de 1960. Fotografado, medido e tirado e respectivo molde, apurámos que o guitarrinho de Coimbra tinha uma escala quase plana de pau santo, seccionada em 17 pontos de latão amarelo, pá de madeira simples com 4 cravelhas, boca redonda, ornamentação frugal, caixa idêntica à dos bandolins comuns e quatro cordas. De acordo com as dimensões de origem, tinha 48 cms de corda vibrante, boca com um diâmetro de 6 cms, 6 cms de ilharga junto ao atadilho e 5,5 cms ao cepo. A largura máxima do braço junto à pá era de 3,3 cms e 4,5 cms em baixo. A pá, em espátula, tinha 14 cms de comprimento total. A caixa de ressonância media 28 por 35 cms.
As 4 cordas eram afinadas com o mesmo esquema do cavaquinho vulgar local (Ré, Sol, Mi, Si). Uma réplica modernizada do guitarrinho esteve exposta na V Feira de Artesanato de Coimbra, em Maio de 2005, na banca do fabricante Adérito Marques, de Andorinha/Cantanhede, e pela 2ª vez na VI Feira de Artesanato de Coimbra ralizada entre 12 e 18 de Maio de 2006. Adérito Marques tomou conhecimento do guitarrinho mediante informações do Dr. José Machado Lopes, do Grupo Etnográfico de Defesa do Património e Ambiente da Região da Pampilhosa (Mealhada), que conhecia o proprietário do exemplar assinalado em Tentúgal. Adérito Marques não construiu uma réplica fiel, optando pela modernização da pá, incorporação de cravelhas de parafuso e afinação Ré, Si, Sol, Sol (tampo em spruce, ilhargas e fundo em cipreste). A afinação indicada era vulgar nos tocadores de cavaquinho de Braga que a designavam pela “afinação de varejar”.
Violão de cordas de aço
O violão de seis cordas singelas é conhecido em Coimbra desde a segunda metade do século XVIII. Teve larga utilização no século XIX nas estudantinas informais, Tuna Académica (TAUC), serenatas académicas e populares, Fogueiras de São João e romarias. Os modelos mais ancestrais em uso entre finais do século XVIII e na primeira metade do século XIX tinham caixa mais pequena e esguia do que os consagrados no século XX. Por vezes identificados com a expressão “Viola Romântica”, apresentavam embutidos de marfim ou madrepérola na caixa (rebordo e boca), braço (folhas e liras) e pá de 6 cravelhas. O braço, mais comprido do que os das violas barrocas e violas de arame, tinha 19 pontos, ficando 12 extra-caixa. Nos modelos de luxo mais antigos, além dos embutidos, o violão comportava rosácea na boca redonda. “Violão” em Portugal e no Brasil (ali também “violão de cordas de aço”), “Violão Francês” ou “Viola Francesa” (designação institucional no Conservatório Nacional até aos inícios da década de 1960. Cf. Isabel Monteiro, “Viola ou guiarra? As diferentes designações do mesmo instrumento”, in Educação Musical, Nº 111, Out./Dez. 2001, págs. 22-23, cit. por Flávio Pinho), o violão de 6 cordas de aço manteve em Coimbra até à década de 1920 duas variantes de uso corrente, ambas com progressiva transição do cravelhal de madeira para os afinadores modernos:
-o violão pequeno, herdado do século XVIII (perdeu a rosácea), de aspecto grácil e grande leveza. O reportório mais antigo associado a este cordofone teria pontos comuns com a Viola Toeira e com a Viola Barroca: minuetos (Robert de Viseé e Jean Philippe Rameau, 1683-1764), gigas, tonadillas, contradanças, allegrettos (Matteo Carcassi, 1792-1853), andantinos (Ferdinando Carulli, 1770-1841), modinhas, lunduns, pavanas e galhardas. Relativamente ao reportório escrito especificamente para este tipo primitivo, Flávio Pinho assinalou na Biblioteca Geral da UC (manuscritos musicais) um Rondó, Valsa (1) e Valsa (2), de autor anónimo, com data de 1820 (BGUC, MM 776). Para os finais da década de 1840, Catarina Braga descobriu e Flávio Pinho deu notícia de uma publicação existente na Biblioteca Municipal de Coimbra, intitulada “O Conimbricense Armonico. Periódico de Musica que contem alternadamente Simfonias, Variações, Caprichos, fantazias, Pot-pourris, Árias, Cavatinas, Cabaletas, Rondos, Contradanças, e Waltz, etc., arranjadas para Viola Franceza por L. J. M. Oliveira, Coimbra, Livraria de L. J. M. Oliveira”. O instrumento desenhado no rosto de um dos cadernos é precisamente um violão de modelo anterior às reformas implementadas em Espanha pelo construtor António Torres. A publicação iniciou-se em 15 de Novembro de 1848 e terminou em Dezembro de 1849, atingindo o nº 26. Algumas das peças dos referidos cadernos, dadas a conhecer por Flávio Pinho foram duas “Waltz”, uma “Canção” e umas dificílimas “Grandes Variações”.
O violão espraia-se no Romantismo conimbricense, ainda sem alusões a uma nova dança que começara a fazer furor pela década de 1840, a polca. Entrada a década de 1860, merece referência um “Caderno de Muzicas”, da secção de manuscritos musicais da BGUC (MM 1012), assinado pelo compositor José da Costa e Cunha Vasconcelos Delgado, com extenso reportório para piano, canto e “viollão”, relativo aos anos 1862-1866. Delgado mostra ser um músico actualizado, dando notícia de obras como “La Marseilhaise”, “La Forza del Destino” (Verdi), “Uma Lágrima sobre o túmulo de D. Pedro V” (A. Agostini), “Gerusalemme” (Verdi) e “Il Trovatore” (Verdi). Especificamente para “canto e viollão”, José Vasconcelos Delgado autografa as modinhas “Os Olhos Negros e os Azues” (1862), “Adeus” (1863). Outros instrumentais do seu vasto caderno, como polcas, mazurcas, valsas e contradanças, poderiam facilmente ser tocados no violão.
Para se ficar com uma ideia do tipo dos autores e composições que faziam voga pelas décadas de 1850-1860 entre os estudantes do Seminário de Coimbra e da UC, valerá a pena folhear o manuscrito “Colecção de Contradanças, Vals, Polka, Mazurka, Socottisch e Varsoviana, de varias operas, arranjadas por Lúcio Diaz, Coimbra, Abril, 1857” (BGUC MM 94). Lúcio Dias, ligado ao Seminário de Coimbra, habitual fornecedor de reportório clássico ao tocador de Viola Toeira José Dória, harmoniza para órgão 8 quadrilhas que percorrem “Brisse Fou”, “Il Trovatore” (Verdi), “La Muete de Potici” (Auber), “Vésperas Sicilianas”, “Escocesa”, “Varsoviana”, “Valsa” (César Casella), polcas-mazurcas, contradanças de “Asedio di Leida”, valsa “Columbine” (Camille Shubert), contradanças de “A Casa do Diabo”, e de “Apresanimadas”.
-o violão de caixa grande, de sonoridade potente, que nas décadas de 1920-1930 se fabricava com as ilhargas muito rebaixadas (dito “o Bacalhau”). Deste violão se tirou uma variante, o violão-baixo, com 3 bordões suplementares superiores, o que implicava a duplicação da pá de madeira (Ré, Lá, Dó), instrumento muito tocado por José Caetano nas décadas de 1920-1930.
O violão mais comum, fabricado pelos violeiros de Coimbra tinha caixa grande de tampos chatos e paralelos, boca redonda, braço de escala em ressalto metálico de 18 trastos, cabeça lisa bifurcada com seis cravelhas. Armava com seis cordas de aço, sendo as duas superiores em bordão. O construtor Bento Martins Lobo chegou a confeccionar em 1903 um exemplar em forma de lira, de tampo inferior abaulado, com rasgamentos em efe junto à boca, e pá de madeira rematada em volutas. A afinação usual do violão é Mi, Si, Sol, Ré, Lá, Mi. A modernização mais significativa do violão ocorreu em Espanha, pela mão do fabricante António Torres, ia o século XIX a meio. Este fabricante costuma ser associado à padronização do violão de caixa grande, escorada com travessas em leque.
A associação do violão de cordas de aço à Guitarra Toeira é fruto da redução da tocata tradicional mondeguina. Com notícias esparsas ao longo da 2ª metade do século XIX, a ligação definitiva do violão à guitarra só viria a consagrar-se na década de 1920, em duos e trios:
-Manuel Rodrigues Paredes (g) e Ernesto de Carvalho (v);
-Artur Paredes (g) e António Aires de Abreu/Mário Faria da Fonseca/Guilherme Barbosa (v);
-Afonso de Sousa (g) e Laurénio Tavares (v);
-Flávio Rodrigues (g) e Augusto da Silva Louro/José Maria dos Santos (v).
Porém, tocadores de guitarra mais próximos das escolas de guitarra de Lisboa e do Porto não admitiam a presença de outros instrumentos ao lado da guitarra, e muito menos o violão. Um demorado e derradeiro representante dessa corrente da “guitarra solo” foi Antero da Veiga que nas suas gravações incorporou uma 2ª guitarra totalmente encordoada com bordões.
Com experiências pontuais na década de 1940, seria necessário aguardar a entrada do decénio de 1950, altura em que a presença dos dois violões se regularizou nos grupos de Carlos Figueiredo e António Pinho Brojo. Inicialmente, os dois executantes de violão tocavam o mesmo tipo de acompanhamento, tendo encetado a diferenciação 1º violão/2º violão Mário de Castro por 1952. É na transição da década de 1950 para os anos 60, concretamente em 1958, que o antigo violão começa a ser preterido nos agrupamentos estudantis pela viola de cordas de nylon, instrumento onde se destacaram os pioneiros Paulo Alão, José Tito Mackay (Coimbra, 1936; Lisboa, 2006), Durval Moreirinhas, Rui Pato e outros.
Em Coimbra não são conhecidas gravações assentes em solos de violão, cidade onde a primazia melódica dos cantos populares e estudantis andou atribuída à flauta travessa, bandolim, rabeca, guitarra e viola toeira. De qualquer das formas, importa referir, no fechar da década de 1920, gravações de sonetos por Edmundo Bettencourt na Columbia (“No Calvário”, violão por Mário F. Fonseca), e Armando Goes na His Master’s Voice (“Noite de Luar”, “Dobadoira” e “Rezas à Noite”, por Afonso de Sousa). Referimo-nos a experiências isoladas, que não chegaram a conhecer a veemência das gravações dos solos instrumentais do dueto de universitários portuenses constituído por José Pais da Silva/José Taveira, na Parlophone, com “Pas de Quatre”, “Padre Nuestro”, “Cantares Populares” e “Amanhecendo”. Na mesma época, pelo ano de 1928, a cantora lírica Maria Amélia Vasconcelos gravou, com o antigo estudante de Coimbra António Rodrigues Viana no violão, peças como “Lua de Mel” e “Regresso ao Lar”.
O violão de cordas de aço dá os últimos suspiros fonográficos entre 1956-1958, em gravações efectuadas por José Afonso, Fernando Rolim, António Portugal, Machado Soares e Luiz Goes. Em jeito de provocação, José Afonso grava em 1956 uma versão adaptada da modinha terceirense (Ilha Terceira) da década de 1840 “Meu Bem” (Ó Meu Bem se tu te fores), singelamente intitulada “Balada”, com acompanhamento de violão por Levy Baptista e Manuel Pepe.
Viola de cordas de nylon (guitarra)
A chamada “guitarra clássica” não apresenta em Coimbra quais particularismos dignos de registo. A sua organologia e afinação correspondem às práticas e solicitações comuns a qualquer outro país.
O acompanhamento com viola de cordas de nylon e Guitarra entra nos estúdios da Columbia em Setembro de 1957, com Augusto Camacho Vieira acompanhado em quatro faixas por Carlos Paredes (g) e António Leão Ferreira Alves (v). Seguem-se em 1960 gravações pelos grupos de Jorge Tuna e António Portugal. Quanto ao grupo de António Portugal, o destaque vai para um disco gravado por Adriano Correia de Oliveira, “Noite de Coimbra”, com os violas Durval Moreirinhas e Jorge Moutinho. No tema “Balada dos Sinos”, irrompem solos de viola feitos por Eduardo de Melo. Em meados de 1961 José Afonso recorre às violas de Durval Moreirinhas e José Niza para gravar “Balada Aleixo” e “Minha Mãe”. Depois chegam os anos da “viola às costas” com incontáveis trabalhos assinados por Rui Pato/José Afonso. Rui Pato não se limitou a acompanhar José Afonso e Adriano Correia de Oliveira em viola nylon. Trabalhou paralelamente um interessante reportório instrumental: no EP “Canção Longe. Rui Pato interpreta em viola José Afonso”, Rapsódia, 1963, destacam-se as peças “Canção Longe” (=Meu Bem), “Pastor de Bensafrim”, “Lianor” e “Selecção de Baladas”; segue-se “Balada do Outono”, no EP “Baladas e Canções”, Ofir, 1964; e “Canto da Primavera”, no EP “Baladas do Dr. José Afonso”, Ofir, 1964 (com diversas redições).
Enquanto Carlos Paredes actua e efectua registos fonográficos com Fernando Alvim desde 1962, a partir de meados da década a viola nylon seduz outros compositores e intérpretes: Nuno Guimarães em peças gravadas por António Bernardino; Luiz Goes, com João Gomes, António Toscano e Durval Moreririnhas.
Bandolim
O bandolim é um cordofone melódico de origem italiana, largamento utilizado em Portugal desde finais do século XVIII e inícios do século XIX, que se dedilha com auxílio de um plectro. Apresenta caixa de ressonância piriforme, tampos chatos, braço de 17 trastos, boca oval, pá-lira de madeira com aplicação de quatro cravelhas. O modelo mais usual em Portugal terá derivado do bandolim napolitano. Pelo seu aspecto anatómico, o bandolim coimbrão presta-se a confusões, pois que ao olhar menos atento sugere uma requinta da guitarra toeira. Elemento peculiar, é sem dúvida a pá-lira de cravelhas, idêntica à da viola toeira. O encordoamento é feito com quatro ordens de cordas duplas. O bandolim conheceu extraordinária aceitação nos meios académicos e populares oitocentistas, tendo marcado presença nas orquestras teatrais, arraiais, romarias, serenatas, Fogueiras de São João, TAUC. Está documentada a sua presença nas serenatas académicas desde a década de 1840, serenatas essas frequentemente designadas bandolinatas ou estudantinas. Relativamente às agremiações oitocentistas Orquestra do Teatro Académico e Tuna Académica (TAUC), importará assinalar a presença destacada da bandolineta sopranino, do bandolim soprano, da bandola contra-alto e do bandoloncelo tenor de sete cordas[16]. Dos vários cultores académicos, salientaram-se “Álvaro de Abreu” (nome fictício citado por Camilo Castelo Branco), Jaime de Abreu, Augusto Hilário e Manuel Mansilha.
A afinação do bandolim é, do agudo para o grave, Mi, Lá, Ré, Sol. No século XIX, violeiro de Coimbra que se prezasse construía e exibia o seu bandolim, quer em madeiras baratas, quer em confecção de luxo com polimento e ornatos de madrepérola. Alguns destes violeiros conimbricenses, como João dos Santos Couceiro, fixaram-se no Brasil (1871)[17] onde continuaram a sua arte. Não se sabe ao certo quando e onde os fundos abaulados começaram a ser substituídos pelo tampo inferior plano. A moda terá começado na segunda metade do século XIX em modelos de preço mais acessível. Quanto às alterações observadas no cravelhame, podem indicar-se com relativa segurança as oficinas lisboetas da década de 1890. A mais visível alteração passou pela substituição da pá de madeira pela cabeça da Guitarrilha do Fado com voluta em caracol e chapa de leque de oito tarrachas de latão amarelo. Nalguns modelos amadores datáveis de ca. 1917-1918, o braço excessivamente estreito quase fazia sobrepor as cordas, com prejuízo da colocação dos dedos. Nesses modelos mal dimensionados, de ilhargas demasiado rebaixadas, a proximidade das cabeças das tarrachas revela-se um demorado tormento para qualquer afinador.
Quanto ao reportório, os tocadores de bandolim executavam de ouvido, ou com alguma ilustração musical, o vasto espectro das Fogueiras de São João e modas mais directamente ligadas às culturas de palco/salão e serenata. Peças harmonizadas para piano, habitualmente tocadas nos convívios de salão, e outras colhidas na Orquestra do Teatro Académico, não deixaram de concitar vulgarização. As mais amadas foram as polcas, as valsas e as mazurcas.
Guitarra Toeira de Coimbra e Requinta
No espectro dos instrumentos mais representativos da cultura e identidade coimbrãs, ocupa lugar de “prima dona” a Guitarra Toeira ou “Guitarra-Banza” de Coimbra, de 17 trastos, substituída localmente em meados da década de 1950 pela moderna guitarra tipo Artur Paredes[18].
Desde quando se poderão começar a identificara sinais da presença de guitarras em Coimbra? Esta matéria nunca foi seriamente investigada. O antigo estudante de Coimbra Afonso Xavier Lopes Vieira está na origem de uma das mais formidáveis confusões da História da CC, pois a partir de um seu testemunho oral a seu filho, totalmente errado, gerou-se a convicção de que antes do ano de 1870 a guitarra não era conhecida em Coimbra e que só naquela data teria vindo de Lisboa um primeiro modelo com pá de madeira em espátula e cravelhas.
Afonso Xavier Lopes Vieira seria um observador distraído em relação ao que se passava à sua volta nos anos em que frequentou a UC. Esta confusão (saldada em resultados muitos negativos no campo da investigação) é hoje invalidada com base em pesquisas de imprensa periódica local, relatos de memorialistas, anúncios relativos a oficinas de violaria, atribuição de prémios a violeiros distintos e repertório musical manuscrito detectado nos fundos da BGUC. Todo este manancial documental faz prova de que a Guitarra Inglesa já era conhecida e tocada em Coimbra pelo menos desde a 2ª metade do século XVIII.
Uma versão mais popular do referido cordofone era a "Guitarra-Cítara", "Guitarra-Bandurra", Guitarra-Banza” ou “Cítara-Campeira”, esta com ilharga mais baixa e pá de madeira e cravelhas, semelhante aos modelos vulgares usados em ambientes diversos dos salões (podia ter meios trastos). Sem provas substanciais, admitimos que a variante Cítara foi conhecida, pelo menos episodicamente, nos círculos musicais futricas ligados às tocatas das Fogueiras de São João, bem como aos peditórios nocturnos de confrarias para fins religiosos. A este respeito, visualise-se a gravura de J. Taylor, de ca. 1827, reproduzida por António Brojo/António Portugal na página 7 da brochura da antologia fonográfica "Tempo(s) de Coimbra" (1984), onde o que se vislumbra é uma Cítara integrada na deambulação de uma confraria apetrechada com bandeira, lanternas, saco de recolha de esmolas, cantadores e imagem para beijar.
O erro avançado por Afonso Xavier Vieira a seu filho Afonso Lopes Vieira[19], e deste para Armando Leça, continua largamente por emendar, citado acriticamente de estudioso para estudioso:
-Armando LEÇA[20], "Música Popular Portuguesa", 2ª edição, Porto, Editorial Domingos Barreira, s/d, págs. 122-123 (1ª edição de 1945), primeira obra a consagrar publicamente o erro;
-Armando SIMÕES, "A Guitarra. Bosquejo Histórico", Évora, Edição do Autor, 1974, págs. 112-114, erro reproduzido a partir de Armando Leça;
-Eduardo SUCENA, "Lisboa, o Fado e os Fadistas", 1ª edição, Vega, 1994, pág. 85; idem, 2ª edição, Vega, 2002, pág. 85, erro reproduzido a partir de Armando Simões;
-Pedro Caldeira CABRAL, "A Guitarra Portuguesa", Alfragide, Ediclube, 1999, erro reproduzido a partir de Armando Simões (não obstante citar um substancial manuscrito de 1808, achado na BGUC, no qual constam peças de Manuel José Vidigal e Manuel Luís para Guitarra Inglesa);
-Ruy Vieira NERY, "Para uma História do Fado", Lisboa, Público, 2004, pág. 112, erro reproduzido a partir de Armando Simões.
O primeiro investigador a rebater categoricamente este erro sistemático, baseado em manuscritos musicais da BGUC, foi o lente de Música da Universidade de Évora, Manuel Morais, em "A Guitarra Portuguesa. Das suas origens setecentistas aos finais do século XIX" ("A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 de Setembro 2001", Lisboa, ESTAR, 2002, pág. 111).
O debate sobre as origens das guitarras que se individualizaram regionalmente em Portugal divide-se em duas grandes hipóteses de abordagem: a origem britânica tout court; a lenta evolução que vinda da Cítola medieval passa pela Cítara do Renascimento, para finalmente fundir-se com a Guitarra Inglesa.
1 - Origem a partir da Guitarra Inglesa, introduzida na cidade do Porto através de cordofones importados da Grã-Bretanha no século XVIII
A Guitarra Inglesa era basicamente um instrumento europeu de salão, embora se pudesse utilizar na rua. Podia ter entre 10 e 12 pontos na escala, afinador com chapa de latão amarelo de chave, boca redonda ornada com roseta e voluta trabalhada. Tinha seis ordens, sendo as quatro primeiras duplas e as restantes duas bordões singelos. Quando o encordoado era de tripa, a sonoridade deste cordofone resultava muito comedida, como se pode escutar em gravações/reconstituições de Pedro Caldeira Cabral (PCC). Havia uma variante desta guitarra, em tudo igual às restantes, que tinha teclado no tampo superior.
Existem exemplares da Guitarra Inglesa em museus ingleses, norte-americanos, italianos, checoslovacos e portugueses (Museu da Música, Lisboa).
A hipótese da evoluçã das tipologias de guitarras portuguesas a partir da English Guitar foi defendida pelos seguintes autores:
-António da Silva Leite (1759-1833), “Estudo de Guitarra em que se expõe o meio mais fácil para aprender a tocar este instrumento”, Porto, Na Officina Typographica de António Alvarez Ribeiro, 1796 (Lisboa, Ministério da Cultura, 1983)[21];
-César das Neves (1841-1920), “Cancioneiro de Muzicas Populares para canto e piano”, Porto, Typographia Occidental, Tomo I-1893, Tomo II-1895, Tomo III-1898 (prefácios);
-Michel’Angelo Lambertini (1862-1920), Chansons et instruments”, 1914; idem, “Primeiro Núcleo de um Museu Instrumental em Lisboa”, 1914;
-Maria Antonieta de Lima Cruz, “História da Música Portuguesa”, Lisboa, Editorial Dois Continentes, 1955, p. 184;
-Ernesto Veiga de Oliveira, “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa; Fundação Caloust Gulbenkian, 1966;
-Armando Simões, “A Guitarra. Bosquejo Histório”, Évora, Edição do Autor, 1974;
-Salwa Castelo Branco, “Vozes e Guitarras na prática interpretativa do Fado”, in “Fado Vozes e Sombras”, Lisboa, ELECTA, 1994, p. 131 (catálogo da exposição sobre a história do Fado na Lix. Capital Europeia da Cultura 1994);
-Manuel Morais: “A Guitarra Portuguesa. Das origens setecentistas aos finais do século XIX”, em “A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001”, Lisboa, ESTAR, 2002, pp. 95-116;
-Ruy Vieira Nery, colega de Manuel Morais na Universidade de Évora. Cf. Ruy Vieira Nery, “A Guitarra Portuguesa em estudo. Novos problemas, novos contextos e novas metodologias. Nota Introdutória”, in “A Guitarra Portuguesa”, Lisboa, ESTAR, 2002, pp. 9-14; idem, “A viola e a guitarra”, in “Para uma História do Fado”, Lisboa, PÚBLICO, 2004, pp. 96-99, e pp. 280-281 (com comentários vigorosos a PCC).
2 - Lenta evolução com fusão Cítara/Guitarra Inglesa
Tese formulada pelo investigador e executante Pedro Caldeira Cabral na 2ª edição do livro de Veiga de Oliveira, a pedido do próprio Veiga de Oliveira: “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa, Fundação Caloust Gulbenkian, 1983;
-este escrito de PCC coincide com o lançamento de uma espécie de complemento prático ao referido livro de Veiga de Oliveira, o LP”Pedro Caldeira Cabral. A Guitarra Portuguesa nos salões do século XVIII”, Orfeu LPP 2, ano de 1983. Cabral usa uma guitarra inglesa, de 1812, do Museu da Música, e com ela grava peças de Silva Leite, Vidigal, Rudolf Straub e Gemiani. Seguem-se novas gravações deste estudioso, a saber: CD “Musica de Guitarra Inglesa. Século XVIII”, Os Sons da Expo 98, Nº 5, Lisboa, Diário de Notícias, 1998 (recriações sobre Frederick Zuckert, Manuel José Vidigal, António Pereyra da Costa e Rudolf Straub); CD duplo “Pedro Caldeira Cabral. Memórias da Guitarra Portuguesa (1). A Guitarra do Século XVIII (2)”, Vila Verde, Tradisom, 2003;
-PCC defende que os modelos de guitarra existentes em Portugal evoluíram mais remotamente a partir da cítola medieval, passando pela cítara do Renascimento. Na passagem do século XVIII para o século XIX, a cítara, que era um instrumento de intenso uso popular, ter-se-a fundido com a Guitarra Inglesa. Esta tese foi aprofundada pelo autor e repetida na 3ª edição da obra de Veiga de Oliveira, ano de 2000, e numa master class realizada em Coimbra no mês de Dezembro de 2006;
-as cítaras dos séculos XVII e XVIII tinham mais frequentemente escala plana, com trastos de latão e meios trastos, cordas de latão, ilharga baixa, boca redonda com roseta e afinador de cravelhas laterais em madeira (tipo violino), sendo a voluta esculpida. É este tipo de instrumento, progressivamente modernizado, que vemos nos meios rurais e nos fadistas de Lisboa., ao longo do século XIX (ver fotos em Caldeira Cabral, 1999);
-a tese de Cabral foi retomada e aprofundada pelo folclorista José Alberto Sardinha, especialmente nas publicações “Tradições musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 410-444, capítulo “A evolução da cítara”; idem, “A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, in “A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001”, Lisboa, ESTAR, 2002, , pp. 117-122.
Admitindo com José Alberto Sardinha e Pedro Caldeira Cabral que as guitarras que se definiram regionalmente em Portugal nos séculos XIX e XX resultaram de encontros entre a Cítara popular (Banza ou Bandurra) e a Guitarra Inglesa, importará recuar no tempo[22]. Uma das mais remotas alusões à guitarra-cítara em Coimbra poderá estar na Comédia Eufrósina, cuja acção se passa em Coimbra pelos idos de 1542. A dado passo, o comediógrafo Jorge Ferreira de Vasconcelos convoca o ditado popular “palavras sem obras, cítola sem cordas”[23].
Num extenso poema de 1645, intitulado Relação da Jornada que os estudantes fizeram à fronteira do Alentejo em 6 de Novembro de 1645 por ordem de Sua Magestade sendo Reitor da Universidade Manuel de Saldanha de gloriosa memória aparece a palavra “cythara”. Porém, levantam-se dúvidas quanto ao mencionado registo de 1645. Do emprego do termo “cythara” ali presente, não resulta suficientemente claro se o poeta se refere a um cordofone usualmente tocado, ou invoca apenas uma figura literária da cultura clássica.
Entrados nos primeiros anos do século XVIII, a outiva como que resvala para o nome de um estudante que via na exagerada dedilhação de instrumentos um sinal de atraso cultural da UC. Falamos de António Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699; Paris, 1783), que tendo passado pelo Real Colégio das Artes e Faculdade de Leis da UC entre 1716-1719 seguiu para Salamanca e dali para a Itália, Londres, França, Holanda, Rússia e França onde se tornou famoso como médico e pensador estrangeirado. O pensador que no “Método para aprender a estudar a Medicina” fustiga as praxes coimbrãs, os costumes académicos, o ócio e os divertimentos, era o mesmo Ribeiro Sanches que em 1712 se radicara na cidade da Guarda, onde aprendera música e cítara.
No Carnaval de 1737, o antigo estudante de Coimbra António José da Silva, de alcunha O Judeu, fez representar no Teatro do Bairro Alto, Lisboa, a comédia-opereta Guerras do Alecrim e Mangerona. Ópera jocoséria. Nascido no Brasil, Rio de Janeiro, a 23 de Maio de 1705, o comediógrafo foi supliciado pela Inquisição em Lisboa, a 18 de Outubro de 1839. Ao contrário da crença corrente, não chegou a formar-se em Leis na UC em 1725[24]. Na obra citada, este antigo estudante de Coimbra faz D. Tibúrcio recitar um soneto que julgamos impossível de engedrar sem conhecimentos musicais e de anatomia e afinação do instrumento descrito:
Primas, que na guitarra da constância
Tão iguais retenis no contraponto,
Que não há contraprima nesse ponto,
Que nos porpontos noto dissonância:
Oh falsas não sejais nesta jactância;
Pois quando atento os números vos conto,
Nessa beleza harmónica remonto
Ao plectro da Febina consonância:
Já que primas me sois, sede terceiras
De meu amor, por mais que vos agaste
Ouvir de um cavalete as frioleiras;
Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste
De dar à escaravelha em tais asneiras,
Que enfim isto de amor é um lindo traste[25].
Seguem-se, desde meados do século XVIII, os registos contidos no Palito Métrico e nas memórias do cantor e executante Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão (Óbidos, 1757; 1816). Malhão, aluno de Leis entre 1783-1789, refere expressamente que tocava “guitarra”, cantava e fazia teatro, com prestações em Coimbra, Lisboa, Lorvão, Torres Vedras e Sendelgas. O memorialista distingue a guitarra de outros cordofones como a “viola” e a “rabeca”. Quanto aos espaços de actuação, explicita serenatas nas ruas da Alta e portarias de colégios universitários (Militares, São Pedro), outeiros feitos em conventos femininos de Coimbra e arredores (Celas, Lorvão, Sendelgas) e festas de doutoramentos[26]. Malhão não descreve o tipo de instrumento utilizado nem o sistema de afinação então empregue. Seria a cítara popular de cravelhas de madeira, com escala plana, boca redonda coberta por rosácea, e cravelhas dorsais do tipo violino? Ou a guitarra inglesa de chapa metálica e chavinha, com escala plana de 12 pontos e boca ornada de rosácea? O executante citado deixou uma obra instrumental que por décadas foi popular nos meios estudantis, “Variações do Lundum do Malhão”, em compasso binário e tom de Fá Maior (manuscrito MM 361 da BGUC). Outra obra, de autor não identificado, situável pelo mesmo contexto e época é o instrumental “Lundum da Bahia” (manuscrito MM. 362 da BGUC).
Ainda na primeira década do século XIX, em tempo de instabilidade suscitada pela fuga da Família Real para o Brasil e Invasões Francesas, distinguiu-se em Coimbra como guitarrista e compositor ilustrado o estudante de Leis António Justiniano Baptista Botelho, oriundo de Escalos de Baixo, Castelo Branco. Botelho, instalado na Rua do Borralho, nº 153, frequentou Filosofia Racional e Moral no Real Colégio das Artes em 1805-1806, posto o que se matriculou na Faculdade de Leis no ano lectivo de 1807-1808. No 1º ano habitou na Rua dos Estudos, nº 14, no 2º ano fixou-se no Bairro de São Martinho, no 3º esteve no Marco da Feira, nº 65, e no 4º passou à Rua dos Grilos, nº 18. Terminou o 4º ano jurídico no ano lectivo de 1811-1812[27]. Botelho é autor de umas “Variações para Guitarra Inglesa”, com Tema e 6 Variações”, composição feita durante o período em que foi estudante.
Poderão ainda citar-se para a primeira metade do século XIX obras como:
-“Sonata Nº 1 para duas guitarras”, de António da Silva Leite (MM 766, da BGUC), compositor portuense que viveu entre 1759 e 1833;
-“Sonata Nº 2 para duas guitarras”, de António da Silva Leite (MM 767, da BGUC),
-“Varias Pessas para se tocar em Guitarra [Inglesa] do Anno de 1808” (manuscrito MM 351 da BGUC), de transcritor anónimo, contendo um vasto reportório de sabor barroco e palaciano, marcado por minuetos, gigas, contradanças, marchas e rondós. Quanto a autores, são mencionados nos cabeçalhos de alguns dos títulos os guitarristas Manuel Luís e o célebre Manuel José Vidigal (activo em Lisboa, 1763-1827). Algumas das composições do referido manuscrito estão reconstituídas por Pedro Caldeira Cabral nos seguintes trabalhos: PCC, LP “A Guitarra Portuguesa nos Salões do Século XVIII, Lisboa, Orfeu, LPP2, 1983 (Silva Leite, Vidigal); PCC, CD “Memórias da Guitarra Portuguesa (1). A Guitarra do Século XVIII (2)”, Vila Verde, Tradisom, TRAD 034-035, 2003[28];
-“Sonata para Guitarra, composta por B. J. V. S. G.” (manuscrito MM 539 da BGUC);
-“Tema da Molinaria com Variações de João Paulo Pereira” (manuscrito MM 663 da BGUC), reportado ao compositor Giovanni Paisiello (1741-1816), com Tema e 6 Variações para 1ª e 2ª guitarras, a que crescem “Valsa”, “Ingleza”, “Valsa”, “Waltz”, “Filha Mal Guardada”, “Valsa”, “Ingleza” e valsas (mais tardio este caderno, pois além de incorporar valsas, transcreve um trecho musical de “La Fille Mal Gardée”, composta em 1828 por Ferdinand Hérold).
Um lote de quadras cantadas no Fado Atroador, entre 1840-1845, indica que os estudantes conheciam a guitarra. Neste período (1840-1850) chegou a ser designada por bandurra, nomenclatura que o etnólogo José Alberto Sardinha demonstrou ser popular e que o poeta Bocage empregou em finais do século XVIII.
Não é possível determinar com rigor quando e onde a Guitarra Inglesa, que se usava em Coimbra desde o século XVIII, evoluiu em termos de modificação da escala, encordoamento e afinadores. O cruzamento das informações dispersas conduz-nos às décadas de 1820-1830, particularmente no que respeita à passagem da escala de 12 para 14 pontos e de 14 para 17. A rosácea de boca e o afinador de chavinha mantiveram-se duradouramente nas oficinas do Porto e de Coimbra. A consagração do leque metálico de 12 tarrachas não é anterior à década de 1860. Este dispositivo mereceu desde cedo os favores dos violeiros. No Porto rapidamente fez cair no esquecimento o antigo afinador de chavinha. Em Coimbra coesistiu com o afinador de chavinha até finais da década de 1880. Em Lisboa quase só era usado nas guitarrilhas de luxo, predominando as guitarras de fado com cravelhas de madeira. No entanto, a crescente adesão dos construtores activos em Lisboa à chapa de leque rapidamente conduziu na década de 1890 à invenção de um dispositivo de latão amarelo com 8 tarrachas para bandolins. Até meados do século XX, a moda lisboeta das cabeças de guitarra de Fado penetrara a arte do fabrico dos bandolins rurais e urbanos, cavaquinhos (leque de 4 tarrachas) e violas de arame (10 tarrachas nas braguesas e 12 nas violas da terra das ilhas centrais dos Açores).
Informações oriundas da tradição oral das oficinas conimbricenses, reportadas por Armando Simões, e outras detectadas na imprensa periódica regional, invalidam definitivamente as infundadas hipóteses da Família Lopes Vieira e de Armando Leça quanto à “entrada da guitarra em Coimbra no ano de 1870”. No ano lectivo de 1852-1853 o estudante da Faculdade de Matemática José Alberto de Oliveira Anchieta Portes Pereira de Sampaio, natural de Lisboa, notabilizou-se como executante de guitarra. Para a década de 1860, o estudante de Direito Antão de Vasconcelos (Mata Carochas, 1842-1915) refere expressamente o uso de guitarras, violas de arame e violões nas Fogueiras do São João da Alta de Coimbra. Francisco Martins de Carvalho, no elogio fúnebre do construtor conimbricense João dos Santos Couceiro, que se radicara no Brasil em 1871, refere que este construtor se notabilizara em Coimbra na Exposição Distrital de 1869 como fabricante de violas toeiras, violões, rabecas e guitarras (Cf. jornal “Conimbricense”, de 22/04/1905)[29].
Entre a década de 1880 e os alvores da Primeira Guerra Mundial tenderam a coexistir em Coimbra diversas tipologias de guitarras:
a) guitarrilha de Fado de Lisboa, de caixa pequena, boca redonda, escala de 17 pontos, chapa de leque e voluta enrolada, cujo modelo seria celebrizado por tocadores como Manuel dos Santos Melo, Jaime de Abreu, Augusto Hilário (entre 1895-1896), Ricardo Borges de Sousa e João de Deus Filho;
b) guitarra do Porto, com boca redonda (com e sem rosácea), escala de 17 pontos, chapa de leque, voluta floral, utilizada por amadores como Augusto Hilário, Manuel Mansilha, José Cochofel (usou um exemplar de 15 cordas) e Cândido de Viterbo;
c) requinta da Guitarra Toeira de Coimbra, de caixa piriforme pequena, escorada por duas travessas, boca redonda, escala alongada, tendencialmente plana, de 17 pontos, chapa de leque em latão e voluta oval sem arestas. Um dos mais antigos modelos da requinta aparece formulado pelo construtor Augusto Nunes dos Santos, em 1905, num exemplar comprado pelo estudante liceal Francisco Menano (depositado no Museu Académico);
d) Guitarra Toeira de Coimbra, com caixa piriforme escorada por duas travessas, boca redonda, ilhargas muito baixas (entre 4,5/5 cms ao cepo e 5,5/6,1cms ao atadilho), escala alongada, com ligeiro abaulamento, 17 pontos de latão, chapa de leque com 12 tarrachas, e voluta inicialmente floral, passando nos primeiros anos do século XX a oval sem aresta viva (Augusto Nunes dos Santos). Trata-se de uma solução regional que na esteira da Guitarra Inglesa, funde elementos organológicos da Guitarra do Porto com a moda da ilharga rebaixada da guitarrilha de luxo de Lisboa celebrizada por Augusto Hilário.
O violeiro Armando Neves declarou a Armando Simões ter sido o autor desta “invenção”, sensivelmente a partir de 1904. Cotejando documentos escritos com a análise detalhada de guitarras do acervo do Museu Académico (10/0172006) e outras que estavam na oficina de Fernando Meireles para restauro (15/02/2002), conclui-se: as declarações de Neves merecem algumas reservas pois trabalhou como ofical aprendiz na oficina de Santos; mestre e discípulo desenvolveram quase em simultâneo experiências organológicas que redundaram no primeiro modelo morfológico da Guitarra Toeira de Coimbra, modelo que em 1905 Santos já tinha estabilizado em termos de requinta. O modelo grande terá efectivamente sido burilado por Armando Neves, servindo de exemplificação a guitarra que o referido fabricante vendeu ao estudante Lucas Rodrigues Junot em 1920 (oficina sita na Rua Adelino Veiga, 46-48). O Museu Académico dispõe de alguns exemplares de época da Guitarra Toeira grande, que se tangia pela afinação natural no folclore, romarias e serenatas. Este cordofone fabricou-se nas oficinas conimbricenses até aos inícios da década de 1950, tendo sido o seu último representante Raul Simões: guitarra do estudante Jorge Alcino de Morais “Xabregas”, feita por Raul Simões, ca. 1930; guitarra do estudante Miguel Peres de Vasconcelos, feita por Raul Simões, na 2ª metade da década de 1920; guitarra de Flávio Rodrigues da Silva, utilizada pelo tocador ate 1950, todas depositadas no Museu Académico.
A afinação natural era, antes de mais, uma afinação de salão. Deste dispositivo resultava um som baço, de alcance limitado. Tudo indica que os tocadores populares de guitarra da Beira Litoral conheceriam outro dispositivo de afinação, ainda hoje por estudar. Assinale-se o caso de Antero da Veiga que adquiriu a sua primeira guitarra de chapa de chavinha em 1888 ao fabricante coimbrão Bento Martins Lobo. Natural de Coja, Arganil, Antero da Veiga aprendeu os primeiros rudimentos de guitarra e dispositivos de afinação com um tocador popular de Arganil.
Na década de 1880 a guitarra andava em mãos de tocadores populares domiliciados em vários concelhos da Beira Litoral. Admitimos que nem todos os tocadores empregariam a afinação natural. Antero da Veiga pode ter começado por dedilhar a guitarra com auxílio de um dispositivo de afinação popular, só mais tarde tendo aderido à afinação natural.
A guitarra toeira de 17 trastos foi o cordofone do Ultra-Romantismo serenil, signo da Belle Époque coimbrã, tendo potenciado nos meios académicos e populares uma crequinta de sons altos e estridentes (fabricada entre ca. 1905-1945). A afinação da Guitarra Toeira de 17 trastos é a mesma da sua requinta: Lá, Sol, Ré, Lá, Sol, Dó. Como é sabido, esta afinação foi iniciada pelo guitarrista Artur Paredes na década de 1920 e transmitida aos seus segundos guitarras Albano de Noronha, Afonso de Sousa e Felisberto Passos. A afinação de salão, herdada do século XVIII era Si, Sol, Mi, Si, Sol, Mi (natural), referindo Armando Simões a muito vulgarizada “afinação natural em dó”: Si, Lá, Mi, Si, Sol, Ré, que não obstante a troca do Lá pelo Sol na 5ª ordem, coincide com a chamada “afinação do Fado Corrido”.
A Guitarra Toeira foi tocada em salões particulares, hoteis, palcos, praias, casinos, romarias, arraiais, ruas e terreiros, termas, espaços fluviais. A requinta, mais recatada, andou pelas salas, cortejou os mimos da rabeca e do piano, arruou de quando em vez.
Guitarra Moderna de Coimbra
Partindo da Guitarra Toeira de Coimbra, Artur Paredes começou a desenvolver experiências visando a reforma do cordofone e a sua qualidade sonora. Os primeiros ensaios datam da segunda metade da década de 1920, congregando a avidez de Artur Paredes, as sugestões Guilherme Barbosa e as renitências de Raul Simões. Artur Paredes procurava um instrumento com uma sonoridade mais ampla e agressiva, adequado à sua personalidade e reportório. O executante de violão que lhe garantiu as gravações de 1927, Guilherme Barbosa, era também versado em violino. Barbosa convenceu Artur Paredes que não bastaria modificar dimensões e apurar madeiras, cavaletes, colas e polimentos. Na sua opinião era fulcral abandonar o braço tendiialmente plano da guitarra em uso e os pontos de latão. A pouco e pouco caminhou-se para uma busca lenta do alteamento das ilhargas, reforço da caixa com três travessas, criteriosa selecção de madeiras, colas e polimentos, aposta em cavaletes porosos, e reforma do braço com pronunciado abaulamento, aumento do número de pontos (de 17 para 22) e substituição dos trastos por estruturas de aço alteadas. Raul Simões mostrou-se pouco receptivo às indagações de Artur Paredes. Em finais dos anos 20 havia membros da Família Grácio que tinham na Alta de Coimbra uma pequena oficina de venda ao público, mais precisamente na Rua do S. Salvador, do lado oposto ao prédio onde foi habitar em 1951 o recém-casado José Afonso (nº 20). A partir desta “filial” conimbricense Artur Paredes desenvolve duradouros contactos com o construtor Kim Grácio, os quais se prolongarão até à entrada da década de 1950. Um sinal mais recuado deste encontro entre Artur Paredes e Kim Grácio teve lugar em 1931, quando o construtor reformou substancialmente a guitarra que o tocador usara nas gravações de 1927 (depositada no Museu Académico em 1960). Outro sinal reporta-se a uma fase de transição, exemplificada através de uma guitarra adquirida por Afonso de Sousa a João Pedro Grácio Júnior em 1937: o braço continua a manter 17 pontos, mas a ilharga foi alteada e a voluta daquiriu um configuração elementar em lágrima de aresta viva.
O novo modelo adquire a sua forma definitiva por 1940. A partir da década de 1950, mercê dos intensos debates/experiências havidos entre Artur Paredes, João Bagão e o construtor João Pedro Grácio Júnior, a nova guitarra pendeu para um modelo de caixa ainda mais alargada, de configuração hiper-robusta que, potenciando excelente sonoridade/rendimento, perdeu em graciosidade e elegância.
Foram primeiros praticantes e divulgadores do novo modelo Artur Paredes e Carlos Paredes. Só verdadeiramente em 22 de Maio de 1945, a propósito do sarau comemorativo dos 65 anos do Orfeon, a que se seguiu uma serenata na Sé Velha, em que participou Artur Paredes, os guitarristas académicos tomaram verdadeira consciência do novo modelo[30]. A nova guitarra divulgou-se lentamente, primeiro com João Bagão (1947), José Maria Amaral (1947), Petrónio Ricciuli (1953), António Pinho de Brojo (1954), António Portugal (ca. 1955)[31], Jorge Godinho (ca.1955), Afonso de Sousa e Jorge Tuna. No Porto, os fabricantes já exibiam o novo modelo por volta de 1959. Terá contribuído para a sua divulgação nos círculos de amadores portuenses o guitarrista Alexandre Brandão, conhecido entusiasta de tudo o que respeitava à arte de Artur Paredes.
A substituição da antiga pela nova guitarra nos círculos de cultores activos em Coimbra não foi inteiramente pacífica. Até à morte do tocador popular Flávio Rodrigues, a adopção do modelo parediano seria impensável. A Guitarra Toeira era considerada mais adequada ao tipo de reportórios praticados nas Fogueiras do São João, concertos de palco e recitais de salão. A desconfiança que envolveu a tímida divulgação da nova guitarra (aquisição directa a Artur Paredes, em Lisboa; campanha de promoção na casa Olímpio Medina), era extensiva a Artur Paredes, artista pouco simpático aos olhos da Sociedade Tradicional Futrica.
Rabeca
A rabeca é um violino de braço ligeiramente mais curto do que o modelo clássico, popularizado no mundo ocidental desde o século XVI a partir de Itália. Afina Mi, Lá, Ré, Sol. Correspondente à voz de soprano, é dotado de um timbre agudo, brilhante e por vezes algo estridente. A caixa de ressonância tem a configuração de um 8 imperfeito, com o bojo inferior mais avantajado. Sensivelmente a meio da caixa ficam os “ouvidos” ou “efes”, aberturas acústicas que possibilitam a amplificação do som. No interior da caixa de ressonância é colocando um cilindro de madeira, a “alma”, dispositivo que Artur Paredes e Kim Grácio chegaram a aplicar experimentalmente em guitarras do novo modelo, na segunda metade da década de 1940. O braço, abaulado, sem trastos, é percorrido por 4 cordas singelas de tripa de carneiro, aço cromado ou material sintético, que nascendo no estandarte, passam sobre o dorso do cavalete e vão fixar-se no cravelhal de madeira (semelhante ao das cítaras). A cabeça remata em voluta. O violino é tradicionalmente tocado com um arco de madeira em cujas extremidades encaixam fios de crina de cavalo que devem ser besuntados com breu. Este instrumento integrou tunas, tocatas populares ligadas aos arraiais dos santos populares, romeiros e serenatas. Era o “par” inseparável da viola toeira, possibilitando um toque de rasgado na viola de arame e um executar a melodia conforme o jeito do tocador. E nunca perdeu esta função, mesmo quando à tocata se foram juntando o violão e o bandolim. Para uma audição do desempenho da rabeca num tocador com larga experiência em Coimbra, Joaquim Arzileiro, ouça-se o CD “Cantares de Coimbra”, Coimbra, Grupo Folclórico de Coimbra, GfC-01, 1999, com 20 faixas sonoras de peças reconstituídas.
Rabecão
Outro instrumento intensamente empregue em Coimbra desde meados do século XIX nas serenatas fluviais académicas, Fogueiras de São João e serenatas fluviais futricas foi o rabecão, contrabaixo que coadjuvava o violão de cordas de aço no sublinhar dos baixos. Num postal ilustrado, alusivo ao pavilhão das Fogueiras de São João, do Largo do Romal, de Junho de 1903, o rabecão figura em grande plano. Nem todos os musicólgos sintonizam quanto à classificação do rabecão. Enquanto uns o situam na família do violino, outros há que negam tal relação, para tanto convocando as seguintes diferenças: costas vincadamente planas; ângulo acentuado entre a caixa e o braço; afinação com sistema de parafuso, em vez de cravelhame; afinação por quartas; a posição da mão no manejo do arco. De grandes dimensões, o rabecão toca-se habitualmente de pé, ou com apoio de um banco alto. O arco mais utilizado foi o de tipo francês, similar ao do violino, embora mais curto e robusto. A afinação usual neste instrumento é Mi, Lá, Ré, Sol. Surgido no século XVI, o rabecão viveu a sua época aurea em Coimbra entre 1830 e 1930. Da orquestra do Teatro Académico e dos demais teatros da cidade, saltou para as serenatas fluviais estudantis nos anos de 1850. A partir da década 1870 há notícias de incorporação nas Fogueiras de São João e nas serenatas fluviais futricas. Os modelos clássicos mais em voga chegados ao nosso tempo são o alemão (caixa de 122 cms), o italiano (caixa de 117 cms) e o francês (caixa de 114 cms). Contrabaixo e violoncelo foram frequentemente utilizados em Coimbra, entre a 2ª metade do século XIX e o 1º quartel do século XX em temas da CC correlacionados com récitas de despedida de quintanistas de Direito, Teologia e Medicina. Tenhamos presente um vasto reportório de palco, acompanhado por orquestra, cuja mais produção mais visível eram as baladas de despedida e os primitivos hinos de cursos. Não existem reconstituições disponíveis deste tipo de intervenções instrumentísticas, podendo servir de aproximação auditiva trabalhos como “Despedida de Coimbra” e “Noite Serena” (CD “Sine Musica nulla vita. Antigos Tunos da Universidade de Coimbra”, 1995, faixas 11 e 13), ou “Balada de Coimbra” e “Olhos Negros” (CD “15 anos depois… Antigos Tunos da Universidade de Coimbra”, 2000, faixas 8 e 9).
Flauta Travessa
A flauta travessa rivalizou em Coimbra com a rabeca nas danças, modas cantadas e serenatas. A sua utilização está bem documentada na cidade desde a segunda metade do século XVIII, sendo ainda muito ouvida no último quartel do século XIX. A flauta travessa, confeccionada em cana e sabugueiro, tinha sensivelmente 34 centímetros de comprimento, com seis furos no dorso, apresentando algumas um sétimo furo extra alinhamento, destinado ao polegar esquerdo.
Ferrinhos e Pandeiro
Também grangearam grande voga nos meios populares, sobretudo Fogueiras de São João, ranchos de romeiros e arraiais, os ferrinhos e o pandeiro de soalhas. Ambos chegaram a figurar em serenatas académicas e futricas. Aquando da fundação do Rancho das Tricanas de Coimbra, em 1937, foram logo adoptadas pandeiretas com fitas garridas.
Em data incerta, talvez na década de 1950, António Henriques Marques, antigo ensaiador do Rancho Regional de Águeda, e José Francisco de Oliveira, ex-dançarino do Rancho das Tricanas de Coimbra, organizaram no Brasil o Rancho Folclórico Tricanas de Coimbra da Cidade de Santos. Praticando um reportório de escala nacional, enquadrado pelas representações da FNAT, as fotografias deste rancho transmitem enorme falta de rigor no guarda roupa. À semelhança do Rancho das Tricanas de Coimbra, os elementos femininos da cidade de Santos pousavam de pandeireta fitada à cintura.
Seria correcto o uso da pandeireta? Da interrogação e da falta de informação dos alvitristas locais nasceu uma polémica violenta (A guerra das pandeiretas) de que encontramos eco em Duarte Santos, “Os ranchos de Coimbra e as pandeiretas”, in O Despertar , de 1 de Abril de 1970.
Sanfonas e Gaitas-de-Foles
Em finais do século XIX, os romeiros, vindos a Coimbra, entravam na cidade ao som de bombos, tambores, pífaros, gaitas de foles, castanholas, gaitas de beiços, harmónios, violões, guitarras. Chegavam aos milhares os peregrinos e romeiros em inícios de Julho, para os festejos da Rainha Santa. Nos areais do Mondego se pernoitava, merendava e dançava. Ia-se ao São Bento, de Pereira do Campo (Abril), Senhora do Desterro, em Tentúgal (Junho), a São Paulo de Frades (Agosto), à Senhora do Alto Monte, em Penacova (Setembro), ao Espírito Santo, em Santo António dos Olivais (Junho). De Coimbra saíam em Agosto numerosos ranchos de romeiros a caminho do Senhor da Serra (Semide). Nas paragens de descanso os romeiros cantavam e bailavam animadamente.
De Coimbra iam instrumentos e modas que se aclimatavam noutras terras. De fora chegavam gaiteiros, tamborileiros, cantores e bailarinos. Ao lado de instrumentos mais queridos e aceites, vislumbravam-se e ouviam-se outros menos comuns tocados pelos mendigos e pedintes que enxameavam as ruas e terreiros da Baixa.
Analisando por 1908, em tom condenatório a “miséria das ruas” e os “typos sociais”, o estudante de Direito e poeta colaborador das Fogueiras de São João Fortunato Mário Monteiro trouxe à luz do dia informações de grande interesse. Da Abrunheira, Montemor, vinha com regularidade a Coimbra o Cego da Abrunheira, cantador de improvisos e tocador de guitarra, acompanhado de competente moço de peditório. O Senhorinha, efeminado, ia “vender” a esposa às repúblicas de estudantes, armado de cavaquinho. Manuel Fortunato Lopes, de alcunha o Pedro do Pifano ou Manuel do Realejo (=sanfona), falecido circa 1908, cantava versos satíricos tendo animado as ruas durante longos anos com descantes, sanfona e pifano. Tocava e cantava a troco de moedas e de copos de vinho[32].
O uso da sanfona em Coimbra parece ser bastante antigo, remontando à tradição medieval. A sanfona ou “realejo” andou ligada à actividade de mendigos, ao pastoreio medieval (ver iluminuras de livros de horas) e a bailes populares do estilo dos documentados nos presépios barrocos setecentistas. Aqui e além aplicava-se-lhe o designativo de “sanfonina de cego”. A sanfona é considerada um cordofone, constituída por caixa de ressonância e braço, com a peculiaridade de as cordas serem friccionadas por uma roda accionada por manivela. O braço da sanfona comporta um teclado. Este instrumento medieval, praticamente desaparecido em Portugal, encontrou em Fernando Meireles o seu mais lídimo estudioso, construtor e executante[33].
Também se ouviram em Coimbra instrumentos esquecidos. Um deles foi o alaúde, expressamente indicado na partitura da “Balada de Despedida do 5º Ano de 1900”, que os irmãos Caetanos ainda utilizavam nas décadas de 1920-1930 em concertos e registos fonográficos.
Outros instrumentos, de raiz medieval[34], foram os tambores e gaitas de foles que ao longo de todo o Antigo Regime a edilidade alimentou na “folia da cidade”, grupo que abrilhantava procissões como a do Corpus Christi e cortejos oficiais[35]. Artistas amadores afamados, os gaiteiros garantiam também o acompanhamento de missas, as alvoradas festivas, os cortejos de estudantes da UC, festas de casamento, bailes rurais, romarias, peditórios para irmandades e confrarias, e procissões (fase anterior às filarmónicas). A dignificação da figura do gaiteiro era tal que nas procissões seguia logo atrás do pálio. O reportório dos gaiteiros não obedecia à reprodução de modas tradicionais, principiando sempre pelo “sinal da moda”, com passagem ao passo-dobrado, valsas, fados, viras, marchas, alvoradas e arruadas. A gaita de foles ganhou características distintivas nas mãos dos construtores activos em Coimbra, especialmente em povoados dos arrabaldes como Ribeira de Frades (a “terra dos gaiteiros”).
Os gaiteiros de Coimbra organizavam-se em trios de gaiteiro (função melódica), bombo e caixa (percussões). As gaitas de foles autóctones eram fabricadas por artesãos locais com pele de cabrito (fole grande, forrado), ponteiro (escala com orifícios), ronca de buxo com apliques de latão (tubo da dominante, mais largo e enfeitado com fitas garridas, que toca a nota de Sol) e o portavento ou soprete.
Instrumento e tocador prestavam-se a brejeirices de conotação fálica, tendo Nelson Correia Borges recolhido na Região de Coimbra duas quadras populares ilustrativas:
Eu hei-de casar est’ano,
Há-de ser pr’ó mês que vem;
O meu amor é gaiteiro,
Com a gaita ganha bem!
Eu hei-de casr est’ano,
C’uma cachopa qualquer,
P’ra tocar na minha gaita
As vezes que ela quiser![36]
Gravados e estudados por Ernesto Veiga de Oliveira nos inícios da década de 1960, o desaparecimento das festividades académicas entre 1969-1979 fez esmorecer os sons dos gaiteiros. A partir de 1979-80 voltariam a ter enorme visibilidade nos cortejos de Latadas e Queimas das Fitas. Alvo das atenções da Associação Gaita de Foles (http://www.gaitadefoles.net/), os gaiteiros da Região de Coimbra motivaram campanhas de recolhas por parte do estudioso Mário Correia:
-CD “Flamínio de Almeida. Gaiteiro do Casal da Misarela. Coimbra”, Sons da Terra Nº 6, STMC 0013, ano de 2000, com 10 faixas;
-CD “Eduardo Carvalho. Gaiteiro Ti Chico Gato. Ribeira de Frades. Coimbra”, Sons da Terra Nº 15, STMC 0531, ano de 2004, com 12 faixas;
-CD “Joaquim Carriço. Quinta do Valongo. Vacariça. Mealhada”, Sons da Terra Nº 16, STMC 052, ano de 2004, com 16 faixas.
Para terminar: fala de João Anjo
No término da 1ª Grande Guerra, os terreiros e ruas de Coimbra ainda vibravam com os ranchos de São João, os desfiles dos romeiros que iam e vinham. Ao nível da tocata, as coisas tinham mudado, e muito. Cavaquinhos e violas toeiras era raros ouvi-los na cidade. O rabecão mantinha-se. Influenciados directamente pelas filarmónicas e grupinhos de jazz, os ranchos da Baixa incorporavam clarinetes, trompetes e saxofones (presentes Rancho das Tricanas de Coimbra, fundado em 1937). Por toda a Beira Litoral os acordeons e sopros geravam crescente emulação.
O músico João de Oliveira Anjo (Ilhavo, 1916), instalado no Regimento de Artilharia 12, em 1938, começou a colaborar regularmente nas Fogueiras do Romal como clarinetista. De acordo com o testemunho que nos prestou em 12 de Janeiro de 2002, João Anjo rapidamente estabeleceu contactos com os meios musicais futricas, particularmente com Flávio Rodrigues (guitarrista) os Trego (pai e filho), Manuel Eliseu, o mandador Calmeirão. Conta-nos que na década de 1940 ainda era habitual os tocadores e cantores do Romal irem visitar os ranchos activos em Santa Clara, Celas e Alta. João Anjo não tem memória de acordeons nas Fogueiras e arraiais citadinos, invocando sim a presença de instrumentos de sopro nas Fogueiras activas fora do perímetro da Alta.
João Anjo, à data em que foi entrevistado, era o derradeiro tocador e compositor das Fogueiras de São João. Por um caderno de músicas manuscritas que nos cedeu, podemos ver que nos anos 40 e 50 compôs assinalável número de peças para o rancho do Romal e para o Rancho das Tricanas de Coimbra. Citemos, sem preocupação de exaustividade, Filigranas de Coimbra (1944), cantada por Isabel Contente no Grémio Operário, Santa Isabel de Aragão (1949), cantado na festa dos finalistas da Escola Comercial e Industrial Brotero por Rosa Amaral e Walter Figueiredo, Bocas são Rosas Vermelhas (1945, música de Manuel Eliseu, letra de João Anjo e José de Almeida), Ó Madrugada Silente (1944), Que marotos os teus olhos (1950), Ó estrelas lá do alto (1952, para o Rancho de Coimbra), Morena dos Meus Abrolhos (1944).
Nas derradeiras Fogueiras de São João havidas no que restava do Largo do Castelo, corria Junho de 1947, persistiam teimosamente os cordofones. Os Salatinas administrativamente expropriados e realojados em Celas perseveraram em levar as Fogueiras até ca. 1974. Por um apontamento do Emissor Regional desses anos podem ouvir-se um mandador de voz rouca, um clarinete chiante e um acordeon, em modas como o “Sou Marinheiro” e “À Porta do Lúcio”. Percebe-se que algo está a agonizar.
Sem pretender negar a evolução sofrida pela tocata tradicional coimbrã, a postura registada no interior dos grupos etnográficos e folclóricos, a partir da década de 1980, vai no sentido de uma triagem cuidadosa. Esta preocupação selectiva, tenta recuperar os instrumentos mais vincadamente característicos, afastando acordeãos, concertinas, tambores, pífaros, gaitas de beiços, clarinetes, castanholas.
Uma variante do cavaquinho, muito celebrada em Coimbra e em povoados limítrofes como Tentúgal, era o guitarrinho. Enquanto cordofone, o guitarrinho nada tem a ver com a guitarra, a não ser uma ligeira semelhança de caixa, cuja configuração reproduz o bandolim.
O barbeiro e tocador de violão José Lopes da Fonseca (José Trego) possuia um destes guitarrinhos. Ao que consta, eram quase todos provenientes das oficinas de Braga e ainda se vendiam na primeira metade da década de 1960. Fotografado, medido e tirado e respectivo molde, apurámos que o guitarrinho de Coimbra tinha uma escala quase plana de pau santo, seccionada em 17 pontos de latão amarelo, pá de madeira simples com 4 cravelhas, boca redonda, ornamentação frugal, caixa idêntica à dos bandolins comuns e quatro cordas. De acordo com as dimensões de origem, tinha 48 cms de corda vibrante, boca com um diâmetro de 6 cms, 6 cms de ilharga junto ao atadilho e 5,5 cms ao cepo. A largura máxima do braço junto à pá era de 3,3 cms e 4,5 cms em baixo. A pá, em espátula, tinha 14 cms de comprimento total. A caixa de ressonância media 28 por 35 cms.
As 4 cordas eram afinadas com o mesmo esquema do cavaquinho vulgar local (Ré, Sol, Mi, Si). Uma réplica modernizada do guitarrinho esteve exposta na V Feira de Artesanato de Coimbra, em Maio de 2005, na banca do fabricante Adérito Marques, de Andorinha/Cantanhede, e pela 2ª vez na VI Feira de Artesanato de Coimbra ralizada entre 12 e 18 de Maio de 2006. Adérito Marques tomou conhecimento do guitarrinho mediante informações do Dr. José Machado Lopes, do Grupo Etnográfico de Defesa do Património e Ambiente da Região da Pampilhosa (Mealhada), que conhecia o proprietário do exemplar assinalado em Tentúgal. Adérito Marques não construiu uma réplica fiel, optando pela modernização da pá, incorporação de cravelhas de parafuso e afinação Ré, Si, Sol, Sol (tampo em spruce, ilhargas e fundo em cipreste). A afinação indicada era vulgar nos tocadores de cavaquinho de Braga que a designavam pela “afinação de varejar”.
Violão de cordas de aço
O violão de seis cordas singelas é conhecido em Coimbra desde a segunda metade do século XVIII. Teve larga utilização no século XIX nas estudantinas informais, Tuna Académica (TAUC), serenatas académicas e populares, Fogueiras de São João e romarias. Os modelos mais ancestrais em uso entre finais do século XVIII e na primeira metade do século XIX tinham caixa mais pequena e esguia do que os consagrados no século XX. Por vezes identificados com a expressão “Viola Romântica”, apresentavam embutidos de marfim ou madrepérola na caixa (rebordo e boca), braço (folhas e liras) e pá de 6 cravelhas. O braço, mais comprido do que os das violas barrocas e violas de arame, tinha 19 pontos, ficando 12 extra-caixa. Nos modelos de luxo mais antigos, além dos embutidos, o violão comportava rosácea na boca redonda. “Violão” em Portugal e no Brasil (ali também “violão de cordas de aço”), “Violão Francês” ou “Viola Francesa” (designação institucional no Conservatório Nacional até aos inícios da década de 1960. Cf. Isabel Monteiro, “Viola ou guiarra? As diferentes designações do mesmo instrumento”, in Educação Musical, Nº 111, Out./Dez. 2001, págs. 22-23, cit. por Flávio Pinho), o violão de 6 cordas de aço manteve em Coimbra até à década de 1920 duas variantes de uso corrente, ambas com progressiva transição do cravelhal de madeira para os afinadores modernos:
-o violão pequeno, herdado do século XVIII (perdeu a rosácea), de aspecto grácil e grande leveza. O reportório mais antigo associado a este cordofone teria pontos comuns com a Viola Toeira e com a Viola Barroca: minuetos (Robert de Viseé e Jean Philippe Rameau, 1683-1764), gigas, tonadillas, contradanças, allegrettos (Matteo Carcassi, 1792-1853), andantinos (Ferdinando Carulli, 1770-1841), modinhas, lunduns, pavanas e galhardas. Relativamente ao reportório escrito especificamente para este tipo primitivo, Flávio Pinho assinalou na Biblioteca Geral da UC (manuscritos musicais) um Rondó, Valsa (1) e Valsa (2), de autor anónimo, com data de 1820 (BGUC, MM 776). Para os finais da década de 1840, Catarina Braga descobriu e Flávio Pinho deu notícia de uma publicação existente na Biblioteca Municipal de Coimbra, intitulada “O Conimbricense Armonico. Periódico de Musica que contem alternadamente Simfonias, Variações, Caprichos, fantazias, Pot-pourris, Árias, Cavatinas, Cabaletas, Rondos, Contradanças, e Waltz, etc., arranjadas para Viola Franceza por L. J. M. Oliveira, Coimbra, Livraria de L. J. M. Oliveira”. O instrumento desenhado no rosto de um dos cadernos é precisamente um violão de modelo anterior às reformas implementadas em Espanha pelo construtor António Torres. A publicação iniciou-se em 15 de Novembro de 1848 e terminou em Dezembro de 1849, atingindo o nº 26. Algumas das peças dos referidos cadernos, dadas a conhecer por Flávio Pinho foram duas “Waltz”, uma “Canção” e umas dificílimas “Grandes Variações”.
O violão espraia-se no Romantismo conimbricense, ainda sem alusões a uma nova dança que começara a fazer furor pela década de 1840, a polca. Entrada a década de 1860, merece referência um “Caderno de Muzicas”, da secção de manuscritos musicais da BGUC (MM 1012), assinado pelo compositor José da Costa e Cunha Vasconcelos Delgado, com extenso reportório para piano, canto e “viollão”, relativo aos anos 1862-1866. Delgado mostra ser um músico actualizado, dando notícia de obras como “La Marseilhaise”, “La Forza del Destino” (Verdi), “Uma Lágrima sobre o túmulo de D. Pedro V” (A. Agostini), “Gerusalemme” (Verdi) e “Il Trovatore” (Verdi). Especificamente para “canto e viollão”, José Vasconcelos Delgado autografa as modinhas “Os Olhos Negros e os Azues” (1862), “Adeus” (1863). Outros instrumentais do seu vasto caderno, como polcas, mazurcas, valsas e contradanças, poderiam facilmente ser tocados no violão.
Para se ficar com uma ideia do tipo dos autores e composições que faziam voga pelas décadas de 1850-1860 entre os estudantes do Seminário de Coimbra e da UC, valerá a pena folhear o manuscrito “Colecção de Contradanças, Vals, Polka, Mazurka, Socottisch e Varsoviana, de varias operas, arranjadas por Lúcio Diaz, Coimbra, Abril, 1857” (BGUC MM 94). Lúcio Dias, ligado ao Seminário de Coimbra, habitual fornecedor de reportório clássico ao tocador de Viola Toeira José Dória, harmoniza para órgão 8 quadrilhas que percorrem “Brisse Fou”, “Il Trovatore” (Verdi), “La Muete de Potici” (Auber), “Vésperas Sicilianas”, “Escocesa”, “Varsoviana”, “Valsa” (César Casella), polcas-mazurcas, contradanças de “Asedio di Leida”, valsa “Columbine” (Camille Shubert), contradanças de “A Casa do Diabo”, e de “Apresanimadas”.
-o violão de caixa grande, de sonoridade potente, que nas décadas de 1920-1930 se fabricava com as ilhargas muito rebaixadas (dito “o Bacalhau”). Deste violão se tirou uma variante, o violão-baixo, com 3 bordões suplementares superiores, o que implicava a duplicação da pá de madeira (Ré, Lá, Dó), instrumento muito tocado por José Caetano nas décadas de 1920-1930.
O violão mais comum, fabricado pelos violeiros de Coimbra tinha caixa grande de tampos chatos e paralelos, boca redonda, braço de escala em ressalto metálico de 18 trastos, cabeça lisa bifurcada com seis cravelhas. Armava com seis cordas de aço, sendo as duas superiores em bordão. O construtor Bento Martins Lobo chegou a confeccionar em 1903 um exemplar em forma de lira, de tampo inferior abaulado, com rasgamentos em efe junto à boca, e pá de madeira rematada em volutas. A afinação usual do violão é Mi, Si, Sol, Ré, Lá, Mi. A modernização mais significativa do violão ocorreu em Espanha, pela mão do fabricante António Torres, ia o século XIX a meio. Este fabricante costuma ser associado à padronização do violão de caixa grande, escorada com travessas em leque.
A associação do violão de cordas de aço à Guitarra Toeira é fruto da redução da tocata tradicional mondeguina. Com notícias esparsas ao longo da 2ª metade do século XIX, a ligação definitiva do violão à guitarra só viria a consagrar-se na década de 1920, em duos e trios:
-Manuel Rodrigues Paredes (g) e Ernesto de Carvalho (v);
-Artur Paredes (g) e António Aires de Abreu/Mário Faria da Fonseca/Guilherme Barbosa (v);
-Afonso de Sousa (g) e Laurénio Tavares (v);
-Flávio Rodrigues (g) e Augusto da Silva Louro/José Maria dos Santos (v).
Porém, tocadores de guitarra mais próximos das escolas de guitarra de Lisboa e do Porto não admitiam a presença de outros instrumentos ao lado da guitarra, e muito menos o violão. Um demorado e derradeiro representante dessa corrente da “guitarra solo” foi Antero da Veiga que nas suas gravações incorporou uma 2ª guitarra totalmente encordoada com bordões.
Com experiências pontuais na década de 1940, seria necessário aguardar a entrada do decénio de 1950, altura em que a presença dos dois violões se regularizou nos grupos de Carlos Figueiredo e António Pinho Brojo. Inicialmente, os dois executantes de violão tocavam o mesmo tipo de acompanhamento, tendo encetado a diferenciação 1º violão/2º violão Mário de Castro por 1952. É na transição da década de 1950 para os anos 60, concretamente em 1958, que o antigo violão começa a ser preterido nos agrupamentos estudantis pela viola de cordas de nylon, instrumento onde se destacaram os pioneiros Paulo Alão, José Tito Mackay (Coimbra, 1936; Lisboa, 2006), Durval Moreirinhas, Rui Pato e outros.
Em Coimbra não são conhecidas gravações assentes em solos de violão, cidade onde a primazia melódica dos cantos populares e estudantis andou atribuída à flauta travessa, bandolim, rabeca, guitarra e viola toeira. De qualquer das formas, importa referir, no fechar da década de 1920, gravações de sonetos por Edmundo Bettencourt na Columbia (“No Calvário”, violão por Mário F. Fonseca), e Armando Goes na His Master’s Voice (“Noite de Luar”, “Dobadoira” e “Rezas à Noite”, por Afonso de Sousa). Referimo-nos a experiências isoladas, que não chegaram a conhecer a veemência das gravações dos solos instrumentais do dueto de universitários portuenses constituído por José Pais da Silva/José Taveira, na Parlophone, com “Pas de Quatre”, “Padre Nuestro”, “Cantares Populares” e “Amanhecendo”. Na mesma época, pelo ano de 1928, a cantora lírica Maria Amélia Vasconcelos gravou, com o antigo estudante de Coimbra António Rodrigues Viana no violão, peças como “Lua de Mel” e “Regresso ao Lar”.
O violão de cordas de aço dá os últimos suspiros fonográficos entre 1956-1958, em gravações efectuadas por José Afonso, Fernando Rolim, António Portugal, Machado Soares e Luiz Goes. Em jeito de provocação, José Afonso grava em 1956 uma versão adaptada da modinha terceirense (Ilha Terceira) da década de 1840 “Meu Bem” (Ó Meu Bem se tu te fores), singelamente intitulada “Balada”, com acompanhamento de violão por Levy Baptista e Manuel Pepe.
Viola de cordas de nylon (guitarra)
A chamada “guitarra clássica” não apresenta em Coimbra quais particularismos dignos de registo. A sua organologia e afinação correspondem às práticas e solicitações comuns a qualquer outro país.
O acompanhamento com viola de cordas de nylon e Guitarra entra nos estúdios da Columbia em Setembro de 1957, com Augusto Camacho Vieira acompanhado em quatro faixas por Carlos Paredes (g) e António Leão Ferreira Alves (v). Seguem-se em 1960 gravações pelos grupos de Jorge Tuna e António Portugal. Quanto ao grupo de António Portugal, o destaque vai para um disco gravado por Adriano Correia de Oliveira, “Noite de Coimbra”, com os violas Durval Moreirinhas e Jorge Moutinho. No tema “Balada dos Sinos”, irrompem solos de viola feitos por Eduardo de Melo. Em meados de 1961 José Afonso recorre às violas de Durval Moreirinhas e José Niza para gravar “Balada Aleixo” e “Minha Mãe”. Depois chegam os anos da “viola às costas” com incontáveis trabalhos assinados por Rui Pato/José Afonso. Rui Pato não se limitou a acompanhar José Afonso e Adriano Correia de Oliveira em viola nylon. Trabalhou paralelamente um interessante reportório instrumental: no EP “Canção Longe. Rui Pato interpreta em viola José Afonso”, Rapsódia, 1963, destacam-se as peças “Canção Longe” (=Meu Bem), “Pastor de Bensafrim”, “Lianor” e “Selecção de Baladas”; segue-se “Balada do Outono”, no EP “Baladas e Canções”, Ofir, 1964; e “Canto da Primavera”, no EP “Baladas do Dr. José Afonso”, Ofir, 1964 (com diversas redições).
Enquanto Carlos Paredes actua e efectua registos fonográficos com Fernando Alvim desde 1962, a partir de meados da década a viola nylon seduz outros compositores e intérpretes: Nuno Guimarães em peças gravadas por António Bernardino; Luiz Goes, com João Gomes, António Toscano e Durval Moreririnhas.
Bandolim
O bandolim é um cordofone melódico de origem italiana, largamento utilizado em Portugal desde finais do século XVIII e inícios do século XIX, que se dedilha com auxílio de um plectro. Apresenta caixa de ressonância piriforme, tampos chatos, braço de 17 trastos, boca oval, pá-lira de madeira com aplicação de quatro cravelhas. O modelo mais usual em Portugal terá derivado do bandolim napolitano. Pelo seu aspecto anatómico, o bandolim coimbrão presta-se a confusões, pois que ao olhar menos atento sugere uma requinta da guitarra toeira. Elemento peculiar, é sem dúvida a pá-lira de cravelhas, idêntica à da viola toeira. O encordoamento é feito com quatro ordens de cordas duplas. O bandolim conheceu extraordinária aceitação nos meios académicos e populares oitocentistas, tendo marcado presença nas orquestras teatrais, arraiais, romarias, serenatas, Fogueiras de São João, TAUC. Está documentada a sua presença nas serenatas académicas desde a década de 1840, serenatas essas frequentemente designadas bandolinatas ou estudantinas. Relativamente às agremiações oitocentistas Orquestra do Teatro Académico e Tuna Académica (TAUC), importará assinalar a presença destacada da bandolineta sopranino, do bandolim soprano, da bandola contra-alto e do bandoloncelo tenor de sete cordas[16]. Dos vários cultores académicos, salientaram-se “Álvaro de Abreu” (nome fictício citado por Camilo Castelo Branco), Jaime de Abreu, Augusto Hilário e Manuel Mansilha.
A afinação do bandolim é, do agudo para o grave, Mi, Lá, Ré, Sol. No século XIX, violeiro de Coimbra que se prezasse construía e exibia o seu bandolim, quer em madeiras baratas, quer em confecção de luxo com polimento e ornatos de madrepérola. Alguns destes violeiros conimbricenses, como João dos Santos Couceiro, fixaram-se no Brasil (1871)[17] onde continuaram a sua arte. Não se sabe ao certo quando e onde os fundos abaulados começaram a ser substituídos pelo tampo inferior plano. A moda terá começado na segunda metade do século XIX em modelos de preço mais acessível. Quanto às alterações observadas no cravelhame, podem indicar-se com relativa segurança as oficinas lisboetas da década de 1890. A mais visível alteração passou pela substituição da pá de madeira pela cabeça da Guitarrilha do Fado com voluta em caracol e chapa de leque de oito tarrachas de latão amarelo. Nalguns modelos amadores datáveis de ca. 1917-1918, o braço excessivamente estreito quase fazia sobrepor as cordas, com prejuízo da colocação dos dedos. Nesses modelos mal dimensionados, de ilhargas demasiado rebaixadas, a proximidade das cabeças das tarrachas revela-se um demorado tormento para qualquer afinador.
Quanto ao reportório, os tocadores de bandolim executavam de ouvido, ou com alguma ilustração musical, o vasto espectro das Fogueiras de São João e modas mais directamente ligadas às culturas de palco/salão e serenata. Peças harmonizadas para piano, habitualmente tocadas nos convívios de salão, e outras colhidas na Orquestra do Teatro Académico, não deixaram de concitar vulgarização. As mais amadas foram as polcas, as valsas e as mazurcas.
Guitarra Toeira de Coimbra e Requinta
No espectro dos instrumentos mais representativos da cultura e identidade coimbrãs, ocupa lugar de “prima dona” a Guitarra Toeira ou “Guitarra-Banza” de Coimbra, de 17 trastos, substituída localmente em meados da década de 1950 pela moderna guitarra tipo Artur Paredes[18].
Desde quando se poderão começar a identificara sinais da presença de guitarras em Coimbra? Esta matéria nunca foi seriamente investigada. O antigo estudante de Coimbra Afonso Xavier Lopes Vieira está na origem de uma das mais formidáveis confusões da História da CC, pois a partir de um seu testemunho oral a seu filho, totalmente errado, gerou-se a convicção de que antes do ano de 1870 a guitarra não era conhecida em Coimbra e que só naquela data teria vindo de Lisboa um primeiro modelo com pá de madeira em espátula e cravelhas.
Afonso Xavier Lopes Vieira seria um observador distraído em relação ao que se passava à sua volta nos anos em que frequentou a UC. Esta confusão (saldada em resultados muitos negativos no campo da investigação) é hoje invalidada com base em pesquisas de imprensa periódica local, relatos de memorialistas, anúncios relativos a oficinas de violaria, atribuição de prémios a violeiros distintos e repertório musical manuscrito detectado nos fundos da BGUC. Todo este manancial documental faz prova de que a Guitarra Inglesa já era conhecida e tocada em Coimbra pelo menos desde a 2ª metade do século XVIII.
Uma versão mais popular do referido cordofone era a "Guitarra-Cítara", "Guitarra-Bandurra", Guitarra-Banza” ou “Cítara-Campeira”, esta com ilharga mais baixa e pá de madeira e cravelhas, semelhante aos modelos vulgares usados em ambientes diversos dos salões (podia ter meios trastos). Sem provas substanciais, admitimos que a variante Cítara foi conhecida, pelo menos episodicamente, nos círculos musicais futricas ligados às tocatas das Fogueiras de São João, bem como aos peditórios nocturnos de confrarias para fins religiosos. A este respeito, visualise-se a gravura de J. Taylor, de ca. 1827, reproduzida por António Brojo/António Portugal na página 7 da brochura da antologia fonográfica "Tempo(s) de Coimbra" (1984), onde o que se vislumbra é uma Cítara integrada na deambulação de uma confraria apetrechada com bandeira, lanternas, saco de recolha de esmolas, cantadores e imagem para beijar.
O erro avançado por Afonso Xavier Vieira a seu filho Afonso Lopes Vieira[19], e deste para Armando Leça, continua largamente por emendar, citado acriticamente de estudioso para estudioso:
-Armando LEÇA[20], "Música Popular Portuguesa", 2ª edição, Porto, Editorial Domingos Barreira, s/d, págs. 122-123 (1ª edição de 1945), primeira obra a consagrar publicamente o erro;
-Armando SIMÕES, "A Guitarra. Bosquejo Histórico", Évora, Edição do Autor, 1974, págs. 112-114, erro reproduzido a partir de Armando Leça;
-Eduardo SUCENA, "Lisboa, o Fado e os Fadistas", 1ª edição, Vega, 1994, pág. 85; idem, 2ª edição, Vega, 2002, pág. 85, erro reproduzido a partir de Armando Simões;
-Pedro Caldeira CABRAL, "A Guitarra Portuguesa", Alfragide, Ediclube, 1999, erro reproduzido a partir de Armando Simões (não obstante citar um substancial manuscrito de 1808, achado na BGUC, no qual constam peças de Manuel José Vidigal e Manuel Luís para Guitarra Inglesa);
-Ruy Vieira NERY, "Para uma História do Fado", Lisboa, Público, 2004, pág. 112, erro reproduzido a partir de Armando Simões.
O primeiro investigador a rebater categoricamente este erro sistemático, baseado em manuscritos musicais da BGUC, foi o lente de Música da Universidade de Évora, Manuel Morais, em "A Guitarra Portuguesa. Das suas origens setecentistas aos finais do século XIX" ("A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 de Setembro 2001", Lisboa, ESTAR, 2002, pág. 111).
O debate sobre as origens das guitarras que se individualizaram regionalmente em Portugal divide-se em duas grandes hipóteses de abordagem: a origem britânica tout court; a lenta evolução que vinda da Cítola medieval passa pela Cítara do Renascimento, para finalmente fundir-se com a Guitarra Inglesa.
1 - Origem a partir da Guitarra Inglesa, introduzida na cidade do Porto através de cordofones importados da Grã-Bretanha no século XVIII
A Guitarra Inglesa era basicamente um instrumento europeu de salão, embora se pudesse utilizar na rua. Podia ter entre 10 e 12 pontos na escala, afinador com chapa de latão amarelo de chave, boca redonda ornada com roseta e voluta trabalhada. Tinha seis ordens, sendo as quatro primeiras duplas e as restantes duas bordões singelos. Quando o encordoado era de tripa, a sonoridade deste cordofone resultava muito comedida, como se pode escutar em gravações/reconstituições de Pedro Caldeira Cabral (PCC). Havia uma variante desta guitarra, em tudo igual às restantes, que tinha teclado no tampo superior.
Existem exemplares da Guitarra Inglesa em museus ingleses, norte-americanos, italianos, checoslovacos e portugueses (Museu da Música, Lisboa).
A hipótese da evoluçã das tipologias de guitarras portuguesas a partir da English Guitar foi defendida pelos seguintes autores:
-António da Silva Leite (1759-1833), “Estudo de Guitarra em que se expõe o meio mais fácil para aprender a tocar este instrumento”, Porto, Na Officina Typographica de António Alvarez Ribeiro, 1796 (Lisboa, Ministério da Cultura, 1983)[21];
-César das Neves (1841-1920), “Cancioneiro de Muzicas Populares para canto e piano”, Porto, Typographia Occidental, Tomo I-1893, Tomo II-1895, Tomo III-1898 (prefácios);
-Michel’Angelo Lambertini (1862-1920), Chansons et instruments”, 1914; idem, “Primeiro Núcleo de um Museu Instrumental em Lisboa”, 1914;
-Maria Antonieta de Lima Cruz, “História da Música Portuguesa”, Lisboa, Editorial Dois Continentes, 1955, p. 184;
-Ernesto Veiga de Oliveira, “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa; Fundação Caloust Gulbenkian, 1966;
-Armando Simões, “A Guitarra. Bosquejo Histório”, Évora, Edição do Autor, 1974;
-Salwa Castelo Branco, “Vozes e Guitarras na prática interpretativa do Fado”, in “Fado Vozes e Sombras”, Lisboa, ELECTA, 1994, p. 131 (catálogo da exposição sobre a história do Fado na Lix. Capital Europeia da Cultura 1994);
-Manuel Morais: “A Guitarra Portuguesa. Das origens setecentistas aos finais do século XIX”, em “A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001”, Lisboa, ESTAR, 2002, pp. 95-116;
-Ruy Vieira Nery, colega de Manuel Morais na Universidade de Évora. Cf. Ruy Vieira Nery, “A Guitarra Portuguesa em estudo. Novos problemas, novos contextos e novas metodologias. Nota Introdutória”, in “A Guitarra Portuguesa”, Lisboa, ESTAR, 2002, pp. 9-14; idem, “A viola e a guitarra”, in “Para uma História do Fado”, Lisboa, PÚBLICO, 2004, pp. 96-99, e pp. 280-281 (com comentários vigorosos a PCC).
2 - Lenta evolução com fusão Cítara/Guitarra Inglesa
Tese formulada pelo investigador e executante Pedro Caldeira Cabral na 2ª edição do livro de Veiga de Oliveira, a pedido do próprio Veiga de Oliveira: “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa, Fundação Caloust Gulbenkian, 1983;
-este escrito de PCC coincide com o lançamento de uma espécie de complemento prático ao referido livro de Veiga de Oliveira, o LP”Pedro Caldeira Cabral. A Guitarra Portuguesa nos salões do século XVIII”, Orfeu LPP 2, ano de 1983. Cabral usa uma guitarra inglesa, de 1812, do Museu da Música, e com ela grava peças de Silva Leite, Vidigal, Rudolf Straub e Gemiani. Seguem-se novas gravações deste estudioso, a saber: CD “Musica de Guitarra Inglesa. Século XVIII”, Os Sons da Expo 98, Nº 5, Lisboa, Diário de Notícias, 1998 (recriações sobre Frederick Zuckert, Manuel José Vidigal, António Pereyra da Costa e Rudolf Straub); CD duplo “Pedro Caldeira Cabral. Memórias da Guitarra Portuguesa (1). A Guitarra do Século XVIII (2)”, Vila Verde, Tradisom, 2003;
-PCC defende que os modelos de guitarra existentes em Portugal evoluíram mais remotamente a partir da cítola medieval, passando pela cítara do Renascimento. Na passagem do século XVIII para o século XIX, a cítara, que era um instrumento de intenso uso popular, ter-se-a fundido com a Guitarra Inglesa. Esta tese foi aprofundada pelo autor e repetida na 3ª edição da obra de Veiga de Oliveira, ano de 2000, e numa master class realizada em Coimbra no mês de Dezembro de 2006;
-as cítaras dos séculos XVII e XVIII tinham mais frequentemente escala plana, com trastos de latão e meios trastos, cordas de latão, ilharga baixa, boca redonda com roseta e afinador de cravelhas laterais em madeira (tipo violino), sendo a voluta esculpida. É este tipo de instrumento, progressivamente modernizado, que vemos nos meios rurais e nos fadistas de Lisboa., ao longo do século XIX (ver fotos em Caldeira Cabral, 1999);
-a tese de Cabral foi retomada e aprofundada pelo folclorista José Alberto Sardinha, especialmente nas publicações “Tradições musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 410-444, capítulo “A evolução da cítara”; idem, “A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, in “A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001”, Lisboa, ESTAR, 2002, , pp. 117-122.
Admitindo com José Alberto Sardinha e Pedro Caldeira Cabral que as guitarras que se definiram regionalmente em Portugal nos séculos XIX e XX resultaram de encontros entre a Cítara popular (Banza ou Bandurra) e a Guitarra Inglesa, importará recuar no tempo[22]. Uma das mais remotas alusões à guitarra-cítara em Coimbra poderá estar na Comédia Eufrósina, cuja acção se passa em Coimbra pelos idos de 1542. A dado passo, o comediógrafo Jorge Ferreira de Vasconcelos convoca o ditado popular “palavras sem obras, cítola sem cordas”[23].
Num extenso poema de 1645, intitulado Relação da Jornada que os estudantes fizeram à fronteira do Alentejo em 6 de Novembro de 1645 por ordem de Sua Magestade sendo Reitor da Universidade Manuel de Saldanha de gloriosa memória aparece a palavra “cythara”. Porém, levantam-se dúvidas quanto ao mencionado registo de 1645. Do emprego do termo “cythara” ali presente, não resulta suficientemente claro se o poeta se refere a um cordofone usualmente tocado, ou invoca apenas uma figura literária da cultura clássica.
Entrados nos primeiros anos do século XVIII, a outiva como que resvala para o nome de um estudante que via na exagerada dedilhação de instrumentos um sinal de atraso cultural da UC. Falamos de António Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699; Paris, 1783), que tendo passado pelo Real Colégio das Artes e Faculdade de Leis da UC entre 1716-1719 seguiu para Salamanca e dali para a Itália, Londres, França, Holanda, Rússia e França onde se tornou famoso como médico e pensador estrangeirado. O pensador que no “Método para aprender a estudar a Medicina” fustiga as praxes coimbrãs, os costumes académicos, o ócio e os divertimentos, era o mesmo Ribeiro Sanches que em 1712 se radicara na cidade da Guarda, onde aprendera música e cítara.
No Carnaval de 1737, o antigo estudante de Coimbra António José da Silva, de alcunha O Judeu, fez representar no Teatro do Bairro Alto, Lisboa, a comédia-opereta Guerras do Alecrim e Mangerona. Ópera jocoséria. Nascido no Brasil, Rio de Janeiro, a 23 de Maio de 1705, o comediógrafo foi supliciado pela Inquisição em Lisboa, a 18 de Outubro de 1839. Ao contrário da crença corrente, não chegou a formar-se em Leis na UC em 1725[24]. Na obra citada, este antigo estudante de Coimbra faz D. Tibúrcio recitar um soneto que julgamos impossível de engedrar sem conhecimentos musicais e de anatomia e afinação do instrumento descrito:
Primas, que na guitarra da constância
Tão iguais retenis no contraponto,
Que não há contraprima nesse ponto,
Que nos porpontos noto dissonância:
Oh falsas não sejais nesta jactância;
Pois quando atento os números vos conto,
Nessa beleza harmónica remonto
Ao plectro da Febina consonância:
Já que primas me sois, sede terceiras
De meu amor, por mais que vos agaste
Ouvir de um cavalete as frioleiras;
Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste
De dar à escaravelha em tais asneiras,
Que enfim isto de amor é um lindo traste[25].
Seguem-se, desde meados do século XVIII, os registos contidos no Palito Métrico e nas memórias do cantor e executante Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão (Óbidos, 1757; 1816). Malhão, aluno de Leis entre 1783-1789, refere expressamente que tocava “guitarra”, cantava e fazia teatro, com prestações em Coimbra, Lisboa, Lorvão, Torres Vedras e Sendelgas. O memorialista distingue a guitarra de outros cordofones como a “viola” e a “rabeca”. Quanto aos espaços de actuação, explicita serenatas nas ruas da Alta e portarias de colégios universitários (Militares, São Pedro), outeiros feitos em conventos femininos de Coimbra e arredores (Celas, Lorvão, Sendelgas) e festas de doutoramentos[26]. Malhão não descreve o tipo de instrumento utilizado nem o sistema de afinação então empregue. Seria a cítara popular de cravelhas de madeira, com escala plana, boca redonda coberta por rosácea, e cravelhas dorsais do tipo violino? Ou a guitarra inglesa de chapa metálica e chavinha, com escala plana de 12 pontos e boca ornada de rosácea? O executante citado deixou uma obra instrumental que por décadas foi popular nos meios estudantis, “Variações do Lundum do Malhão”, em compasso binário e tom de Fá Maior (manuscrito MM 361 da BGUC). Outra obra, de autor não identificado, situável pelo mesmo contexto e época é o instrumental “Lundum da Bahia” (manuscrito MM. 362 da BGUC).
Ainda na primeira década do século XIX, em tempo de instabilidade suscitada pela fuga da Família Real para o Brasil e Invasões Francesas, distinguiu-se em Coimbra como guitarrista e compositor ilustrado o estudante de Leis António Justiniano Baptista Botelho, oriundo de Escalos de Baixo, Castelo Branco. Botelho, instalado na Rua do Borralho, nº 153, frequentou Filosofia Racional e Moral no Real Colégio das Artes em 1805-1806, posto o que se matriculou na Faculdade de Leis no ano lectivo de 1807-1808. No 1º ano habitou na Rua dos Estudos, nº 14, no 2º ano fixou-se no Bairro de São Martinho, no 3º esteve no Marco da Feira, nº 65, e no 4º passou à Rua dos Grilos, nº 18. Terminou o 4º ano jurídico no ano lectivo de 1811-1812[27]. Botelho é autor de umas “Variações para Guitarra Inglesa”, com Tema e 6 Variações”, composição feita durante o período em que foi estudante.
Poderão ainda citar-se para a primeira metade do século XIX obras como:
-“Sonata Nº 1 para duas guitarras”, de António da Silva Leite (MM 766, da BGUC), compositor portuense que viveu entre 1759 e 1833;
-“Sonata Nº 2 para duas guitarras”, de António da Silva Leite (MM 767, da BGUC),
-“Varias Pessas para se tocar em Guitarra [Inglesa] do Anno de 1808” (manuscrito MM 351 da BGUC), de transcritor anónimo, contendo um vasto reportório de sabor barroco e palaciano, marcado por minuetos, gigas, contradanças, marchas e rondós. Quanto a autores, são mencionados nos cabeçalhos de alguns dos títulos os guitarristas Manuel Luís e o célebre Manuel José Vidigal (activo em Lisboa, 1763-1827). Algumas das composições do referido manuscrito estão reconstituídas por Pedro Caldeira Cabral nos seguintes trabalhos: PCC, LP “A Guitarra Portuguesa nos Salões do Século XVIII, Lisboa, Orfeu, LPP2, 1983 (Silva Leite, Vidigal); PCC, CD “Memórias da Guitarra Portuguesa (1). A Guitarra do Século XVIII (2)”, Vila Verde, Tradisom, TRAD 034-035, 2003[28];
-“Sonata para Guitarra, composta por B. J. V. S. G.” (manuscrito MM 539 da BGUC);
-“Tema da Molinaria com Variações de João Paulo Pereira” (manuscrito MM 663 da BGUC), reportado ao compositor Giovanni Paisiello (1741-1816), com Tema e 6 Variações para 1ª e 2ª guitarras, a que crescem “Valsa”, “Ingleza”, “Valsa”, “Waltz”, “Filha Mal Guardada”, “Valsa”, “Ingleza” e valsas (mais tardio este caderno, pois além de incorporar valsas, transcreve um trecho musical de “La Fille Mal Gardée”, composta em 1828 por Ferdinand Hérold).
Um lote de quadras cantadas no Fado Atroador, entre 1840-1845, indica que os estudantes conheciam a guitarra. Neste período (1840-1850) chegou a ser designada por bandurra, nomenclatura que o etnólogo José Alberto Sardinha demonstrou ser popular e que o poeta Bocage empregou em finais do século XVIII.
Não é possível determinar com rigor quando e onde a Guitarra Inglesa, que se usava em Coimbra desde o século XVIII, evoluiu em termos de modificação da escala, encordoamento e afinadores. O cruzamento das informações dispersas conduz-nos às décadas de 1820-1830, particularmente no que respeita à passagem da escala de 12 para 14 pontos e de 14 para 17. A rosácea de boca e o afinador de chavinha mantiveram-se duradouramente nas oficinas do Porto e de Coimbra. A consagração do leque metálico de 12 tarrachas não é anterior à década de 1860. Este dispositivo mereceu desde cedo os favores dos violeiros. No Porto rapidamente fez cair no esquecimento o antigo afinador de chavinha. Em Coimbra coesistiu com o afinador de chavinha até finais da década de 1880. Em Lisboa quase só era usado nas guitarrilhas de luxo, predominando as guitarras de fado com cravelhas de madeira. No entanto, a crescente adesão dos construtores activos em Lisboa à chapa de leque rapidamente conduziu na década de 1890 à invenção de um dispositivo de latão amarelo com 8 tarrachas para bandolins. Até meados do século XX, a moda lisboeta das cabeças de guitarra de Fado penetrara a arte do fabrico dos bandolins rurais e urbanos, cavaquinhos (leque de 4 tarrachas) e violas de arame (10 tarrachas nas braguesas e 12 nas violas da terra das ilhas centrais dos Açores).
Informações oriundas da tradição oral das oficinas conimbricenses, reportadas por Armando Simões, e outras detectadas na imprensa periódica regional, invalidam definitivamente as infundadas hipóteses da Família Lopes Vieira e de Armando Leça quanto à “entrada da guitarra em Coimbra no ano de 1870”. No ano lectivo de 1852-1853 o estudante da Faculdade de Matemática José Alberto de Oliveira Anchieta Portes Pereira de Sampaio, natural de Lisboa, notabilizou-se como executante de guitarra. Para a década de 1860, o estudante de Direito Antão de Vasconcelos (Mata Carochas, 1842-1915) refere expressamente o uso de guitarras, violas de arame e violões nas Fogueiras do São João da Alta de Coimbra. Francisco Martins de Carvalho, no elogio fúnebre do construtor conimbricense João dos Santos Couceiro, que se radicara no Brasil em 1871, refere que este construtor se notabilizara em Coimbra na Exposição Distrital de 1869 como fabricante de violas toeiras, violões, rabecas e guitarras (Cf. jornal “Conimbricense”, de 22/04/1905)[29].
Entre a década de 1880 e os alvores da Primeira Guerra Mundial tenderam a coexistir em Coimbra diversas tipologias de guitarras:
a) guitarrilha de Fado de Lisboa, de caixa pequena, boca redonda, escala de 17 pontos, chapa de leque e voluta enrolada, cujo modelo seria celebrizado por tocadores como Manuel dos Santos Melo, Jaime de Abreu, Augusto Hilário (entre 1895-1896), Ricardo Borges de Sousa e João de Deus Filho;
b) guitarra do Porto, com boca redonda (com e sem rosácea), escala de 17 pontos, chapa de leque, voluta floral, utilizada por amadores como Augusto Hilário, Manuel Mansilha, José Cochofel (usou um exemplar de 15 cordas) e Cândido de Viterbo;
c) requinta da Guitarra Toeira de Coimbra, de caixa piriforme pequena, escorada por duas travessas, boca redonda, escala alongada, tendencialmente plana, de 17 pontos, chapa de leque em latão e voluta oval sem arestas. Um dos mais antigos modelos da requinta aparece formulado pelo construtor Augusto Nunes dos Santos, em 1905, num exemplar comprado pelo estudante liceal Francisco Menano (depositado no Museu Académico);
d) Guitarra Toeira de Coimbra, com caixa piriforme escorada por duas travessas, boca redonda, ilhargas muito baixas (entre 4,5/5 cms ao cepo e 5,5/6,1cms ao atadilho), escala alongada, com ligeiro abaulamento, 17 pontos de latão, chapa de leque com 12 tarrachas, e voluta inicialmente floral, passando nos primeiros anos do século XX a oval sem aresta viva (Augusto Nunes dos Santos). Trata-se de uma solução regional que na esteira da Guitarra Inglesa, funde elementos organológicos da Guitarra do Porto com a moda da ilharga rebaixada da guitarrilha de luxo de Lisboa celebrizada por Augusto Hilário.
O violeiro Armando Neves declarou a Armando Simões ter sido o autor desta “invenção”, sensivelmente a partir de 1904. Cotejando documentos escritos com a análise detalhada de guitarras do acervo do Museu Académico (10/0172006) e outras que estavam na oficina de Fernando Meireles para restauro (15/02/2002), conclui-se: as declarações de Neves merecem algumas reservas pois trabalhou como ofical aprendiz na oficina de Santos; mestre e discípulo desenvolveram quase em simultâneo experiências organológicas que redundaram no primeiro modelo morfológico da Guitarra Toeira de Coimbra, modelo que em 1905 Santos já tinha estabilizado em termos de requinta. O modelo grande terá efectivamente sido burilado por Armando Neves, servindo de exemplificação a guitarra que o referido fabricante vendeu ao estudante Lucas Rodrigues Junot em 1920 (oficina sita na Rua Adelino Veiga, 46-48). O Museu Académico dispõe de alguns exemplares de época da Guitarra Toeira grande, que se tangia pela afinação natural no folclore, romarias e serenatas. Este cordofone fabricou-se nas oficinas conimbricenses até aos inícios da década de 1950, tendo sido o seu último representante Raul Simões: guitarra do estudante Jorge Alcino de Morais “Xabregas”, feita por Raul Simões, ca. 1930; guitarra do estudante Miguel Peres de Vasconcelos, feita por Raul Simões, na 2ª metade da década de 1920; guitarra de Flávio Rodrigues da Silva, utilizada pelo tocador ate 1950, todas depositadas no Museu Académico.
A afinação natural era, antes de mais, uma afinação de salão. Deste dispositivo resultava um som baço, de alcance limitado. Tudo indica que os tocadores populares de guitarra da Beira Litoral conheceriam outro dispositivo de afinação, ainda hoje por estudar. Assinale-se o caso de Antero da Veiga que adquiriu a sua primeira guitarra de chapa de chavinha em 1888 ao fabricante coimbrão Bento Martins Lobo. Natural de Coja, Arganil, Antero da Veiga aprendeu os primeiros rudimentos de guitarra e dispositivos de afinação com um tocador popular de Arganil.
Na década de 1880 a guitarra andava em mãos de tocadores populares domiliciados em vários concelhos da Beira Litoral. Admitimos que nem todos os tocadores empregariam a afinação natural. Antero da Veiga pode ter começado por dedilhar a guitarra com auxílio de um dispositivo de afinação popular, só mais tarde tendo aderido à afinação natural.
A guitarra toeira de 17 trastos foi o cordofone do Ultra-Romantismo serenil, signo da Belle Époque coimbrã, tendo potenciado nos meios académicos e populares uma crequinta de sons altos e estridentes (fabricada entre ca. 1905-1945). A afinação da Guitarra Toeira de 17 trastos é a mesma da sua requinta: Lá, Sol, Ré, Lá, Sol, Dó. Como é sabido, esta afinação foi iniciada pelo guitarrista Artur Paredes na década de 1920 e transmitida aos seus segundos guitarras Albano de Noronha, Afonso de Sousa e Felisberto Passos. A afinação de salão, herdada do século XVIII era Si, Sol, Mi, Si, Sol, Mi (natural), referindo Armando Simões a muito vulgarizada “afinação natural em dó”: Si, Lá, Mi, Si, Sol, Ré, que não obstante a troca do Lá pelo Sol na 5ª ordem, coincide com a chamada “afinação do Fado Corrido”.
A Guitarra Toeira foi tocada em salões particulares, hoteis, palcos, praias, casinos, romarias, arraiais, ruas e terreiros, termas, espaços fluviais. A requinta, mais recatada, andou pelas salas, cortejou os mimos da rabeca e do piano, arruou de quando em vez.
Guitarra Moderna de Coimbra
Partindo da Guitarra Toeira de Coimbra, Artur Paredes começou a desenvolver experiências visando a reforma do cordofone e a sua qualidade sonora. Os primeiros ensaios datam da segunda metade da década de 1920, congregando a avidez de Artur Paredes, as sugestões Guilherme Barbosa e as renitências de Raul Simões. Artur Paredes procurava um instrumento com uma sonoridade mais ampla e agressiva, adequado à sua personalidade e reportório. O executante de violão que lhe garantiu as gravações de 1927, Guilherme Barbosa, era também versado em violino. Barbosa convenceu Artur Paredes que não bastaria modificar dimensões e apurar madeiras, cavaletes, colas e polimentos. Na sua opinião era fulcral abandonar o braço tendiialmente plano da guitarra em uso e os pontos de latão. A pouco e pouco caminhou-se para uma busca lenta do alteamento das ilhargas, reforço da caixa com três travessas, criteriosa selecção de madeiras, colas e polimentos, aposta em cavaletes porosos, e reforma do braço com pronunciado abaulamento, aumento do número de pontos (de 17 para 22) e substituição dos trastos por estruturas de aço alteadas. Raul Simões mostrou-se pouco receptivo às indagações de Artur Paredes. Em finais dos anos 20 havia membros da Família Grácio que tinham na Alta de Coimbra uma pequena oficina de venda ao público, mais precisamente na Rua do S. Salvador, do lado oposto ao prédio onde foi habitar em 1951 o recém-casado José Afonso (nº 20). A partir desta “filial” conimbricense Artur Paredes desenvolve duradouros contactos com o construtor Kim Grácio, os quais se prolongarão até à entrada da década de 1950. Um sinal mais recuado deste encontro entre Artur Paredes e Kim Grácio teve lugar em 1931, quando o construtor reformou substancialmente a guitarra que o tocador usara nas gravações de 1927 (depositada no Museu Académico em 1960). Outro sinal reporta-se a uma fase de transição, exemplificada através de uma guitarra adquirida por Afonso de Sousa a João Pedro Grácio Júnior em 1937: o braço continua a manter 17 pontos, mas a ilharga foi alteada e a voluta daquiriu um configuração elementar em lágrima de aresta viva.
O novo modelo adquire a sua forma definitiva por 1940. A partir da década de 1950, mercê dos intensos debates/experiências havidos entre Artur Paredes, João Bagão e o construtor João Pedro Grácio Júnior, a nova guitarra pendeu para um modelo de caixa ainda mais alargada, de configuração hiper-robusta que, potenciando excelente sonoridade/rendimento, perdeu em graciosidade e elegância.
Foram primeiros praticantes e divulgadores do novo modelo Artur Paredes e Carlos Paredes. Só verdadeiramente em 22 de Maio de 1945, a propósito do sarau comemorativo dos 65 anos do Orfeon, a que se seguiu uma serenata na Sé Velha, em que participou Artur Paredes, os guitarristas académicos tomaram verdadeira consciência do novo modelo[30]. A nova guitarra divulgou-se lentamente, primeiro com João Bagão (1947), José Maria Amaral (1947), Petrónio Ricciuli (1953), António Pinho de Brojo (1954), António Portugal (ca. 1955)[31], Jorge Godinho (ca.1955), Afonso de Sousa e Jorge Tuna. No Porto, os fabricantes já exibiam o novo modelo por volta de 1959. Terá contribuído para a sua divulgação nos círculos de amadores portuenses o guitarrista Alexandre Brandão, conhecido entusiasta de tudo o que respeitava à arte de Artur Paredes.
A substituição da antiga pela nova guitarra nos círculos de cultores activos em Coimbra não foi inteiramente pacífica. Até à morte do tocador popular Flávio Rodrigues, a adopção do modelo parediano seria impensável. A Guitarra Toeira era considerada mais adequada ao tipo de reportórios praticados nas Fogueiras do São João, concertos de palco e recitais de salão. A desconfiança que envolveu a tímida divulgação da nova guitarra (aquisição directa a Artur Paredes, em Lisboa; campanha de promoção na casa Olímpio Medina), era extensiva a Artur Paredes, artista pouco simpático aos olhos da Sociedade Tradicional Futrica.
Rabeca
A rabeca é um violino de braço ligeiramente mais curto do que o modelo clássico, popularizado no mundo ocidental desde o século XVI a partir de Itália. Afina Mi, Lá, Ré, Sol. Correspondente à voz de soprano, é dotado de um timbre agudo, brilhante e por vezes algo estridente. A caixa de ressonância tem a configuração de um 8 imperfeito, com o bojo inferior mais avantajado. Sensivelmente a meio da caixa ficam os “ouvidos” ou “efes”, aberturas acústicas que possibilitam a amplificação do som. No interior da caixa de ressonância é colocando um cilindro de madeira, a “alma”, dispositivo que Artur Paredes e Kim Grácio chegaram a aplicar experimentalmente em guitarras do novo modelo, na segunda metade da década de 1940. O braço, abaulado, sem trastos, é percorrido por 4 cordas singelas de tripa de carneiro, aço cromado ou material sintético, que nascendo no estandarte, passam sobre o dorso do cavalete e vão fixar-se no cravelhal de madeira (semelhante ao das cítaras). A cabeça remata em voluta. O violino é tradicionalmente tocado com um arco de madeira em cujas extremidades encaixam fios de crina de cavalo que devem ser besuntados com breu. Este instrumento integrou tunas, tocatas populares ligadas aos arraiais dos santos populares, romeiros e serenatas. Era o “par” inseparável da viola toeira, possibilitando um toque de rasgado na viola de arame e um executar a melodia conforme o jeito do tocador. E nunca perdeu esta função, mesmo quando à tocata se foram juntando o violão e o bandolim. Para uma audição do desempenho da rabeca num tocador com larga experiência em Coimbra, Joaquim Arzileiro, ouça-se o CD “Cantares de Coimbra”, Coimbra, Grupo Folclórico de Coimbra, GfC-01, 1999, com 20 faixas sonoras de peças reconstituídas.
Rabecão
Outro instrumento intensamente empregue em Coimbra desde meados do século XIX nas serenatas fluviais académicas, Fogueiras de São João e serenatas fluviais futricas foi o rabecão, contrabaixo que coadjuvava o violão de cordas de aço no sublinhar dos baixos. Num postal ilustrado, alusivo ao pavilhão das Fogueiras de São João, do Largo do Romal, de Junho de 1903, o rabecão figura em grande plano. Nem todos os musicólgos sintonizam quanto à classificação do rabecão. Enquanto uns o situam na família do violino, outros há que negam tal relação, para tanto convocando as seguintes diferenças: costas vincadamente planas; ângulo acentuado entre a caixa e o braço; afinação com sistema de parafuso, em vez de cravelhame; afinação por quartas; a posição da mão no manejo do arco. De grandes dimensões, o rabecão toca-se habitualmente de pé, ou com apoio de um banco alto. O arco mais utilizado foi o de tipo francês, similar ao do violino, embora mais curto e robusto. A afinação usual neste instrumento é Mi, Lá, Ré, Sol. Surgido no século XVI, o rabecão viveu a sua época aurea em Coimbra entre 1830 e 1930. Da orquestra do Teatro Académico e dos demais teatros da cidade, saltou para as serenatas fluviais estudantis nos anos de 1850. A partir da década 1870 há notícias de incorporação nas Fogueiras de São João e nas serenatas fluviais futricas. Os modelos clássicos mais em voga chegados ao nosso tempo são o alemão (caixa de 122 cms), o italiano (caixa de 117 cms) e o francês (caixa de 114 cms). Contrabaixo e violoncelo foram frequentemente utilizados em Coimbra, entre a 2ª metade do século XIX e o 1º quartel do século XX em temas da CC correlacionados com récitas de despedida de quintanistas de Direito, Teologia e Medicina. Tenhamos presente um vasto reportório de palco, acompanhado por orquestra, cuja mais produção mais visível eram as baladas de despedida e os primitivos hinos de cursos. Não existem reconstituições disponíveis deste tipo de intervenções instrumentísticas, podendo servir de aproximação auditiva trabalhos como “Despedida de Coimbra” e “Noite Serena” (CD “Sine Musica nulla vita. Antigos Tunos da Universidade de Coimbra”, 1995, faixas 11 e 13), ou “Balada de Coimbra” e “Olhos Negros” (CD “15 anos depois… Antigos Tunos da Universidade de Coimbra”, 2000, faixas 8 e 9).
Flauta Travessa
A flauta travessa rivalizou em Coimbra com a rabeca nas danças, modas cantadas e serenatas. A sua utilização está bem documentada na cidade desde a segunda metade do século XVIII, sendo ainda muito ouvida no último quartel do século XIX. A flauta travessa, confeccionada em cana e sabugueiro, tinha sensivelmente 34 centímetros de comprimento, com seis furos no dorso, apresentando algumas um sétimo furo extra alinhamento, destinado ao polegar esquerdo.
Ferrinhos e Pandeiro
Também grangearam grande voga nos meios populares, sobretudo Fogueiras de São João, ranchos de romeiros e arraiais, os ferrinhos e o pandeiro de soalhas. Ambos chegaram a figurar em serenatas académicas e futricas. Aquando da fundação do Rancho das Tricanas de Coimbra, em 1937, foram logo adoptadas pandeiretas com fitas garridas.
Em data incerta, talvez na década de 1950, António Henriques Marques, antigo ensaiador do Rancho Regional de Águeda, e José Francisco de Oliveira, ex-dançarino do Rancho das Tricanas de Coimbra, organizaram no Brasil o Rancho Folclórico Tricanas de Coimbra da Cidade de Santos. Praticando um reportório de escala nacional, enquadrado pelas representações da FNAT, as fotografias deste rancho transmitem enorme falta de rigor no guarda roupa. À semelhança do Rancho das Tricanas de Coimbra, os elementos femininos da cidade de Santos pousavam de pandeireta fitada à cintura.
Seria correcto o uso da pandeireta? Da interrogação e da falta de informação dos alvitristas locais nasceu uma polémica violenta (A guerra das pandeiretas) de que encontramos eco em Duarte Santos, “Os ranchos de Coimbra e as pandeiretas”, in O Despertar , de 1 de Abril de 1970.
Sanfonas e Gaitas-de-Foles
Em finais do século XIX, os romeiros, vindos a Coimbra, entravam na cidade ao som de bombos, tambores, pífaros, gaitas de foles, castanholas, gaitas de beiços, harmónios, violões, guitarras. Chegavam aos milhares os peregrinos e romeiros em inícios de Julho, para os festejos da Rainha Santa. Nos areais do Mondego se pernoitava, merendava e dançava. Ia-se ao São Bento, de Pereira do Campo (Abril), Senhora do Desterro, em Tentúgal (Junho), a São Paulo de Frades (Agosto), à Senhora do Alto Monte, em Penacova (Setembro), ao Espírito Santo, em Santo António dos Olivais (Junho). De Coimbra saíam em Agosto numerosos ranchos de romeiros a caminho do Senhor da Serra (Semide). Nas paragens de descanso os romeiros cantavam e bailavam animadamente.
De Coimbra iam instrumentos e modas que se aclimatavam noutras terras. De fora chegavam gaiteiros, tamborileiros, cantores e bailarinos. Ao lado de instrumentos mais queridos e aceites, vislumbravam-se e ouviam-se outros menos comuns tocados pelos mendigos e pedintes que enxameavam as ruas e terreiros da Baixa.
Analisando por 1908, em tom condenatório a “miséria das ruas” e os “typos sociais”, o estudante de Direito e poeta colaborador das Fogueiras de São João Fortunato Mário Monteiro trouxe à luz do dia informações de grande interesse. Da Abrunheira, Montemor, vinha com regularidade a Coimbra o Cego da Abrunheira, cantador de improvisos e tocador de guitarra, acompanhado de competente moço de peditório. O Senhorinha, efeminado, ia “vender” a esposa às repúblicas de estudantes, armado de cavaquinho. Manuel Fortunato Lopes, de alcunha o Pedro do Pifano ou Manuel do Realejo (=sanfona), falecido circa 1908, cantava versos satíricos tendo animado as ruas durante longos anos com descantes, sanfona e pifano. Tocava e cantava a troco de moedas e de copos de vinho[32].
O uso da sanfona em Coimbra parece ser bastante antigo, remontando à tradição medieval. A sanfona ou “realejo” andou ligada à actividade de mendigos, ao pastoreio medieval (ver iluminuras de livros de horas) e a bailes populares do estilo dos documentados nos presépios barrocos setecentistas. Aqui e além aplicava-se-lhe o designativo de “sanfonina de cego”. A sanfona é considerada um cordofone, constituída por caixa de ressonância e braço, com a peculiaridade de as cordas serem friccionadas por uma roda accionada por manivela. O braço da sanfona comporta um teclado. Este instrumento medieval, praticamente desaparecido em Portugal, encontrou em Fernando Meireles o seu mais lídimo estudioso, construtor e executante[33].
Também se ouviram em Coimbra instrumentos esquecidos. Um deles foi o alaúde, expressamente indicado na partitura da “Balada de Despedida do 5º Ano de 1900”, que os irmãos Caetanos ainda utilizavam nas décadas de 1920-1930 em concertos e registos fonográficos.
Outros instrumentos, de raiz medieval[34], foram os tambores e gaitas de foles que ao longo de todo o Antigo Regime a edilidade alimentou na “folia da cidade”, grupo que abrilhantava procissões como a do Corpus Christi e cortejos oficiais[35]. Artistas amadores afamados, os gaiteiros garantiam também o acompanhamento de missas, as alvoradas festivas, os cortejos de estudantes da UC, festas de casamento, bailes rurais, romarias, peditórios para irmandades e confrarias, e procissões (fase anterior às filarmónicas). A dignificação da figura do gaiteiro era tal que nas procissões seguia logo atrás do pálio. O reportório dos gaiteiros não obedecia à reprodução de modas tradicionais, principiando sempre pelo “sinal da moda”, com passagem ao passo-dobrado, valsas, fados, viras, marchas, alvoradas e arruadas. A gaita de foles ganhou características distintivas nas mãos dos construtores activos em Coimbra, especialmente em povoados dos arrabaldes como Ribeira de Frades (a “terra dos gaiteiros”).
Os gaiteiros de Coimbra organizavam-se em trios de gaiteiro (função melódica), bombo e caixa (percussões). As gaitas de foles autóctones eram fabricadas por artesãos locais com pele de cabrito (fole grande, forrado), ponteiro (escala com orifícios), ronca de buxo com apliques de latão (tubo da dominante, mais largo e enfeitado com fitas garridas, que toca a nota de Sol) e o portavento ou soprete.
Instrumento e tocador prestavam-se a brejeirices de conotação fálica, tendo Nelson Correia Borges recolhido na Região de Coimbra duas quadras populares ilustrativas:
Eu hei-de casar est’ano,
Há-de ser pr’ó mês que vem;
O meu amor é gaiteiro,
Com a gaita ganha bem!
Eu hei-de casr est’ano,
C’uma cachopa qualquer,
P’ra tocar na minha gaita
As vezes que ela quiser![36]
Gravados e estudados por Ernesto Veiga de Oliveira nos inícios da década de 1960, o desaparecimento das festividades académicas entre 1969-1979 fez esmorecer os sons dos gaiteiros. A partir de 1979-80 voltariam a ter enorme visibilidade nos cortejos de Latadas e Queimas das Fitas. Alvo das atenções da Associação Gaita de Foles (http://www.gaitadefoles.net/), os gaiteiros da Região de Coimbra motivaram campanhas de recolhas por parte do estudioso Mário Correia:
-CD “Flamínio de Almeida. Gaiteiro do Casal da Misarela. Coimbra”, Sons da Terra Nº 6, STMC 0013, ano de 2000, com 10 faixas;
-CD “Eduardo Carvalho. Gaiteiro Ti Chico Gato. Ribeira de Frades. Coimbra”, Sons da Terra Nº 15, STMC 0531, ano de 2004, com 12 faixas;
-CD “Joaquim Carriço. Quinta do Valongo. Vacariça. Mealhada”, Sons da Terra Nº 16, STMC 052, ano de 2004, com 16 faixas.
Para terminar: fala de João Anjo
No término da 1ª Grande Guerra, os terreiros e ruas de Coimbra ainda vibravam com os ranchos de São João, os desfiles dos romeiros que iam e vinham. Ao nível da tocata, as coisas tinham mudado, e muito. Cavaquinhos e violas toeiras era raros ouvi-los na cidade. O rabecão mantinha-se. Influenciados directamente pelas filarmónicas e grupinhos de jazz, os ranchos da Baixa incorporavam clarinetes, trompetes e saxofones (presentes Rancho das Tricanas de Coimbra, fundado em 1937). Por toda a Beira Litoral os acordeons e sopros geravam crescente emulação.
O músico João de Oliveira Anjo (Ilhavo, 1916), instalado no Regimento de Artilharia 12, em 1938, começou a colaborar regularmente nas Fogueiras do Romal como clarinetista. De acordo com o testemunho que nos prestou em 12 de Janeiro de 2002, João Anjo rapidamente estabeleceu contactos com os meios musicais futricas, particularmente com Flávio Rodrigues (guitarrista) os Trego (pai e filho), Manuel Eliseu, o mandador Calmeirão. Conta-nos que na década de 1940 ainda era habitual os tocadores e cantores do Romal irem visitar os ranchos activos em Santa Clara, Celas e Alta. João Anjo não tem memória de acordeons nas Fogueiras e arraiais citadinos, invocando sim a presença de instrumentos de sopro nas Fogueiras activas fora do perímetro da Alta.
João Anjo, à data em que foi entrevistado, era o derradeiro tocador e compositor das Fogueiras de São João. Por um caderno de músicas manuscritas que nos cedeu, podemos ver que nos anos 40 e 50 compôs assinalável número de peças para o rancho do Romal e para o Rancho das Tricanas de Coimbra. Citemos, sem preocupação de exaustividade, Filigranas de Coimbra (1944), cantada por Isabel Contente no Grémio Operário, Santa Isabel de Aragão (1949), cantado na festa dos finalistas da Escola Comercial e Industrial Brotero por Rosa Amaral e Walter Figueiredo, Bocas são Rosas Vermelhas (1945, música de Manuel Eliseu, letra de João Anjo e José de Almeida), Ó Madrugada Silente (1944), Que marotos os teus olhos (1950), Ó estrelas lá do alto (1952, para o Rancho de Coimbra), Morena dos Meus Abrolhos (1944).
Nas derradeiras Fogueiras de São João havidas no que restava do Largo do Castelo, corria Junho de 1947, persistiam teimosamente os cordofones. Os Salatinas administrativamente expropriados e realojados em Celas perseveraram em levar as Fogueiras até ca. 1974. Por um apontamento do Emissor Regional desses anos podem ouvir-se um mandador de voz rouca, um clarinete chiante e um acordeon, em modas como o “Sou Marinheiro” e “À Porta do Lúcio”. Percebe-se que algo está a agonizar.
Sem pretender negar a evolução sofrida pela tocata tradicional coimbrã, a postura registada no interior dos grupos etnográficos e folclóricos, a partir da década de 1980, vai no sentido de uma triagem cuidadosa. Esta preocupação selectiva, tenta recuperar os instrumentos mais vincadamente característicos, afastando acordeãos, concertinas, tambores, pífaros, gaitas de beiços, clarinetes, castanholas.
ANOTAÇÕES
[1] Nelson Correia Borges, “Espectáculo convívio. Apresentação do Grupo Folclórico de Coimbra”, in Alta de Coimbra. História. Arte. Tradição. Actas do 1º Encontro sobre a Alta de Coimbra, Coimbra, Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1988, pág. 263.
[2] Cf. Arnaldo Pinto Cardoso, O Presépio Barroco Português, Lisboa, Bertrand Editora, 2003.
[3] Kurt Pahlen, Nova História Universal da Música, Volume 2, 2ª edição, São Paulo, Melhoramentos, 1993, p. 269.
[4] Mais desenvolvimentos, com incursões de campo, em Salwa Castelo Branco e Jorge Branco, Vozes do Povo. A Folclorização de Portugal, Oeira, Celta Editora, 2003.
[5] Para o respectivo enquadramento, origens e popularização, José Alberto Sardinha, Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 347-388.
[6] Os tocadores açorianos e alentejanos de viola de arame, na ausência de estojo, costumavam guardar as violas na cama de casal, com as cordas sobre o lençol (julgo que esta prática se repetiria noutras regiões). José Alberto Sardinha dá conta de uma quadra ilustrativa: “Viola, minha viola/Viola, minha querida/Dormes comigo na cama/Serves-me de rapariga”. Cf. autor citado, “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, p. 141.
[7] Não considero as recolhas de exemplares de instrumentos por Michel’Angelo Lambertini (1862-1920), reportadas em 1914, como acções de salvaguarda.
[8] Sublinhe-se a notória semelhança com as tradições musicais dos Açores onde os tambores e pandeiretas eram utilizados unicamente nas folias do Divino Espírito Santo e nos ranchos de Natal. Nas primitivas gravações do Grupo Folclórico da Casa do Povo da Candelária, Concelho da Madelena, Ilha do Pico, além da viola da terra ao rasgado e com a mesma afinação da toeira, os tocadores ainda executam as percursões nos violões.
[9] António Borges de Figueiredo, Coimbra Antiga e Moderna, Lisboa, Livraria Ferreira, 1886, págs. 286-290; no mesmo sentido, José Branquinho de Carvalho, Coimbra Quinhentista. Evocação de um século de grandezas e misérias, Coimbra, 1948, pág. 15.
[10] O mesmo sucedia nas ilhas centrais e ocidentais dos Açores, onde a viola da terra era simplesmente designada por “viola” e “viola de arame”. A expressão “viola da terra” foi cunhada na ilha de São Miguel e daqui irradiou para as restantes ilhas. As eventuais origens do termo “viola campaniça” foram percorridas por José Alberto Sardinha, Viola Campaniça. O outro Alentejo, Vila Verde, Tradisom, 2001. Relativamente à “viola braguesa”, a designação reportar-se-ia à cidade de Braga. Alberto Pimentel, As alegres canções do norte, Lisboa, Livraria Viúva Tavares Cardoso, 1905, pág. 21, anota a expressão “viola chuleira”para a região minhota. Esta viola é correntemente designada na Região do Porto por “Ramaldeira”, em referência à abundante arte de violaria no Bairro de Ramalde. Camilo Castelo Branco, evocando laivos da sua juventude boémia na cidade do Porto antes de 1845, diz expressamente que tocava Viola Chuleira, isto é, a “braguesa” de 5 ordens duplas, boca redonda, escala de 10 pontos e cravelhame de madeira, que podia comportar aquilo a que se veio a chamar “afinação da do Fado da Mouraria”. Cf. Camilo Castelo Branco, “Cavar em Ruínas”, Porto, 1867. Sobre o mesmo assunto, vide Artur de Magalhães Basto, “Um cábula de génio. Camilo estudante da Politécnica”, in Porto Académico, Nº único, ano de 1937, p. 7
[11] Crónica reproduzida pelo mesmo Octaviano de Sá, Nos domínios de Minerva. Aspectos e Episódios da vida coimbrã, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1939, pág. 210.
[12] Armando Leça, Música Popular Portuguesa, 2ª edição, Porto, Editorial Domingos Barreira, s/d, pág. 120 (1ª edição de 1945).
[13] O número de ordens da toeira (e respectiva afinação) é rigorosamente o mesmo utilizado na Viola da Terra de modelo geral açoriano, exceptuando os peculiarismos de em São Miguel e Santa Maria as primas serem afinadas em Ré (Cf. Ricardo Melo, “Manual de apoio ao estudo da Viola da Terra Micaelense”, Ponta Delgada, DRAC, 2005) e de na Ilha Terceira se acrescentar uma sexta ordem (tripla) em Mi.
[14] Este instrumento musical foi merecedor de alguma atenção em Coimbra. Em 1985 o antigo FAOJ (=Instituto da Juventude) sustentou uma classe de cavaquinho onde foi aprendiz o futuro construtor Fernando Meireles Pinto. Cf. Mário Afonso, “Entrevista com o construtor de instrumentos Fernando Meireles Pinto”, revista A SEBENTA, Nº 1, 1986, p. 24.
[15] Anote-se a incorrecção de Luís Henrique, Instrumentos Musicais, 2ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, pág. 163, quando afirma “Existem dois tipos de cavaquinho, o minhoto e o de Lisboa (...)”.
[16] Alguns destes instrumentos são visíveis em 3ª fila na primeira fotografia conhecida da TAUC, feita em 1888, impressa na capa da partitura da valsa “Complaisance”, do regente Simões Barbas. Em todos esses bandolins pá e cravelhal são de madeira.
[17] Mais dados em Flávio Pinho, “João dos Santos Couceiro. Evocação de um ilustre musico conimbricense, no centenário da sua morte”, Comunicação apresentada nas III Jornadas de Temática Musical, organizadas pela Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, Coimbra, 04 de Novembro de 2005. Edição on line no Blog “guitarradecoimbra” em 20 de Novembro de 2005, com consulta nessa mesma data.
[18] Sobejamente divulgada em Coimbra por Artur Paredes e Carlos Paredes nos festejos do Orfeon, ocorridos em 22 de Maio de 1945. Salvaguardando as primeiras adesões de João Bagão e José Amaral, costuma fixar-se como data de aceitação local do novo modelo o ano de 1954, altura em que António Pinho de Brojo adquiriu a sua guitarra de novo formato e com ela participou na digressão do Orfeon ao Brasil.
[19] Afonso Lopes Vieira Nasceu em Leiria a 26 de Janeiro de 1878 e faleceu na cidade de Lisboa em 25 de Janeiro de 1946. Estdou Direito da UC entre 1894-1900.
[20] Armando Lopes Leça, musicólogo e folclorista, autor de extensa obra, ligado à política cultural do Estado Novo. Nasceu em Leça da Palmeira em 09 de Agosto de 1893 e faleceu em Vila Nova de Gaia no dia 20 de Janeiro de 1977. Antifadista, Leça pertencia a uma corrente de pensamento (partilhada por homens como Alberto Pimentel), segundo a qual o Fado enquanto fenómeno mórbido-degenerescente só havia “contaminado” as populações do “sul” de Portugal.
[21] Digitalização de um exemplar da Biblioteca Naciona disponível em http://purl.pt/.
[22] Cf. Pedro Caldeira Cabral, “Guitarra Portuguesa”, in Ernesto Veiga de Oliveira, “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, 3ª Edição, Lisboa, Fundação Caloust Gulbenkian/Museu Nacional de Etnologia, 2000, pp. 194-1999 (o autor já marcara presença na 2ª edição desta obra, em 1982); idem, “A Guitarra Portuguesa”, Alfragide, Círculo de Leitores, 1999. Quanto a José Alberto Sardinha, vide “Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 408-444; idem, “A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, in A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001, Lisboa, Estar, 2002, pp. 117-122. Esta “tese” tem sido veementemente contestada pelos docentes de Música da Universidade de Évora, Manuel Morais e Rui Vieira Nery, para quem prevalece a teoria da origem britânica, perfilhada por António da Silva Leite (“Estudo de Guitarra”, Porto, 1796) e Armando Simões (“A Guitarra. Bosquejo Histórico”, Évora, Edição do Autor, 1974). Para uma crítica mais detalhada ao assunto veja-se Manuel Morais, “A Guitarra Portuguesa. Das suas origens setecentistas aos finais do século XIX”, comunicação apresentada no simpósio realizado pela Universidade de Évora em 2001 editado a pp. 95-116 das actas supra-citadas; no mesmo sentido, de Rui Nery, o texto “A Guitarra Portuguesa em estudo. Novos problemas, novos contributos e novas metodologias. Nota introdutória”, servindo de prefácio às Actas do Simpósio da Universidade de Évora, op. cit., pp. 9-14; em modo de crítica mais empolgada a Caldeira Cabral, leia-se Rui Viera Nery, “Para uma História do Fado”, Lisboa, Edição Público, 2004, pp. 280-281. No que concerne ao uso (e abuso) da expressão eclético-metafísica “guitarra portuguesa”, merece reflexão comparativa o estudo de Nuno Rosmaninho Rolo, “A «Casa Portuguesa» e outras «Casas Nacionais»”, in Revista da Universidade de Aveiro. Letras, Nºs 19/20, 2002-2003, pp. 225-250.
[23] Jorge Ferreira de Vasconcelos, Comédia Eufrósina, Lisboa, Imprensa Nacional, 1919, pág. 42. O mesmo ditado, com a palavra “cítara”, seria recolhido na 2ª metade do século XIX por T. Braga. Cf. Teófilo Braga, “O Povo Português nis seus costumes, crenças e tradições”, 2ª edição, Volume II, Lisboa, D. Quixote, 1986, p. 258 (1ª edição de 1885).
[24] Cf. José Oliveira Barata, António José da Silva. Criação e Realidade, Volume I, Coimbra, Edição do Serviço de Documentação e Publicações da UC, 1985, pp. 150-151.
[25] António José da Silva, Guerras do Alecrim e Mangerona. Opera jocoseria que se representou no Theatro do Bairro Alto de Lisboa, no Carnaval de 1737, Coimbra, França Amado Editor, 1905, pág. 15 (prefácio e transcrição de Mendes dos Remédios).
[26] Francisco M. G. S. Malhão, Vida e Feitos de…, Tomo I, 3ª Edição, Lisboa, Na Typographia de J. M. Campos, 1824, p. 176, pp. 209-210, pp. 223-224; idem, Tomo II, pp. 6-7-8, p. 94 e p. 119.
[27] Dados conforme a Relação dos Estudantes matriculados na Universidade de Coimbra no ano lectivo de 1805 para 1806, Coimbra, Imprensa da UC, 1806, p. 51; idem, anuários até 1811-1812.
[28] No livreto do duplo CD de 2003, PCC reafirma as hipóteses germinais anteriores.
[29] Leia-se Flávio Pinho, “João dos Santos Couceiro. Evocação de um ilustre músico conimbricense. No centenário da sua morte”. Comunicação apresentada por Flávio Pinho nas III Jornadas de Temática Musical organizadas pela Associação dos Antigos Tunos da UC, Coimbra, 04 de Novembro de 2005. Texto integral editado no Blog “guitarradecoimbra” em 20 de Novembro de 2005.
[30] Participaram na serenata da Sé Velha, outras figuras, entre elas, Armando do Carmo Goes, Manuel Simões Julião e António Veiga Nani. Além da serenata no adro da Sé Velha, actuaram no sarau do 65º aniversário do Orfeon Académico: peças instrumentais por Artur Paredes, Carlos Paredes, Afonso de Sousa e Arménio Silva; árias cantadas por José Paradela de Oliveira, acompanhado por João Carlos Bagão Moisés e Arménio Silva; árias cantadas por José Roseiro Boavida, acompanhado por Afonso de Sousa e Arménio Silva.
[31] No dia 30 de Abril de 1955 decorreu uma “serenata monumental” na Sé Velha, integrada nas comemorações das Bodas de Diamante do Orfeon Académico. Integravam a formação António Portugal/Jorge Godinho/Manuel Pepe/Levi Baptista e José Henrique Rodrigues Dias/Higino Casquilho de Faria/Lacerda e Megre/Fernando Rolim. Pela fotografia então tirada se pode observar que Portugal e Godinho já exibem as guitarras de novo modelo. Cf. Comemoração das Bodas de Diamante do Orfeon Académico de Coimbra. 1880-1955, Coimbra, 1956, pág. 177.
[32] Mário Monteiro, Typos de Coimbra, Lisboa, Livraria Editora Guimarães & Cª., 1908 (obra ilustrada).
[33] Promotor do grupo REALEJO, com quem gravou o CD “Sanfonia”, Lisboa, Movieplay, PE 51. 023, 1995, com 16 faixas.
[34] Referências documentais e iconográficas em Maria Manuela Braga, “Marginalia satírica nos Cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal”, in MEDIEVALISTA ON LINE, Ano 1, Nº 1, 2005, site http://www.fcsh.unl.pt/.
[35] Veja-se José Branquinho de Carvalho, “Coimbra Quinhentista”, Coimbra, Separata do Arquivo Coimbrão, Volume X, 1948.
[36] Nelson Correia Borges, “Coimbra e Região”, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 50.
[1] Nelson Correia Borges, “Espectáculo convívio. Apresentação do Grupo Folclórico de Coimbra”, in Alta de Coimbra. História. Arte. Tradição. Actas do 1º Encontro sobre a Alta de Coimbra, Coimbra, Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1988, pág. 263.
[2] Cf. Arnaldo Pinto Cardoso, O Presépio Barroco Português, Lisboa, Bertrand Editora, 2003.
[3] Kurt Pahlen, Nova História Universal da Música, Volume 2, 2ª edição, São Paulo, Melhoramentos, 1993, p. 269.
[4] Mais desenvolvimentos, com incursões de campo, em Salwa Castelo Branco e Jorge Branco, Vozes do Povo. A Folclorização de Portugal, Oeira, Celta Editora, 2003.
[5] Para o respectivo enquadramento, origens e popularização, José Alberto Sardinha, Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 347-388.
[6] Os tocadores açorianos e alentejanos de viola de arame, na ausência de estojo, costumavam guardar as violas na cama de casal, com as cordas sobre o lençol (julgo que esta prática se repetiria noutras regiões). José Alberto Sardinha dá conta de uma quadra ilustrativa: “Viola, minha viola/Viola, minha querida/Dormes comigo na cama/Serves-me de rapariga”. Cf. autor citado, “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, p. 141.
[7] Não considero as recolhas de exemplares de instrumentos por Michel’Angelo Lambertini (1862-1920), reportadas em 1914, como acções de salvaguarda.
[8] Sublinhe-se a notória semelhança com as tradições musicais dos Açores onde os tambores e pandeiretas eram utilizados unicamente nas folias do Divino Espírito Santo e nos ranchos de Natal. Nas primitivas gravações do Grupo Folclórico da Casa do Povo da Candelária, Concelho da Madelena, Ilha do Pico, além da viola da terra ao rasgado e com a mesma afinação da toeira, os tocadores ainda executam as percursões nos violões.
[9] António Borges de Figueiredo, Coimbra Antiga e Moderna, Lisboa, Livraria Ferreira, 1886, págs. 286-290; no mesmo sentido, José Branquinho de Carvalho, Coimbra Quinhentista. Evocação de um século de grandezas e misérias, Coimbra, 1948, pág. 15.
[10] O mesmo sucedia nas ilhas centrais e ocidentais dos Açores, onde a viola da terra era simplesmente designada por “viola” e “viola de arame”. A expressão “viola da terra” foi cunhada na ilha de São Miguel e daqui irradiou para as restantes ilhas. As eventuais origens do termo “viola campaniça” foram percorridas por José Alberto Sardinha, Viola Campaniça. O outro Alentejo, Vila Verde, Tradisom, 2001. Relativamente à “viola braguesa”, a designação reportar-se-ia à cidade de Braga. Alberto Pimentel, As alegres canções do norte, Lisboa, Livraria Viúva Tavares Cardoso, 1905, pág. 21, anota a expressão “viola chuleira”para a região minhota. Esta viola é correntemente designada na Região do Porto por “Ramaldeira”, em referência à abundante arte de violaria no Bairro de Ramalde. Camilo Castelo Branco, evocando laivos da sua juventude boémia na cidade do Porto antes de 1845, diz expressamente que tocava Viola Chuleira, isto é, a “braguesa” de 5 ordens duplas, boca redonda, escala de 10 pontos e cravelhame de madeira, que podia comportar aquilo a que se veio a chamar “afinação da do Fado da Mouraria”. Cf. Camilo Castelo Branco, “Cavar em Ruínas”, Porto, 1867. Sobre o mesmo assunto, vide Artur de Magalhães Basto, “Um cábula de génio. Camilo estudante da Politécnica”, in Porto Académico, Nº único, ano de 1937, p. 7
[11] Crónica reproduzida pelo mesmo Octaviano de Sá, Nos domínios de Minerva. Aspectos e Episódios da vida coimbrã, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1939, pág. 210.
[12] Armando Leça, Música Popular Portuguesa, 2ª edição, Porto, Editorial Domingos Barreira, s/d, pág. 120 (1ª edição de 1945).
[13] O número de ordens da toeira (e respectiva afinação) é rigorosamente o mesmo utilizado na Viola da Terra de modelo geral açoriano, exceptuando os peculiarismos de em São Miguel e Santa Maria as primas serem afinadas em Ré (Cf. Ricardo Melo, “Manual de apoio ao estudo da Viola da Terra Micaelense”, Ponta Delgada, DRAC, 2005) e de na Ilha Terceira se acrescentar uma sexta ordem (tripla) em Mi.
[14] Este instrumento musical foi merecedor de alguma atenção em Coimbra. Em 1985 o antigo FAOJ (=Instituto da Juventude) sustentou uma classe de cavaquinho onde foi aprendiz o futuro construtor Fernando Meireles Pinto. Cf. Mário Afonso, “Entrevista com o construtor de instrumentos Fernando Meireles Pinto”, revista A SEBENTA, Nº 1, 1986, p. 24.
[15] Anote-se a incorrecção de Luís Henrique, Instrumentos Musicais, 2ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, pág. 163, quando afirma “Existem dois tipos de cavaquinho, o minhoto e o de Lisboa (...)”.
[16] Alguns destes instrumentos são visíveis em 3ª fila na primeira fotografia conhecida da TAUC, feita em 1888, impressa na capa da partitura da valsa “Complaisance”, do regente Simões Barbas. Em todos esses bandolins pá e cravelhal são de madeira.
[17] Mais dados em Flávio Pinho, “João dos Santos Couceiro. Evocação de um ilustre musico conimbricense, no centenário da sua morte”, Comunicação apresentada nas III Jornadas de Temática Musical, organizadas pela Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, Coimbra, 04 de Novembro de 2005. Edição on line no Blog “guitarradecoimbra” em 20 de Novembro de 2005, com consulta nessa mesma data.
[18] Sobejamente divulgada em Coimbra por Artur Paredes e Carlos Paredes nos festejos do Orfeon, ocorridos em 22 de Maio de 1945. Salvaguardando as primeiras adesões de João Bagão e José Amaral, costuma fixar-se como data de aceitação local do novo modelo o ano de 1954, altura em que António Pinho de Brojo adquiriu a sua guitarra de novo formato e com ela participou na digressão do Orfeon ao Brasil.
[19] Afonso Lopes Vieira Nasceu em Leiria a 26 de Janeiro de 1878 e faleceu na cidade de Lisboa em 25 de Janeiro de 1946. Estdou Direito da UC entre 1894-1900.
[20] Armando Lopes Leça, musicólogo e folclorista, autor de extensa obra, ligado à política cultural do Estado Novo. Nasceu em Leça da Palmeira em 09 de Agosto de 1893 e faleceu em Vila Nova de Gaia no dia 20 de Janeiro de 1977. Antifadista, Leça pertencia a uma corrente de pensamento (partilhada por homens como Alberto Pimentel), segundo a qual o Fado enquanto fenómeno mórbido-degenerescente só havia “contaminado” as populações do “sul” de Portugal.
[21] Digitalização de um exemplar da Biblioteca Naciona disponível em http://purl.pt/.
[22] Cf. Pedro Caldeira Cabral, “Guitarra Portuguesa”, in Ernesto Veiga de Oliveira, “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, 3ª Edição, Lisboa, Fundação Caloust Gulbenkian/Museu Nacional de Etnologia, 2000, pp. 194-1999 (o autor já marcara presença na 2ª edição desta obra, em 1982); idem, “A Guitarra Portuguesa”, Alfragide, Círculo de Leitores, 1999. Quanto a José Alberto Sardinha, vide “Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000, pp. 408-444; idem, “A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, in A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional. Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001, Lisboa, Estar, 2002, pp. 117-122. Esta “tese” tem sido veementemente contestada pelos docentes de Música da Universidade de Évora, Manuel Morais e Rui Vieira Nery, para quem prevalece a teoria da origem britânica, perfilhada por António da Silva Leite (“Estudo de Guitarra”, Porto, 1796) e Armando Simões (“A Guitarra. Bosquejo Histórico”, Évora, Edição do Autor, 1974). Para uma crítica mais detalhada ao assunto veja-se Manuel Morais, “A Guitarra Portuguesa. Das suas origens setecentistas aos finais do século XIX”, comunicação apresentada no simpósio realizado pela Universidade de Évora em 2001 editado a pp. 95-116 das actas supra-citadas; no mesmo sentido, de Rui Nery, o texto “A Guitarra Portuguesa em estudo. Novos problemas, novos contributos e novas metodologias. Nota introdutória”, servindo de prefácio às Actas do Simpósio da Universidade de Évora, op. cit., pp. 9-14; em modo de crítica mais empolgada a Caldeira Cabral, leia-se Rui Viera Nery, “Para uma História do Fado”, Lisboa, Edição Público, 2004, pp. 280-281. No que concerne ao uso (e abuso) da expressão eclético-metafísica “guitarra portuguesa”, merece reflexão comparativa o estudo de Nuno Rosmaninho Rolo, “A «Casa Portuguesa» e outras «Casas Nacionais»”, in Revista da Universidade de Aveiro. Letras, Nºs 19/20, 2002-2003, pp. 225-250.
[23] Jorge Ferreira de Vasconcelos, Comédia Eufrósina, Lisboa, Imprensa Nacional, 1919, pág. 42. O mesmo ditado, com a palavra “cítara”, seria recolhido na 2ª metade do século XIX por T. Braga. Cf. Teófilo Braga, “O Povo Português nis seus costumes, crenças e tradições”, 2ª edição, Volume II, Lisboa, D. Quixote, 1986, p. 258 (1ª edição de 1885).
[24] Cf. José Oliveira Barata, António José da Silva. Criação e Realidade, Volume I, Coimbra, Edição do Serviço de Documentação e Publicações da UC, 1985, pp. 150-151.
[25] António José da Silva, Guerras do Alecrim e Mangerona. Opera jocoseria que se representou no Theatro do Bairro Alto de Lisboa, no Carnaval de 1737, Coimbra, França Amado Editor, 1905, pág. 15 (prefácio e transcrição de Mendes dos Remédios).
[26] Francisco M. G. S. Malhão, Vida e Feitos de…, Tomo I, 3ª Edição, Lisboa, Na Typographia de J. M. Campos, 1824, p. 176, pp. 209-210, pp. 223-224; idem, Tomo II, pp. 6-7-8, p. 94 e p. 119.
[27] Dados conforme a Relação dos Estudantes matriculados na Universidade de Coimbra no ano lectivo de 1805 para 1806, Coimbra, Imprensa da UC, 1806, p. 51; idem, anuários até 1811-1812.
[28] No livreto do duplo CD de 2003, PCC reafirma as hipóteses germinais anteriores.
[29] Leia-se Flávio Pinho, “João dos Santos Couceiro. Evocação de um ilustre músico conimbricense. No centenário da sua morte”. Comunicação apresentada por Flávio Pinho nas III Jornadas de Temática Musical organizadas pela Associação dos Antigos Tunos da UC, Coimbra, 04 de Novembro de 2005. Texto integral editado no Blog “guitarradecoimbra” em 20 de Novembro de 2005.
[30] Participaram na serenata da Sé Velha, outras figuras, entre elas, Armando do Carmo Goes, Manuel Simões Julião e António Veiga Nani. Além da serenata no adro da Sé Velha, actuaram no sarau do 65º aniversário do Orfeon Académico: peças instrumentais por Artur Paredes, Carlos Paredes, Afonso de Sousa e Arménio Silva; árias cantadas por José Paradela de Oliveira, acompanhado por João Carlos Bagão Moisés e Arménio Silva; árias cantadas por José Roseiro Boavida, acompanhado por Afonso de Sousa e Arménio Silva.
[31] No dia 30 de Abril de 1955 decorreu uma “serenata monumental” na Sé Velha, integrada nas comemorações das Bodas de Diamante do Orfeon Académico. Integravam a formação António Portugal/Jorge Godinho/Manuel Pepe/Levi Baptista e José Henrique Rodrigues Dias/Higino Casquilho de Faria/Lacerda e Megre/Fernando Rolim. Pela fotografia então tirada se pode observar que Portugal e Godinho já exibem as guitarras de novo modelo. Cf. Comemoração das Bodas de Diamante do Orfeon Académico de Coimbra. 1880-1955, Coimbra, 1956, pág. 177.
[32] Mário Monteiro, Typos de Coimbra, Lisboa, Livraria Editora Guimarães & Cª., 1908 (obra ilustrada).
[33] Promotor do grupo REALEJO, com quem gravou o CD “Sanfonia”, Lisboa, Movieplay, PE 51. 023, 1995, com 16 faixas.
[34] Referências documentais e iconográficas em Maria Manuela Braga, “Marginalia satírica nos Cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal”, in MEDIEVALISTA ON LINE, Ano 1, Nº 1, 2005, site http://www.fcsh.unl.pt/.
[35] Veja-se José Branquinho de Carvalho, “Coimbra Quinhentista”, Coimbra, Separata do Arquivo Coimbrão, Volume X, 1948.
[36] Nelson Correia Borges, “Coimbra e Região”, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 50.
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