Bloco de Notas (7)
1979 ... Houve um tempo em que toquei com Rolando de Oliveira, pintor viseense que há uns anos encontou a morte, tragicamente, num desastre de automóvel. Ele tocava guitarra e eu viola. Passávamos horas à volta dos discos de Artur Paredes, Edmundo de Bettencourt, Menano e outros, tocados pela velha grafonola que havia em sua casa. Mas era Artur Paredes o mais ouvido. Aquele som arrasava-nos, deixava-nos pequeninos perante tanta grandeza!
Aos poucos, íamos aprendendo bocadinhos das peças. Era uma alegria de cada vez que conseguíamos suplantar qualquer dificuldade. Era uma apogiatura que se descobria como fazê-la, um bordão que antes não estava lá, um vibrato, um glissando, um novo acorde, uma nota que estava errada, uma maneira mais simples de construir uma frase, etc; eram pequenas coisas, insignificantes agora, mas que, na altura, nos enchiam de orgulho pela descoberta. Assim, aos poucos, muito lentamente, fomo-nos integrando na técnica de Coimbra.
Mas, à medida que ia sabendo trautear de cor as guitarradas, cada vez a viola me interessava menos. Queria era tocar guitarra! E como fazê-lo se não tinha instrumento? Não me atrevia, em casa, sequer, a falar em comprar uma. Arranjei uma solução provisória. Afinei a viola como se guitarra fosse e comecei a tocar as guitarradas de Artur Paredes. Eram o Sol maior, o Ré menor, o Lá menor, Morena, Rapsódia de Canções, Si menor e mais, que agora não me lembro. Tocava-as, mas com os defeitos próprios de um ensino sem mestre. E imaginam o som duma guitarrada tocada em viola? Poderia até nem ser mau se tivesse um grande desenvolvimento de dedos nesse instrumento, o que não acontecia, de maneira nenhuma. Mas dava-me gozo e sempre era melhor que nada! Sentia um grande prazer tocar aquelas peças.
Durou pouco tempo esta situação, pois vim a saber que o meu colega Esteves, cujo pai vendia fazendas na Avenida do Caroço, tinha uma guitarra toda escavacada e estava na disposição de ma emprestar. Lá fui buscá-la e a partir daí, deixei, praticamente, de tocar viola. Não era pera doce tocar naquela guitarra. Perto da boca, as cordas estavam a uma altura de perto de dois centímetros, além de estar cheia de rachas. Apesar disto tudo, sempre era mais agradável tocar nela que na viola com afinação de guitarra!
Mostrei tal entusiasmo, que acabei por conseguir os quatrocentos escudos para mandar fazer a primeira guitarra, na oficina do senhor Zacarias, que existia perto da Sé. O som desta não seria muito melhor que a do meu amigo, no entanto, agora já não tinha dificuldades acrescidas, para conseguir tocar. Mas que conhecimentos tinha eu de instrumentos? Nunca tinha visto uma boa guitarra, antes! A do Rolando devia ser como esta! Mas, está bem de ver, agora sentia-me um senhor! Continuei com o grupo do Rolando de Oliveira mas, agora, como segundo guitarra, como era óbvio. À viola passou a ser o João Fonseca, estudante da Escola Comercial. Está visto que, em casa, tocava a parte do primeiro guitarra.
Mas era dramático quando uma corda partia. Não tínhamos o alicate de hoje (usávamos um pau e um alicate vulgar) e as cordas vinham em carrinhos pequenos (cada um dava para fazer três ou quatro cordas). Muitíssimas vezes, mal o abríamos, logo todo se enriçava e eram horas perdidas a conseguir pôr tudo como estava. E, a propósito, lembro-me agora, que aos gravadores de fio (os de fita vieram mais tarde) acontecia também o mesmo. Se o fio partia, era o cabo dos trabalhos. Em Viseu havia um chapeleiro, na Rua Direita, que tinha um desses gravadores. Algumas vezes assisti à quebra do fio. O metal enferrujava e, além de poder partir facilmente, ainda era ruidoso nesses pontos. As bobinas tinham uma velocidade muitíssimo grande pois, não fora assim, os ruídos seriam insuportáveis, nos pontos ferrugentos! Que me lembre, nunca lá gravei nenhuma guitarrada!
Fazíamos muitas serenatas e, nelas, eu e o Rolando também cantávamos. Mais tarde apareceu o Domingos, da Escola Comercial, cantor fora de série, que só foi pena não ter ido para Coimbra e perder-se aquela voz que conseguia chegar a notas tão agudas como Bettencourt e Menano, com um tom de voz suave, bem modulado, de bom timbre, e sempre pronto a acompanhar-nos para todo o lado. Foi um dia para África e nunca mais soube dele, e nem sequer o apelido ficou!
Vou contar um pequeno episódio que se passou com ele, numa serenata feita no largo D. Duarte, em Viseu. O Domingos ia cantar o “Passarinho da Ribeira”, no tom de lá maior, um tom já nada fácil para qualquer cantor. Pois, quando começa a cantar, ou porque o ouvido dele não era cem por cento seguro, ou porque a nossa introdução não seria de molde a dar-lhe a certeza do tom em que devia começar, iniciou o fado em ré maior, ou seja, dois tons e meio acima! Rapidamente dou com o tom - tinha grande facilidade nesse campo - e comunico-o ao pessoal, e lá conseguimos todos chegar ao fim, sem uma fífia, embora ele utilizasse, provavelmente, o falsete. Toda a gente gostou! A assistência – juntava-se sempre muita gente à nossa volta – aplaudiu com entusiasmo.
Outro episódio passado com o Domingos:
Fui convidado para fazer uma serenata de fim de curso, integrada nas festas de despedida de uns alunos do sétimo ano. Nesta altura tocava comigo o Fernando Rebelo à guitarra, José Maria Barros Ferreira à viola e a cantar, João Sá, Rolando de Oliveira, José Mesquita, Frederico Albuquerque, Barros Ferreira e o próprio Domingos. Aqui começam os dissabores! Este era estudante da Escola Comercial e a comissão de festas não aceitou a sua inclusão na serenata. Estava tudo contra mim. Tive que ceder, muito contrariado, pois o Domingos era, para mim, uma mais valia.
No dia aprazado, lá estava a multidão à espera, junto da Porta dos Cavaleiros, local da serenata. Começámos a tocar e começa logo um coro de desordeiros barulhentos, colocados em cima de um muro, à nossa frente,a tentar boicotar o espectáculo. Era uma claque da Escola Comercial, que não se conformou com a exclusão do Domingos e foi, por isso, mostrar o seu desagrado. A muito custo e em condições péssimas, conseguimos chegar ao fim.
Aquela rivalidade entre estudantes, que tanto me chocou na altura, venho afinal encontrá-la também em Coimbra, entre Universidade, Escola Agrícola, Institutos, etc. Faz parte da “porca” da vida!...
1979 ... Houve um tempo em que toquei com Rolando de Oliveira, pintor viseense que há uns anos encontou a morte, tragicamente, num desastre de automóvel. Ele tocava guitarra e eu viola. Passávamos horas à volta dos discos de Artur Paredes, Edmundo de Bettencourt, Menano e outros, tocados pela velha grafonola que havia em sua casa. Mas era Artur Paredes o mais ouvido. Aquele som arrasava-nos, deixava-nos pequeninos perante tanta grandeza!
Aos poucos, íamos aprendendo bocadinhos das peças. Era uma alegria de cada vez que conseguíamos suplantar qualquer dificuldade. Era uma apogiatura que se descobria como fazê-la, um bordão que antes não estava lá, um vibrato, um glissando, um novo acorde, uma nota que estava errada, uma maneira mais simples de construir uma frase, etc; eram pequenas coisas, insignificantes agora, mas que, na altura, nos enchiam de orgulho pela descoberta. Assim, aos poucos, muito lentamente, fomo-nos integrando na técnica de Coimbra.
Mas, à medida que ia sabendo trautear de cor as guitarradas, cada vez a viola me interessava menos. Queria era tocar guitarra! E como fazê-lo se não tinha instrumento? Não me atrevia, em casa, sequer, a falar em comprar uma. Arranjei uma solução provisória. Afinei a viola como se guitarra fosse e comecei a tocar as guitarradas de Artur Paredes. Eram o Sol maior, o Ré menor, o Lá menor, Morena, Rapsódia de Canções, Si menor e mais, que agora não me lembro. Tocava-as, mas com os defeitos próprios de um ensino sem mestre. E imaginam o som duma guitarrada tocada em viola? Poderia até nem ser mau se tivesse um grande desenvolvimento de dedos nesse instrumento, o que não acontecia, de maneira nenhuma. Mas dava-me gozo e sempre era melhor que nada! Sentia um grande prazer tocar aquelas peças.
Durou pouco tempo esta situação, pois vim a saber que o meu colega Esteves, cujo pai vendia fazendas na Avenida do Caroço, tinha uma guitarra toda escavacada e estava na disposição de ma emprestar. Lá fui buscá-la e a partir daí, deixei, praticamente, de tocar viola. Não era pera doce tocar naquela guitarra. Perto da boca, as cordas estavam a uma altura de perto de dois centímetros, além de estar cheia de rachas. Apesar disto tudo, sempre era mais agradável tocar nela que na viola com afinação de guitarra!
Mostrei tal entusiasmo, que acabei por conseguir os quatrocentos escudos para mandar fazer a primeira guitarra, na oficina do senhor Zacarias, que existia perto da Sé. O som desta não seria muito melhor que a do meu amigo, no entanto, agora já não tinha dificuldades acrescidas, para conseguir tocar. Mas que conhecimentos tinha eu de instrumentos? Nunca tinha visto uma boa guitarra, antes! A do Rolando devia ser como esta! Mas, está bem de ver, agora sentia-me um senhor! Continuei com o grupo do Rolando de Oliveira mas, agora, como segundo guitarra, como era óbvio. À viola passou a ser o João Fonseca, estudante da Escola Comercial. Está visto que, em casa, tocava a parte do primeiro guitarra.
Mas era dramático quando uma corda partia. Não tínhamos o alicate de hoje (usávamos um pau e um alicate vulgar) e as cordas vinham em carrinhos pequenos (cada um dava para fazer três ou quatro cordas). Muitíssimas vezes, mal o abríamos, logo todo se enriçava e eram horas perdidas a conseguir pôr tudo como estava. E, a propósito, lembro-me agora, que aos gravadores de fio (os de fita vieram mais tarde) acontecia também o mesmo. Se o fio partia, era o cabo dos trabalhos. Em Viseu havia um chapeleiro, na Rua Direita, que tinha um desses gravadores. Algumas vezes assisti à quebra do fio. O metal enferrujava e, além de poder partir facilmente, ainda era ruidoso nesses pontos. As bobinas tinham uma velocidade muitíssimo grande pois, não fora assim, os ruídos seriam insuportáveis, nos pontos ferrugentos! Que me lembre, nunca lá gravei nenhuma guitarrada!
Fazíamos muitas serenatas e, nelas, eu e o Rolando também cantávamos. Mais tarde apareceu o Domingos, da Escola Comercial, cantor fora de série, que só foi pena não ter ido para Coimbra e perder-se aquela voz que conseguia chegar a notas tão agudas como Bettencourt e Menano, com um tom de voz suave, bem modulado, de bom timbre, e sempre pronto a acompanhar-nos para todo o lado. Foi um dia para África e nunca mais soube dele, e nem sequer o apelido ficou!
Vou contar um pequeno episódio que se passou com ele, numa serenata feita no largo D. Duarte, em Viseu. O Domingos ia cantar o “Passarinho da Ribeira”, no tom de lá maior, um tom já nada fácil para qualquer cantor. Pois, quando começa a cantar, ou porque o ouvido dele não era cem por cento seguro, ou porque a nossa introdução não seria de molde a dar-lhe a certeza do tom em que devia começar, iniciou o fado em ré maior, ou seja, dois tons e meio acima! Rapidamente dou com o tom - tinha grande facilidade nesse campo - e comunico-o ao pessoal, e lá conseguimos todos chegar ao fim, sem uma fífia, embora ele utilizasse, provavelmente, o falsete. Toda a gente gostou! A assistência – juntava-se sempre muita gente à nossa volta – aplaudiu com entusiasmo.
Outro episódio passado com o Domingos:
Fui convidado para fazer uma serenata de fim de curso, integrada nas festas de despedida de uns alunos do sétimo ano. Nesta altura tocava comigo o Fernando Rebelo à guitarra, José Maria Barros Ferreira à viola e a cantar, João Sá, Rolando de Oliveira, José Mesquita, Frederico Albuquerque, Barros Ferreira e o próprio Domingos. Aqui começam os dissabores! Este era estudante da Escola Comercial e a comissão de festas não aceitou a sua inclusão na serenata. Estava tudo contra mim. Tive que ceder, muito contrariado, pois o Domingos era, para mim, uma mais valia.
No dia aprazado, lá estava a multidão à espera, junto da Porta dos Cavaleiros, local da serenata. Começámos a tocar e começa logo um coro de desordeiros barulhentos, colocados em cima de um muro, à nossa frente,a tentar boicotar o espectáculo. Era uma claque da Escola Comercial, que não se conformou com a exclusão do Domingos e foi, por isso, mostrar o seu desagrado. A muito custo e em condições péssimas, conseguimos chegar ao fim.
Aquela rivalidade entre estudantes, que tanto me chocou na altura, venho afinal encontrá-la também em Coimbra, entre Universidade, Escola Agrícola, Institutos, etc. Faz parte da “porca” da vida!...
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