sexta-feira, maio 27, 2005

NOTAS URGENTES PARA «HABITANTE SENSÍVEL»

Gran homenaje a Coimbra la ciudad del autor. Pero es un canto nuevo, auténtico, sincero, pero sin caer en sensiblerias, ni sentimentalismos, contenido, que es como puede hacerse verdad y realidad el binómio sentimiento - pensamiento para ser arte, poesia verdadera. Perfecta estructuración del libro, desde el primer poema de confesión de amor, hasta el último poema “ Canção politonal sobre a cidade “, más extenso resumiendo el tono general de homenaje.Rendido canto de un hijo enamorado, pero consciente de tener que huir del tópico de Coimbra.
Y como formalmente el libro elige para el caminar poético la forma del verso corto, heptasilábico, o a lo más octosilabo, como volante de la aventura. Oportunos son los temas en torno a la ciudad: “Miradouro”, “ Portugal dos Pequenitos “, amaneceres de la ciudad y madrigales adornan el libro. Monumentos y tarjetas obligadas de las postales y rincones de Coimbra surgen en los versos, como largos pensamientos y confesiones hondas. Y naturalmente el músico que hay en Eduardo Aroso surge inevitable, ardorosamente rompiendo con sus cuerdas todo el amor enfurecido por la ciudad en defensa de ella. Musicalmente todos los poemas son válidos, recreados en notas y decires; pero sobre todo lo más importante del libro es la hondura, el dolor o mejor aún el amor-dolorido por su ciudad natal. Libro antologico de la ciudad del Mondego. Pero volveré, porque lo merece este poemário.

Jose Ledesma Criado

( Poeta, Director da Revista Literária Álamo e ex-Professor da Universidade de Salamanca )


Prólogo

Estas breves e quase desnecessárias palavras têm o alcance de criar um ambiente para outro ambiente.Ao preceder os poemas «Habitante Sensível» de Eduardo Aroso do texto recuperado de Dona Carolina Michaelis de Vasconcellos (Berlim, 15 de Março de 1851 - Porto, 16 de Novembro de 1925) intitulado “Arredores de Coimbra”, pretendo homenagear um e outro dos autores que tanto enaltecem Coimbra no paladar em si que Coimbra é e, ao mesmo tempo, desmentir o Nietzsche, o contraditório. A vida não tem lógica ou não obedece à lógica dos impulsos da razão. Há um Nietzsche que é o felino dionisíaco do novo, do vir-a-ser, do futuro e, assim, o iconoclasta vociferador contra o intocável divino, o rebanho, a corrupção, a superficialização e a generalização. É o dinâmico Nietzsche que repudiava a segurança de qualquer coisa e berrava alto, com o músculo do pensamento, contra o fundo comum da humanidade, este fundo de um fluir parado: que há coisas que duram, que há coisas iguais, que uma coisa é como aparece, que nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é bom em e para si. O outro Nietzche ( o tal, o mais propalado, só aparentemente matou Deus ) não deixa de estar guiado... por Deus, e ele sabe-o, nega-o e afirma-o ao mesmo tempo; apenas dou um exemplo:- “Que também nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os anti-metafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina...”( in parágrafo 344 de “A Gaia Ciência “). Foi a verdade de tudo e em tudo o que atormentou Nietzsche e tamanha era a sua febre que fácil era reiterar o seu ódio a qualquer permanência ou igualdade. E, todavia, este argonauta vai desaguar no eterno-retorno, no volver da identidade pretérita!
Repudio o primeiro Nietzsche, o da afirmação de que não há coisas iguais. E repudio o segundo, pois não quero tanto, não aspiro a nenhum eterno retorno, como a ele aspirou o infeliz Raúl Proença.
Em palavras correntes, da tribo não filosófica, não se dá um retorno de Dona Carolina Michaelis (assim a tratavam na Faculdade, em Coimbra, por um costume lançado pelo poeta Eugénio de Castro ) para a pessoa de Eduardo Aroso, existe um forte parentesco a não resvalar para a igualdade; porém não coincidindo ponto por ponto, repete Eduardo Aroso aquela emoção que um dia palpitou em Dona Carolina Michaelis e subsiste num texto perdido no turbilhão das bibliotecas. Porque se não há eterno-retorno, ao menos existe um palpitar comum no reino das igualdades afins. E, flutuando este mundo na barca da alterabilidade, é reconfortante o acerto e a amarra de um algo que permanece igual a si mesmo. Por outras palavras sem filosofia, se Coimbra se mantém Coimbra, na graça da sua plural fisionomia, a física e a humana, natural é que o próprio espírito destilado por Coimbra tenha acendido em dois espíritos ( quase sem igualdade ), essa Dona Carolina e este Eduardo Aroso, um fogo comum, uma igual chama, uma iluminação em tudo idêntica.
Eu tinha descoberto o pequenino texto há um ano, na Biblioteca do Exército, em Lisboa. “Arredores de Coimbra” figura no volume primeiro, ano 1902, de uma obra de arte colectiva já muito rara, «A arte e a Natureza em Portugal». Este “álbum de fotografias com descrições; clichés originais, cópias em fototipia inalterável; monumentos, obras de arte, costumes, paisagens” ( como reza o subtítulo ) foi da direcção de F. Brutt e de Cunha Moraes. Era um régio empreendimento editorial da firma “Emílio Biel & Ca, Editores” no Porto. O seu tamanho invulgar torna esta obra “antipática” para sua arrumação.
Nasci em Coimbra e fui educado na casa paterna e materna na simpatia pela Dona Carolina Michaelis. Meu progenitor, Joaquim de Carvalho, foi quem dirigiu a imponente homenagem da cultura portuguesa e internacional a Dona Carolina, organizando esse obelisco da “Miscelânea de Estudos,” na hora da despedida do colégio coimbrão, na da morte e na da saudade ( 1927 e 1933 ).
Ao descobrir esta preciosa relíquia, os “Arredores de Coimbra” , disse para mim mesmo: não há nada tão perfeito na emoção que Coimbra faz provocar do que estas páginas que a anunciam, repetem, inventariam e analisam! Quem me dera que todo o coimbrão as conhecesse e também pensasse não numa Profª Doutora Carolina Michaelis de Vasconcellos mas simplesmente numa grande e sábia amiga, a Dona Carolina Michaelis, trazendo-a de volta para o seio de seu coração!
Era germânica, mas bastaria este sucinto e intenso texto para a naturalizar portuguesa. Quem sente assim a natura alheia dela bebendo toda a seiva oculta, passa a filha de toda a região que vier amar. Coimbra enfeitiçou a nobre dama, valendo em alteza mental o que muitas vezes a própria aristocracia não alteia. Foi uma rainha da cultura e Portugal soube-a coroar. Meu pai preparou a “Miscelânea,” essa permanente coroa de louros que tanto a honrou. E na hora de sua morte, em nome de toda uma Universidade, à beira da sepultura, proclamou: “Uma universal curiosidade levou-a a estudar e a surpreender o génio português em todas as suas manifestações - desde as palavras às ideias; desde o homem às instituições, desde a etnografia aos mais elevados e subtis movimentos espirituais”, rematando, entre saudoso e justiceiro: “A vida da Senhora Dona Carolina Michaelis de Vasconcellos foi uma obra prima de ternura, de razão e de trabalho. Não atacou nunca ninguém, e tudo sacrificou aos únicos dogmas em que acreditava: a verdade, o dever e a humanidade. Foi corajosa quando era necessário sê-lo e as suas opiniões jamais sofreram as oscilações do mundo exterior. Os grandes admiravam-na, e os pequenos, os humildes de espírito ou de condição, devotavam-se-lhe comovidamente. Curvemo-nos, porque vai baixar à sepultura o cadáver de alguém que pensou e nobremente procedeu, cuja obra perdurará no convívio dos sábios e cujo espírito viverá na saudade dos homens bons”. O texto da fenomenal e santa investigadora tem essa auréola do definitivo semblante que Coimbra - o meio natural e a cidade - imprime a quem a desfruta. Ela, a sábia e afável senhora, eternamente dona e não frau captou a imagem do manacial milagreiro do que está certo e expressivo e sente por dentro refrescante porque verdadeiro. O seu belo texto mata-nos a sede desse conhecimento em alma que as coisas nos deixam e tão difícil é de expressar. É leite maternal. Ela era maternal em tudo e largou bondosas sementes como outras lançam rosas...
Mais tarde vieram os poemas de Eduardo Aroso, colhidos nos campos e margens de uma Coimbra perene. Senti que o que neles se espelha, como na superfície do Mondego, é a face trémula de Coimbra nesse mesmo conhecimento em alma, esse torrão de jeito para searas de amor. A delicadeza do texto de Dona Carolina Michaelis se repete na delicadeza de poemas de Eduardo Aroso. Ela louva um ambiente, procedendo ao seu escalpe descritivo. Ele, o poeta, espalha esse ambiente pelas coisas e louvando estas está recriando aquele como o fluido ou linfa onde elas poisam.
Com os pergaminhos familiares, um pai que adorou uma tão notável Mestre e logo depois uma Colega, achei que não era vilania ressuscitar aqui - neste átrio do templo poético de Aroso - o que, numa tarde dourada, tanto me enalteceu no sentimento por Coimbra, melhor me descobrindo com a descoberta desse texto. Sei que a Dona Carolina está feliz, por aqui, a modo de prefácio, ter colado o seu texto “Arredores de Coimbra”.
Se quis contrariar o seu compatriota Nietzsche, pois há coisas que duram, há coisas iguais - e as afinidades no beber e provar Coimbra entre a Dona Carolina Michaelis e o Eduardo Aroso em tudo são gémeas - , quero finalizar com uma harmonia, regressando a Nietzsche e à sua ideia de morte, o que me dá razão em dizer que a Dona Carolina Michaelis está feliz . É que o pensador germânico, tão mal compreendido ( pois a contradição não combina com o espírito geométrico do latino ) deixou este recado: “Guardemo-nos de dizer que a morte é oposta à vida. O vivente é somente uma espécie de morto, e uma espécie muito rara”. E quando não há oposição, não há contradição...
Coimbra, a alma de Coimbra, aqui irão enlaçadas. Um texto em prosa, ressuscitado daquela espécie de morte, volta à vida e nos dá vida. E complementado é por uns tantos poemas que são essa mesma alma de Coimbra.
Entre vida e morte não existem fronteiras.

Alfama, Lisboa, 10 de Janeiro de 1993
Joaquim de Montezuma de Carvalho
( Membro de The Hispanic Society of America, de New York )



ARREDORES DE COIMBRA

De braço dado com um cicerone ilustre, o visitante de Coimbra já admirou o esplêndido panorama que a mui antiga, mui nobre e sempre leal cidade apresenta, vista da margem esquerda: linda ninfa fluvial que, depois de banhar os pés, trepa com graciosa agilidade pela ladeira íngreme da montanha, para afinal se reclinar risonha no seu cume achatado, retratando-se no rio, cujas águas serenas, cantadas há quatro séculos pelo príncipe dos poetas lusitanos, vão descendo, e mansamente até ao mar não param.
Em frente de alguns dos seus preciosos monumentos teve ocasião de se orientar sobre as origens da velha Conimbriga, as páginas mais brilhantes da sua história, o seu papel notável na civilização portuguesa como antiga corte, esboçado magistralmente por Sá de Miranda em uma das Sátiras.
Sabe que, graças ao seu clima benigno, foi, durante séculos, abrigo saudável e ameno onde os reinantes e seus cortesãos se refugiavam quando a peste os acossava da soberba capital de mármore e granito, à qual Coimbra tivera de ceder o passo.Mas principalmente ela é família, e cara a todos como Lusa-Atenas, formosa e nobre cidade, onde se formam doutores, conforme rezam singelas trovas populares; centro intelectual para onde convergem os espíritos mais bem dotados; um dos focos vivos da elaboração poética, no qual se cristalizam lendas, contos, cantigas, romances nacionais que a
mocidade académica, afluindo das diversas províncias, fez e faz ainda brotar do solo fértil da tradição, irradiando-os novamente para todos os recantos de Portugal.
Peregrino da arte, o curioso já contemplou, em rápida excursão pela estrada da Figueira até ao lugar de S. Silvestre, uma série de fragmentos arquitectónicos e de esculturas formosíssimas, da escola coimbrã. E entrou também na vetusta catedral românica, elucidado acerca do Panteão dos Silvas de S. Marcos e a respeito da Sé por guias seguros, doutos, entusiastas.
Hoje convidamo-lo a um simples divagar e devanear poético, de diletante, pelas cercanias da cidade. Sem preocupações eruditas gozemos, passeando, as justamente célebres belezas naturais desta terra, torrão de jeito para searas de amor, querida e cantada por todos os patriotas que um fado venturoso distinguiu com o dom da lira. Por isso mesmo, a cada passo versos dos mais ilustres vates que tentaram fixar traços característicos da paisagem coimbrã, e versos que respiram entranhado amor, terna comoção e saudade profunda, como os de Silva Gaio e Alberto de Oliveira Correia acodem sem querer à nossa memória, exteriorizando as suaves impressões que vamos colhendo. O próprio povo, enlevado pelo meio aprazível, e adestrado pelo longo convívio com moços de talento, toma parte nesse festim de poesia, pois foi ele quem forjou o tantas vezes repetido prolóquio: Quem não viu Coimbra não viu coisa linda, dando assim a réplica aos lisboetas que gabam, não sem motivo, a rainha do Tejo.
Situados no centro do país, os campos de Hércules são a sua parte mais temperada. Abrigada dos ventos leste e norte pela forte barreira das serras da Estrela, do Caramulo, do Bussaco, Dianteiro, a planície do Mondego é humedecida amiúde pelas brisas marítimas. Copiosas chuvas dão à vegetação um viço deslumbrante. Único entre os rios caudalosos do reino que é genuinamente português, desde a sua nascente no Hermínio até à foz, o Mondego corre no fim do seu percurso, plácido e lentamente - tanto a seu sabor que não se sente - minguado na força do estio a ponto de descobrir os seus areais de ouro em largas extensões. Na primavera, porém, engrossado com as neves e chuvas do inverno, transforma-se em corrente impetuosa e mesmo devastadora. Então inunda os terrenos marginais abaixo de Coimbra e deposita aí nateiros que o tornam ubérrimos. Para os suster orlaram as ribas de espessas plantações, de canaviais, salgueiros, amieiros, choupos e freixos, de tons e formas variadíssimas. Nessas verduras fazem ninho legiões de aves que enchem a atmosfera ora de sons melódicos, ora de um chilreio inquietador e vivaz.
A pequena distância, além dos mouchões, há faixas de terreno plano, as afamadas ínsuas produtivas de milho, com pomares viridentes, vinhas, laranjais, cujas níveas flores embalsamam o ar e evocam visões virginais. Mais ao longe nas oliveiras de troncos esgarçados e folhagem argêntea pousa a cigarra de Anacreonte e faz ouvir em julho e agosto o seu cantar trémulo, estridente e monótono. No limite extremo erguem-se montanhas, em ondulações caprichosas de cores esfumadas, azul e violeta.A impressão produzida por esta deliciosa paisagem sobre génios sentimentais não é todavia - como seria de esperar - a de uma Arcádia alegre. Risonha - undique ridentem - a chamam apenas alguns estrangeiros e certos optimistas que aí têm berço, lar e jazigo. A saudade é que em geral reina e governa nos campos do Mondego. A ave que os povoa e caracteriza não é a cotovia matutina - the skylark - que cheia de júbilo gorgeia hinos de amor, mas antes o rouxinol nocturno que chora queixumes desesperados até se finar de paixão. A plêiade numerosa dos que lá passam apenas um lustro da vida, e têm de apartar-se afinal desse país do Senhor, dizendo adeus ao mesmo tempo à época descuidosa e abençoada da candura juvenil em que amaram e cantaram, gozaram e lutaram, essa mira os campos com olhos rasos de lágrimas, e quando os revê entre sonhos, « a alma que de lá os acompanha,/ nas asas do ligeiro pensamento,/ para vós, águas, voa e em vós se banha». Ora, se os autores de elegias e éclogas nostálgicas são de facto, como pensam certos críticos atilados, os intérpretes mais fiéis da alma portuguesa, essencialmente lírica; se a sensação que melhor lhes quadra e melhor os inspira é a saudade -dor aprazível e alegria triste, tão bem definida por Almeida Garrett, longe da pátria querida - comparável e já comparada a um rio «que da lembrança nasce, e vem passando,/ aqui ameno e doce, ali sombrio» - então um Cancioneiro de Coimbra, contendo todas as obras literárias, arquitectadas em honra da cidade, do rio e das ninfas do Mondego, que por sucessivas gerações de artistas, de mais ou menos alentado vôo, desde o primitivo desabrochar lírico nos dias do trovador coroado que «fez primeiro em Coimbra exercitar-se/ o valeroso ofício de Minerva/ e de Hélicon as Musas fez passar-se/ a pisar do Mondego a fértil erva», até aos nossos dias, havia de ser não somente lindo como um dos mais lindos volumes de rimas portuguesas, mas de importância típica. Vale a pena reuni-lo, a bem de todos os visitantes de Coimbra!
Dos múltiplos reflexos aí enfeixados que se espelharam nos espíritos vibráteis dos poetas, e nos podiam iluminar o nosso passeio, urge todavia passsarmos à realidade. Dos contornos de Coimbra em geral, a alguns pontos salientes.
A dificuldade consiste apenas na escolha. Tal é a abundância de sítios deliciosos que a rainha da Beira encerra e de lugares tentadores que a cercam, de perto e de longe.
O nosso passeio de hoje está todavia prescrito. Havemos de fazer três estações, todas elas muito perto do rio: em frente de Santa Clara; - no Choupal;- na Quinta das Lágrimas.

Desçamos. Do rio sobe cada vez mais distinto o som de vozes feminis.
São aguadeiras e lavadeiras que mourejam cantando e conversando, para assim tornar menos pesada a faina diária. Espectáculo rústico, não isento de graça. Lá estão, isoladas ou aos pares, em longa carreira tortuosa, flores vivas que marcam os meandros do Mondego. Conto uma, duas, três, quatro dúzias: parte a lavar, parte a torcer; outras que estendem; algumas a encher os canecos e cântaros; descalças todas, com as saias arregaçadas, as velhas protegidas contra o ardor do sol pelo chapéu de feltro, enquanto às moças airosas basta-lhes o lenço branco ou de cor sobre o cabelo farto.
Enxotando o enxame de cantigas com suas voltas e glosas camonianas e modernas, que de novo acodem à nossa mente, e olhando para os mantéis, mais brancos que a neve, que coram sobre o areal, recordemos apenas a fama secular «que só com as águas do Mondego a roupa se faz tão alva como nas mais partes com sabão ou outro artifício», fama tão inveterada como a de «fino, resistente e bom para enredos» ganha pelo fio de linho português, de Coimbra a Guimarães, e como o renome da água do Mondego. Coada pelo filtro natural das areias ela passa não só por límpida e delgada, mas por saborosíssima, e ainda hoje é preferida à das fontes por grande parte dos habitantes. Se houvesse perto um dos esteiros privilegiados onde as moças de cântaro se surtem, havíamos de prová-la num pucarinho de barro, pois já em tempo do velho Estrabão os lusitanos eram grandes bebedores de água e preferiam vasos de «terra», para que sempre lhes pareça que bebem na própria fonte.
Uma curva lancha vai rio abaixo, tão devagar como se o homem que a move à vara, obedecesse às raparigas que o provocam, cantando estâncias quinhentistas: Ir-me quero, madre, com o marinheiro, ou «Deixa, deixa, oh barqueiro/ Ir o barco lentamente!/ Deixa! Deixa! que a saudade/ ir mais longe não consente».
Na margem oposta o monte de Santa Clara sobe, também sem pressa, dividido em muitas parcelas, como indicam os casais espalhados entre verduras. Rente à borda da água ergue-se, no meio da usual estacaria de canas, salgueiros e choupos, um belo grupo de robínias, cujos cachos pendentes rescendem deliciosamente. Dos férteis milharais, meio ocultos, nas ínsuas do Almegue, erguem-se esbeltos eucaliptos, cujo verde ténue e azulado está em admirável contraste com a fronde espessa e escura, de tons metálicos, das laranjeiras salpicadas de pomos de oiro, e com as latadas de vinha. Estas e as oliveiras de fundo dão ao pequeno quadro certo aspecto de fartura meridional: cereais e legumes, hortaliças e frutas, vinho e azeite, que se criam com tanta abundância nos férteis campos conimbricenses.
Um pouco ao ocidente da cidade, temos o Choupal. Entre todos os passeios lindos é sem contestação o que sobressai pela sua amplidão e pelo seu carácter de bem e verdadeiro tratado bosque. Assoriamentos constantes haviam alteado o nível do rio de sorte que, em fins do século XVII, o governo teve de proceder a novo aleitamento.
Fizeram-se então, sobre uma parte do antigo leito e areais, até então incultos, mas fertilizados pelos sedimentos arrastados pelas cheias, largas plantações de choupos, que deram o nome à nova mata nacional. Crescendo a capricho num estado quase virginal, recortado por fundos valeiros, por onde se escoavam as águas das enchentes, não comportadas pelo rio, o Choupal ficou durante longo tempo quase intransitável. Hoje, porém, graças ao trabalho inteligente dos directores das obras do Mondego, a pequena floresta, cobrindo mais de cem hectares, está transformada em um parque ameno, com numerosas estradas e ruas, valas regularizadas, pontes rústicas e magníficos exemplares de árvores de exuberante vegetação: copadas faias, amoreiras corpulentas, plátanos e nogueiras, álamos, acácias, loureiros, medronhos, eucaliptos altivos cujo rápido desenvolvimento surpreende os que, vindo de longe, estão acostumados ao lento crescer do arvoredo setentrional. Como tipo de arborização em terrenos baixos e férteis, servindo de campo de experiências na cultura de plantas exóticas e indígenas, e de viveiro-modelo de onde já sairam milhares de boas árvores que dão sombra e frescura às estradas e aformoseiam povoações outrora pobres de verdura, a mata tem muita importância científica e agrícola. Se lhe falta o tom pitoresco comunicado por grandes acidentes no terreno, se não há grutas, belvederes, lagos, tabuleiros de flores, relvados de seiva, temos em troca a vista do rio e da cidade.
Em todas as estações é uma delícia passear aí, sobretudo nos meses em que a natureza ressurge do letargo anual « quando os choupos nodosos/ a um ai de leve nortada/ sacodem frouxéis sedosos/ que a terra deixam nevada»; quer procuremos o alívio da sombra em dias de intenso calor; quer observemos através de minguada folhagem outoniça a fantástica silhueta da cidade, envolta em nevoeiro; e mesmo no inverno quando o vento sacode, contorce e quebra ramos e troncos, juncando o chão de folhas mortas. Como em toda a parte, a ocasião mais bela é o crepúsculo, «a hora em que o sol desmaia/ e a voz das águas se espraia/ como uma prece a subir».
Com os trechos do rio e do bosque irmana perfeitamente o último quadro, a romântica Fonte dos Amores na Quinta das Lágrimas ( outrora do Pombal ) que alcançamos atravessando a ponte e subindo a ladeira até ao rossio de Santa Clara. Se aqueles primam exclusivamente por belezas naturais, como em geral as paisagens portuguesas, a este deram realce, valia superior e renome universal recordações românticas. Quem desconhece a história da mísera e mesquinha que depois de ser morta foi rainha? Impressionando desde logo os coevos, conforme se vê dos relatos dos cronistas, não só pela formosura de Inês, pelo desespero e a vingança do Infante D. Pedro, transformado em justiceiro feroz, mas também pelo juramento por meio do qual tentou reabilitar a amada, seguido da lúgubre exumação e trasladação do cadáver de Santa Clara a Alcobaça, e principalmente pelo duplo monumento fúnebre aí erigido, que é uma maravilha de arte medieval portuguesa, o caso triste e digno de memória foi posteriormente idealizado em romances, dramas e composições líricas, a ponto de se tornar o exemplo mais comovente do amor à portuguesa. Eternizada pelo cantor dos Lusíadas , no episódio delicado da sua epopeia nacional, Inês atrai constantemente ao sítio que agora visitamos, e ao seu jazigo, romeiros sentimentais, ávidos de sensações, que desejam comparar os sepulcros alcobacenses aos de Heloisa e Abélard no Père-Lachaise; e a Fonte das Lágrimas não só à do Sorga provençal, onde Petrarca cantou a sua Laura, mas também ao ribeiro da gentil Ofélia, ou ao Jardim de Julieta em Verona - pois foi ao pé dela que, segundo a lenda, se passaram os princípios idílicos e o desfecho sangrento do drama.
O cenário, sombrio e solitário, lembra quadros sugestivos de Boeklin. Um vasto tanque quadrangular recebe por um pequeno canal de pedra a linfa cristalina da nascente que brota de musgosas rochas graníticas, não impetuosa e silvestre como a de Vaucluse, mas brandamente com um murmúrio quase imperceptível. Altivos cedros formam um denso toldo verde-escuro, impenetrável aos raios do sol, e estendem languidamente os seus ramos sobre a superfície da água.
Estes cedros, que embora gigantescos, nem de longe podem contar cinco a seis séculos, foram na imaginação popular testemunhas primeiro de cenas íntimas entre os amantes, e depois, da degolação da Nise lastimosa. Aí retumbaram os choros das inocentes crianças, os gritos da vítima, as ameaças dos algozes, os brados do vingador. Com estas águas misturaram as ninfas do Mondego as suas lágrimas de dor e compaixão. Nas manchas avermelhadas de algumas das lajens que pisamos (musgos microscópicos) quer o vulgo reconhecer gotas de sangue. As ruivas radículas filamentosas de certas plantas aquáticas que ondulam no tanque são cabelos louros. O cano que conduz através da quinta a água da fonte, serviu de veículo para as mensagens trocadas entre Pedro e Inês.
No tronco de um dos cedros, derrubado em 1841 por um vendaval, estavam esculpidas as palavras: eu dei sombra a Inês formosa. Numa lápide tosca lê-se a estância final do episódio camoniano na qual o magno poeta condensou a lenda que criara.
O espaço limitado e o carácter ligeiro destas notas não admitem que falemos do processo instaurado pela crítica contra a veracidade desses elementos poéticos, fecundados posteriormente tanto pelo engenho de doutos comentadores como pela imaginativa de outros poetas, e consagrados pelo aplauso da nação inteira.
Para quê? - Pois, embora ela decida que as cenas localizadas por Luís de Camões ao pé de uma Fonte de lágrimas ou de amores, se desenrolaram em realidade num recanto diverso, (do outro lado do Rossio, no paço real de Santa Clara que servira de residência a D. Inês de Castro), a visão sentimental da pungente tragédia renova-se dia a dia no sítio reproduzido pela nossa estampa.

CAROLINA MICHAELIS DE VASCONCELLOS

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