sábado, março 24, 2007


Prisão académica (3)
Fachada principal do Colégio de São Boaventura, demolido em 1949 para dar lugar à nova Faculdade de Letras, onde funcionou a última Cadeia da Universidade de Coimbra no período compreendido entre 1834-1910.
A artéria descendente é a Rua do Norte que deslizava entre os colégios de São Boaventura e o de Lóios (cujo cunhal se divisa, sede do Governo Civil), com fim no Largo de São João de Almedina.
Entre o triunfo da Monarquia Constitucional e a Revolução de 1910 não houve voz singular ou movimento tributário dos ideais progressistas, libertários e republicanos que não tenha bradado contra o supostamente existente "Foro Académico" e sua cadeia.
Em bom rigor, o Foro Académico, herdado do Studium Generale medieval, fora extinto pelo artigo 145º da "Carta Constitucional" e artigo 38º do Decreto de 16 de Maio de 1832 (Nova Organização Judiciária). Após a implantação do Regime Constitucional na cidade de Coimbra, a 08 de Maio de 1834, a UC deixou de ter Foro Académico e Conservador (Juiz), conforme lhe foi oficialmente comunicado pelo Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça pela Portaria de 23 de Maio de 1834.
Extinto o Foro Académico ou Juizo da Conservatória da UC, os delitos praticados na mesma instituição passaram a correr no Juízo Criminal da cidade. Mas, numa época marcada pelo bandoleirismo e pelos comportamentos violentos, não havendo ainda da parte do poder central capacidade para garantir um serviço de polícia à escala nacional (as esquadras da Polícia Cívica em Lisboa e Porto datam apenas de 1867. Quando a esquadra de Coimbra foi finalmente instalada, os estudantes universitários não reconheceram autoridade nem prestígio aos seus agentes. Dados cronológicos em "MAI-História da Polícia de Segurança Pública", http://www.mai.gov.pt/memoria_psp2.asp/), a Reitoria da UC viu-se dotada de amplos poderes de acção imediata e autonómica, através do "Regulamento de Polícia Académica", publicado no Diário do Governo de 25 de Novembro de 1839, com assinaturas de D. Maria II e de Júlio Gomes da Silva Sanches.
O chamado "Decreto Sanches" era nada mais nada menos do que o Regulamento Disciplinar da UC, ao qual se chamou abusivamente durante 71 anos "Foro Académico". Com poderes disciplinares mais amplos do que os consagrados nos regulamentos disciplinares dos Liceus, Seminários, quiçá colégios particulares, era apenas um instrumento de enquadramento disciplinar, competindo-lhe nomedamente: vigilância e manutenção da ordem em todos espaços do Paço das Escolas e suas dependências; inspecção dos uniformes docentes, discentes e dos oficais administrativos; policiamento nocturno de ruas, casas de jogo clandestino, tascas e prostíbulos; instauração de processos disciplinares por desrespeito, agressão, roubo, homicídio; aplicação de penas através de acórdãos ratificados pelo Conselho de Decanos.
No leque das penas mais temidas contavam-se a prisão na Cadeia de São Boaventura e a expulsão temporária ou definitiva, segundo a gravidade dos delitos.
Conforme os ciclos reitorais e a instabilidade da conjuntura política, assim os archeiros e o guarda-mor eram mais ou menos tolerantes. Se havia advertências irritantes, resultantes de preconceitos morais e modísticos, outras reflectiam não raro a constante propensão dos estudantes para as partidas e gozações. Muitas vezes, os estudantes arreliavam-se com medidas proibitivas consideradas violadoras da liberdade individual, quando na prática algumas dessas medidas traduziam o pânico em que vivia a Reitoria perante situações de risco como um incêndio no Paço das Escolas. Como a Universidade não tinha meios para combater um incêndio violento, e estando bem ciente do património que se perderia, a solução drástica consistia em proibir os cigarros nos edifícios universitários. Na óptica dos jovens alunos, medidas deste tipo cheiravam a reaccionarismo e autoritarismo.
A Cadeia de São Boaventura, cujo preso mais célebre foi o estudante Antero de Quental, de alcunha o Marrafa, não apresentava as melhores condições de asseio e de higiene. À semelhança da maior parte das cadeias comarcãs portuguesas oitocentistas, os presos não estavam separados do convívio urbano. O carcereiro fazia circular bilhetinhos e mensagens de ligação entre o espaço interior e o mundo exterior. Damas da Alta visitavam os estudantes presos, levando-lhes álbuns para neles manuscreverem versalhada e mimosas cestinhas com charutos e doçaria. Os estudantes colegas dos encarcerados iam às grades animar os amigos com estudantinas e filarmónicas. Os presos podiam encomendar cestas de comida e cangirões de vinho no exterior, enviavam mensagens, pediam livros emprestados, cavaqueavam, charutavam e agradeciam às compadecidas visitantes com versos inflamados e ramos de flores (Cf. Joaquim Teixeira de Carvalho, "Bric-a-Brac", 1926, p. 399).
Quando António José de Almeida e o novo Reitor Manuel de Arriaga se deslocaram a Coimbra para darem curso às reformas laicizadoras, científicas e pedagógicas de há muito reclamadas - e exigidas com veemência pelos grevistas de 1907 -, António José fez saber que declarava extinto o odiado e anacrónio "Foro Medieval", atitude que levou a "Illustração Portuguesa", Nº 245, de 31 de Outubro de 1910, a fotografar a extinta cadeia supra reproduzida.
O que o Decreto de 23 de Outubro de 1910 extinguiu não foi o Foro Académico mas antes o "Regulamento da Polícia Académica" de 1839. A medida abolicionista ocorreu num ciclo político exaltado. Segundo os detractores do RPA pretendiam fazer crer, já nenhum país ocidental civilizado teria "cadeia académica". Era conhecido que havia algum abuso propagandístico nas campanhas republicanas de então, e o próprio Alberto Xavier não deixou de reconhecer que as figuras mais informadas da Crise Académica de 1907 sabiam perfeitamente que as universidades da civilizada Alemanha ainda mantinham foro e cadeias privativas.
AMNunes

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