sábado, junho 04, 2005

A guitarra é simplesmente um instrumento que não me agrada

Entrevista ao guitarrista Ricardo Rocha sobre o lançamento de “Voluptuária”. CD síntese e inovador sobre a guitarra portuguesa

Nem sempre as entrevistas servirão para promover um artista, como pretendem, na maioria das vezes, os seus produtores e agentes. Por vezes, fica-se apenas a conhecê-lo melhor, confundindo a personalidade do artista, músico no caso, com a sua arte. Ricardo Rocha reconhece que não tem a atitude ideal perante os media. Não lê entrevistas, notícias, críticas, etc. e por isso passa-lhe ao lado, por exemplo, o peso que significa ser chamado "sucessor de Carlos Paredes". O guitarrista, que aprendeu a mexer na guitarra portuguesa aos três anos, sente-se incomodado com o instrumento que toca, preferiria o piano, mas resignou-se. O que em termos de eventuais consumidores não será a atitude mais atraente. Nesta entrevista, realizada no dia seguinte a um esgotante concerto na Casa da Música, Ricardo Rocha revela-se, mesmo que seja escondendo-se atrás de sucessivas negas perante algumas perguntas e considerações sobre o óbvio de outras. No disco, "Voluptuária", passa-se o mesmo, provando que não é preciso gostar-se de tocar determinado instrumento para dele se tirar dele momentos gloriosos.
O seu trabalho tem vindo a ser elogiado por todo o tipo de pessoas, das mais variadas áreas, não é um peso muito grande? Não sente que lhe estão a exigir que assuma uma responsabilidade exagerada?
Não, porque estou totalmente ausente daquilo que se diz. Primeiro, não leio jornais, depois não leio entrevistas, não leio críticas. Não estou a par de absolutamente nada, não me interessa também, sinceramente, e, portanto, não sinto peso nenhum, não sinto exigência nenhuma, não sinto pressão. Não sinto nada. Não é só por isso – estar ausente – é também pela forma como encaro isto tudo, o disco... Encaro isto como um documento, nada mais do que isso.
É natural que lhe chegue aos ouvidos as reacções das pessoas perante o seu disco ou as pessoas que assistem aos seus concertos. Isso não lhe provoca nada?
Não, não. Não me constrange nem me descentra de nada.
Pode dizer-se que o Ricardo vem numa evolução de guitarristas portugueses. O que o aproxima e o que o separa de nomes como Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral...?
Não conheci o Carlos Paredes. Do ponto de vista musical nunca segui nenhuma trajectória dessas, nem num caso, nem noutro. São mundos completamente distintos: o Carlos Paredes não tem nada a ver com o Pedro Caldeira Cabral e vice-versa; eu não tenho nada a ver com nenhum. O facto de tocar também piano, e de gostar imenso de um instrumento – de ser o meu favorito – como esse dá uma certa influência que é totalmente diferente e muito mais vasta do ponto de vista musical. Por isso, as minhas peças não têm nada a ver com as de Carlos Paredes ou com as do Pedro Caldeira Cabral. São mundos completamente distintos e diferentes.
A única relação é, então, ser português e tocar guitarra?
A nacionalidade e a postura perante o instrumento, a postura solística.
Acompanha o trabalho deles? Gosta?
Conheço. Conheço bastante bem o trabalho do Carlos Paredes, conheço relativamente bem o trabalho do Pedro Caldeira Cabral. Envolve várias áreas, sendo que a música antiga, à qual se dedica e onde se sente bem, é interessante.
Podemos então falar de algumas influências que o Ricardo tenha. Apercebi-me no CD que algumas peças pareciam contemporâneas, outras pareciam uns rocócós abrasileirados, nomeadamente dos trabalhos que ficaram conhecidos com o "Bach in Brazil"? Pode-se falar destas influências?
Não, pelo menos não desse exemplo "Bach in Brazil", embora o conheça. Este é um trabalho em que o tipo de peças, além de não ser muito acessível, não é muito usual na guitarra portuguesa. Há um confronto, declarado e evidente, nada mais do que isso, à parte da complexidade das peças. Mas quase 90 por cento do disco é música contemporânea, há peças seriais, quatro, é música contemporânea, moderna...
A sua formação...
Não tenho, porque na guitarra nunca existiu, não existe e não existirá do ponto de vista académico, escolas de guitarra portuguesa. Não existe uma aprendizagem, não existe método, não existem professores, não existem escolas, não há em lado nenhum, portanto, é um instrumento invisível. Tive a sorte de contactar com pessoas importantes, na área da música, e tive a sorte de, aos 16 anos, dedicar-me ao piano. Não sou pianista, como é óbvio, mas como é um instrumento pelo qual tenho um interesse enorme, que admiro enormemente o repertório existente, automaticamente isso direcciona e dá uma perspectiva muito mais ampla. Conseguindo abranger determinados tipos de música e permitindo um conhecimento que uma pessoa que toque só guitarra não consegue. Portanto, é diferente. O piano é um instrumento auto-suficiente como também orquestral, que é outro mundo.
A maior parte dos temas são tocados sem acompanhamento nenhum, foi uma opção baseada em quê?
Não é uma questão de opção, é a tal influência que se fica, consciente ou inconscientemente, de um instrumento que é auto-suficiente como é o piano. Tudo soa bem ali, um instrumento cujo habitat natural é tocar a solo e, inevitavelmente, quando faço as experiências faço-as, automaticamente, logo à partida, a solo, nada mais do que isso. No disco aparecem também peças com violino, por junções tímbricas, e outro tipo de peças a solo, por serem altamente complexas. É uma experiência diferente. O acompanhamento não me agrada muito, sinceramente prefiro fazer sozinho.
Mas é um risco, pois a guitarra tem um som muito próprio e conhece-se quase sempre com acompanhamento, nem que seja com a viola. Teve a noção disso?
A questão não foi ter noção, as peças foram feitas de origem a solo e só soam bem assim, a solo. E o tipo de música em si é solística para guitarra, não tem nada a ver com outro tipo de formações, portanto, uma formação com mais instrumentos não faz sentido neste contexto, fará noutros. Pensou que estaria a evoluir para outro patamar do que se entende pela música da guitarra portuguesa, que apesar de tudo é ainda muito associada ao fado? Acha que o seu disco pode ser isso? Um enobrecimento talvez?
É... Depois cada pode integrá-lo à sua maneira, é uma música que não tem nada a ver com a música à qual a guitarra portuguesa está associada desde o início do século passado. Isso é elementar, óbvio, para qualquer pessoa, agora se é um degrau que sobe ou que desce... não sei, sei que é um postura, uma abordagem e uma atitude diferente, que nada tem a ver com a atitude e a abordagem habitual, e que assim tem sido ao longo da história e ao longo da tradição na guitarra portuguesa.
O facto de a gravação ter sido feita num convento teve alguma simbologia ou foi só a sonoridade?
Se se pode dizer que existiu alguma simbologia será pelo meu gosto pelos sítios eclesiásticos (capelas, igrejas, conventos...) e de o ambiente natural dos instrumentos acústicos ser esse. São locais com uma sonoridade, uma acústica que me leva a dizer que os instrumentos pertencem a esse espaço. O convento agradou-me imenso, tem uma série de salas boas, nas quais se fizeram testes para perceber qual a mais adequada.
Como explica a sua relação de quase amor-ódio com a guitarra?
Não existe, isso são termos aplicados pelos jornalistas – além de que detesto essas duas palavras. Não tenho com a guitarra nenhum relação desse tipo, é simplesmente um instrumento que não me agrada. Não sou paranóico nem neurótico pela guitarra, é simplesmente um instrumento que não me diverte minimamente porque só existe divertimento e prazer para quem está de fora, para quem está a ouvir. Nesse sentido, posso dizer que me agrada imenso se estiver a ouvir. No acto de estar a executar, a tocar as peças, não me agrada.
Como se consegue relacionar então com este instrumento tão especial?
É de facto um instrumento especial, mas as razões que originam uma espécie de insatisfação permanente são razões de ordem técnica. É um instrumento rijo, duro, todas as cordas são de aço a uma altíssima tensão e que, basicamente, exige uma relação totalmente para fazer soar alguma coisa do instrumento, para ter som. E toda a tensão, toda a intensidade com que pode tocar só pode ser uma, caso contrário – como uma atitude mole e sem energia – o instrumento não soa rigorosamente a nada. Exige, portanto, uma relação bastante física e é evidente que isso é exaustivo e cansativo, provoca imensos problemas físicos, desde a posição do corpo até à tensões musculares. É uma espécie de desporto de alta competição.
Toca desde muito novo, desde os três ou quatro anos, mas prossegue com essa difícil relação. Há alguma hipótese de se retirar ou dedicar-se a outro instrumento? O piano, por exemplo, que adora?
Não há hipótese, porque um instrumento deve começar a ser estudado entre os três e os sete/ oito anos. Há vontade de desistir, mas o tempo é irreversível e como assim é, não há forma nenhuma de começar a tocar outro instrumento ou outros instrumentos. Isso teve um tempo e como ele é impiedoso e imperdoável...
Sei que não se preocupa muito com o resultado dos concertos, com a reacção das pessoas, por isso pergunto-lhe quais serão os próximos desafios?
Sim, não me entusiasmam muito, mas também não tenho nenhum expectativa. Este disco é a junção de músicas de um trajecto já com muito tempo, há peças no CD de desde há dez anos – é o reunir de uma existência que vem desde os 18 anos até agora. Simplesmente, é uma coisa quase definitiva.
Continua a compor? Fá-lo periodicamente?
Não. Fiz uma peça para o disco de homenagem a Carlos Paredes, ao contrário do que esperava. Os meus trabalhos de composição são muito espaçados, é um processo lento e difícil.
Filinto Melo

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