sábado, março 24, 2007

Expansão do fenómeno tunante


Baptismo de uma caloira na Tuna de Pau
O fenómeno tunante estudantil continua por estudar, sobretudo em Portugal. Quando tudo fazia crer que a fundação de tunas era apenas um movimento febricitante português e espanhol, eis que o modelo espanhol se transforma num produto cultural e turístico de exportação.
A fotografia, extraída do site oficial da Tuna do Distrito de Pau, fundada em 1999 (Bordes, sul de França), dá conta de uma tuna mista de modelo salmantino, num momento de admissão de uma nova sócia. O aspecto ligth e divertido não oculta porém os contornos de uma investidura, com empossante e empossada, falas rituais, solicitação de admissão de joelhos e subsquente atribuição de um objecto simbólico. Das clássicas tradições académicas detestadas pelo seu pendor impositivo, como que se passou para uma situação inversa de procura voluntarista/consentida, cujo único critério de legitimação parece residir no "very fun".
Numa França onde as "bisutages" são proibidas pelo Ministério da Educação, e onde os movimentos laicistas e abolicionistas deixaram rasto, não deixa de causar alguma perplexidade este regresso aos rituais e aos trajes, movimento que se faz sentir com muito mais intensidade no universo das confrarias gastronómicas e vinícolas. Aí, a ritualização é bem mais pomposa, numa retoma revivalista do "sacre" (coroação régia) e da investidura dos cavaleiros medievais.
Seguindo de perto as informações e ligações constantes deste site, fica-se a saber que a Tuna de Pau mantém contactos com pelo menos seis tunas portugueses e diversas espanholas. Estudantes de Paris, Bruxelas, Munique e Holanda fundaram já tunas de modelo espanhol. O mesmo acontece quanto a tunas indicadas para o México, Porto Rico, Peru e Chile.
Quem passou por Coimbra em finais dos anos de 1970, inícios de 80, não deixou de ouvir acusões usadas para apoucar os que viveram activamente a chamada "Restauração das Tradições e da Praxe".
Os exemplos que temos vindo a levantar no plano internacional relativamente a "Alguns Chapéus de Estudantes", e agora a estas "Tunas à Espanhola", demonstram que alguns adjectivos são "polissémicos"... uma coisa é certa: quem tinha teres e haveres para restaurar, restaurou-os conforme o engenho e a arte. Quem os não tinha, tratou de inventá-los. Quem agora os não tem, vai buscá-los a Espanha. Caso para perguntar, afinal onde estão os estudantes dos países ditos mais progressistas e civilizados?
Conforme anotava A. Silva em apostila de 13/03/2007 ao texto "Traje Académico? Ou Trajes Académicos?" (cf. Blog, 11/03/2007), muitas das invenções festivas e vestimentárias incorporadas no universo académico português pelas décadas de 1980/1990, se ainda não eram tradições académicas em sentido estrito, já estavam em processo de desuso nas comunidades populares regionais, podendo considerar-se folclores passivos ou disfuncionais.
Este alerta avançado por A. Silva afigura-se-nos deveras estimulante do ponto de vista da prospecção etno-antropológica, pois a invenção de tradições estudantis nas décadas de 1980/1990 não foi diferente dos processos de invenção e de sacralização de tradições observado no passado mais recuado.
Antropologicamente falando, as tradições começam justamente por não o ser! É a repetição de certas festividades, rituais e cerimónias, que confere à novidade ou aos objectos banais do quotidiano o carácter de "tradições". A cultura ocidental está repleta de exemplos de tradições inventadas, que na sua fase inicial não se distinguam daquilo que hoje designamos por "folclore". O que eram os hábitos talares dos beneditinos e dos franciscanos nos anos iniciais da fundação daquelas ordens monásticas? Não era o escapulário preto de duas abas adoptado por São Bento um simples avental camponês de trabalho que se prendia nos flancos com dois atilhos? Não era a túnica grosseira de baeta dos franciscanos o traje ordinário dos camponeses europeus medievais? Não eram as antigas latadas dos estudantes de Coimbra uma variante das latadas de noivos que se faziam nas aldeias portugueses aos recém-casados e nubentes viúvos? E a Queima das Fitas de Coimbra, o Enterro do Galo do Liceu de Beja, o Enterro da Gata do Liceu de Braga (e Universidade do Minho), o Enterro da Bicha do Liceu de Ponta Delgada e o Enterro da Farpa dos académicos portuenses, não eram réplicas burlescas e de crítica social a festividades arcaicas e carnavalescas próximas da Queima do Judas, Serração da Velha, Enterro do Bacalhau? E a Procissão dos Caloiros, de que temos notícia nos antigos Liceus de Ponta Delgada e Guarda, seria assim tão diferente das procissões religiosas católicas (antigas procissões do Corpo de Deus e dos Nus), de certas festividades romanas, da Festa dos Loucos, da Festa de Santo Estêvão (com fortes tradições em Trás-os-Montes), da Festa do Burro, da Festa dos Maridos Cornos*, da Festa do São Nicolau dos Estudantes (vide Nicolinas, Liceu de Guimarães)?
Fonte: Tuna de Distrito de Pau, http://www.distrituna.net/.
Nota*: as Festas dos Cornos ou de São Marcos, celebradas a 25 de Abril nas aldeias das Ilhas centrais dos Açores e nos Países Baixos, ultrapassaram a Revolução de 1974. Quando o governo português fez instaurar o 25 de Abril como feriado nacional, a iniciativa mereceu a maior galhofa nos ilhas do Pico, Faial e Flores. Então o dia oficial dos maridos cornos era agora pomposamente declarado feriado nacional?
AMNunes

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