O Fado de Coimbra é uma “balada”...
João Falcato, O fado de Coimbra é uma Balada, em Linhas de Elvas, 25/10/1952.
João José Falcato nasceu no Alentejo e frequentou a Faculdade de Letras da UC entre 1942 e 1947. Foi membro do TEUC. Seguiu carreira jornalística. Escreveu dois livros de memórias, Coimbra dos Doutores (1957), e Palácios Confusos. Conheceu Edmundo Bettencourt em Agosto de 1946, a propósito do livro Fogo no Mar, poeta e antigo cantor que lhe transmitiu algumas das ideias-força e conceitos presentes na crónica de 1952: a expressão Canção de Coimbra; a negação do carácter fadístico da Canção de Coimbra; a hipotética origem folclórica da Canção de Coimbra (trata-se da primeira elaboração de uma teoria pouco fundamentada, depois incessantemente repetida); a vigorosa apresentação de Bettencourt como um intérprete de canções. Texto recolhido, transcrito e anotado por António M. Nunes a partir do espólio documental de Edmundo Bettencourt.
Foi numa noite enluarada. Numa dessas noites “vestidas de melancolia”, que só existem nos versos dos poetas... e em Coimbra.
Subia lentamente o Quebra-Costas. Quando galguei o último lanço da escadaria vi as pedras da Sé Velha envolvidas por uma mancha de luz suave e fixa, a deixar que os meus olhos recortassem nítida, no pórtico da igreja, a figura do Julião, garganta afamada na Academia. Havia serenata.
A mancha de centenas de capas negras estacionava no Largo, a escutar em silêncio. A solidão das ruas desertas parecia também escutar. A terra inteira parecia estar aguardando a voz daquele estudante. Fiquei preso do encanto da noite doce e da emoção da expectativa. Ia ouvir cantar pela primeira vez o fado de Coimbra no cenário próprio.
Bagão, doutor em guitarra, lá estava também, cingindo com amor aquele coração de madeira donde arrancava harmonia de acordes que enchiam os ares.
No momento em que a figura do Julião, envolto na capa negra, se tornou hirta, como estátua em nicho de igreja, pareceu-me que se suavizaram ainda mais os tons macios da lua. E a voz subiu, elevou-se, matando o silêncio:
Passam-se noites inteiras
Sem que me possa deitar...
Melodiosa e branda, a guitarra acompanha o chorado da letra.
E no meio do silêncio fundo dos que ouviam, a voz, de novo, ganha volume e ternura:
E a lua já tem olheiras
De tanto me alumiar!...
A cantiga ouvia-se nas ruas próximas, soturnas e desertas. Todos os estudantes continuaram quietos, parados, como que presos ao eco da cantiga que aumentava e se repetia, ao longe, por sobre a fita de prata velha do Mondego.
Senti-me tomado por uma tristeza opressiva e pesada. Aquela voz a elevar-se no silêncio nocturno duma terra vazia, tinha acordado em música o eco das amarguras que me minavam.
Depois tocou-me também a beleza da canção trovadoresca, onde havia mocidade e, de mistura, sonhos de amor. E sem querer, a caminho da Alta, enquanto acariciava brandamente a minha capa ainda nova, fui recordando os nomes de alguns estudantes que com as suas canções encheram Portugal.
Num colóquio de noctívago, perdido das horas e alheio ao descanso, fui perguntando:
Teria sido o Hilário o primeiro estudante que começou a cantar o fado?
Certamente não foi[1]. Outros o fizeram antes dele. Mas sem dúvida foi o primeiro estudante a atingir as culminâncias nessa arte.
Temperamento romântico, ajoelha para cantar frente a João de Deus, numa homenagem simbólica da Academia a um antigo estudante que a soube honrar.
Cantando, fez o seu testamento, como se, por um divinatório dom de boémio, tivesse sabido que a sua vida seria bem curta:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra...
A forma dum coração,
A forma duma guitarra!
Hilário canta ainda um fado que não está de todo emancipado do Fado de Lisboa, mas que já tem a mais a mocidade de quem o canta e o ambiente onde o canta. Tem a mais a moldura admirável duma paisagem encantada e temas da saudade que os vinte anos sabem interpretar[2].
Manassés - outro estudante ligado à boémia coimbrã - canta um fado diferente do Fado Hilário[3]. É já uma canção! Uma canção com arrancos de vivacidade que se afasta cada vez mais do gosto decadentista do Fado de Lisboa, arrastado e monótono[4]. É uma mensagem de mocidade gritada à lua em noites de inesquecível beleza.
Em breve, essa canção vai ganhar mais características próprias. Só espera para o conseguir, que entre em Coimbra, cantando, uma geração de estudantes músicos e poetas. Então sim. Esse desabafo eleva-se para as pedras velhinhas da Sé, ouve-se nas ruas tortuosas e sujas que os estudantes calcorreiam, como coisa própria. O Fado de Lisboa ficará limitado a Lisboa, sem eco em Coimbra[5]. Quis romper a sua muralha e foi assimilado, vencido pela mocidade. Nascido do pretexto para contar uma história, mais dito que cantado, sem equilíbrio de peça musical, perdeu-se por não oferecer variedade de música, acordes, equilíbrio, e conservar sempre o aspecto depressivo[6].
Atenção, senhoras e senhores: entrou em Coimbra e já sobe aos Gerais, cantando, a mais extraordinária geração de estudantes músicos e poetas que a Lusa Atenas viu: os Menanos!
Feliz momento. Neste grupo vem de tudo: poetas, músicos e uma preciosa voz de tenorino que vai encantar Coimbra, enfeitiçar o país e levar longe, a terras estranhas, a beleza duma nova canção.
Francisco Menano - hoje ilustre magistrado - anima toda a actividade musical. A partir deste momento, nem as fogueiras se fazem sem a sua presença, nem as festas sem a recitação dos seus versos.
Mas é António Menano que vai consagrar na mais admirável voz de tenorino, o sabor da “Canção de Coimbra”:
Igreja de Santa Cruz,
Toda de pedra morena[7].
Foi a loucura! Os seus harmoniosos trinados, as suas notas de cristal, trazem a Coimbra milhares de pessoas para o ouvir cantar. Vem a Lisboa e recebe ovações apoteóticas como nunca se fizeram às maiores celebridades líricas[8]. Ninguém se apercebia, porém, que aquele entusiasmo significava a morte do Fado que se cantava em Coimbra, a emancipação total de uma forma decadente e o aparecimento duma nova canção cheia de mocidade e de beleza.
É que o segredo daquele encanto residia no sabor musical das Beiras que António Menano imprimia ao que cantava. O estilo ganhou melancolia e uma nota ainda forçada de sentimentalismo. Mas a maneira doce, e até os motivos, são os regionais. Aconteceu com ele o que iria suceder, a partir daí, com todos os que em Coimbra cantavam.
Cada estudante traz das suas terras, da sua província, o seu folclore. Hilário já não conhecia o “Fado de Coimbra” se a morte o tem poupado. Aquela “canção” transforma-se numa espécie de rapsódia portuguesa, onde o sabor alentejano vai ganhar primazia[9].
Mas ainda Portugal não tinha despertado da enfeitiçante voz de António Menano, e já Coimbra fica deslumbrada ouvindo o maior artista que por lá passou:
Coimbra Menina e Moça
Rouxinol de Bernardim!
Edmundo de Bettencourt ficará para sempre, o maior cantor da nossa terra, e sua canção o grito mais puro que uma garganta humana pode entoar:
Não há terra como a nossa
Não há no mundo outra assim!
Onde está a tristeza decadente do Hilário? A voz do Bettencourt varreu-a em notas cristalinas. Afastou todo o sentimentalismo doentio para criar a popular “Canção de Coimbra”. Ao mesmo tempo, a guitarra é obrigada a novos prodígios e Artur Paredes, com as suas mãos de maravilha, cria um estilo novo. A guitarra fica, mercê da sua Arte, o instrumento próprio para acompanhar esta canção. Alarga-lhe os recursos e liberta-a da confusão que possa ter com o bandolim.
A partir desse momento, tocar no estilo coimbrão é tocar dentro do estilo criado por Artur Paredes. A guitarra, afagada por mãos prodigiosas em carícias da mais pura arte, fica o instrumento próprio para acompanhar Bettencourt na interpretação das canções regionais.
Surge a Senhora do Almotão: encontro maravilhoso da voz de Edmundo de Bettencourt e da riqueza de expressão de Paredes:
Senhora do Almotão,
Ó minha rosa encarnada.
Ao cimo do Alentejo
Chega a vossa nomeada...
Ou ainda esta canção que nas noites quentes e doces de Coimbra gerações de estudantes repetem, nas serenatas do Mondego ou às portas das noivas, altas horas da madrugada:
Todo o bem que não se alcança
Vive em nós, morto de dor.
Só eu não perco a esperança,
E se morrer é de amor.
O Fado de Coimbra estava definitivamente moldado na forma artística que durante muito tempo lhe vieram imprimindo. Balada de mocidade onde a saudade ainda é um motivo amoroso.
Outros a cantaram e de nomeada: Armando Gois, Paradela de Oliveira e quantos... quantos mais?!
Mas foi Edmundo de Bettencourt, o maior artista de todos os cantores-estudantes, aquele que a vazou em definitivo, no tom de desabafo e de amor que ficou encerrado nesta quadra:
Coimbra, Menina e Moça,
Rouxinol de Bernardim!
Não há terra como a nossa,
Nem há no mundo outra assim!
[1] Questão eivada de grande ingenuidade. Estudando com alguma profundidade a prática e os “saberes” dos principais intérpretes da Canção de Coimbra activos até finais do Estado Novo, detecta-se elevado grau de desconhecimento sobre as origens e evolução do género musical cultivado. O cronista intui que talvez Augusto Hilário não tenha sido uma figura fundacional. Porém, desconhece tudo o que se fez e praticou antes de Hilário.
[2] Este parágrafo pressupõe, de acordo com a ideia dominante na época, que a Canção de Coimbra tivera origem no Fado de Lisboa e a partir dele se transformara localmente. Em favor dessa hipotética transformação, Falcato aduz a juventude dos intérpretes (vitalidade, energia), e o papel desempenhado pelo “meio físico e social”. Falcato reproduz acriticamente ideias dos senso comum, hoje insusceptíveis de corroboração.
[3] O autor confunde o “Fado Hilário Moderno” com dois espécimes da autoria de Hilário, respectivamente “Fado Serenata do Hilário” (1894) e “Último Fado do Hilário” (1895).
[4] Os dados decorrentes das investigações mais recentes não confirmam o processo de transição invocado. Manassés de Lacerda foi um tenor lírico de grande expressividade. Os seus discos sugerem-nos um cantor de “opereta ligeira”, situado nos antípodas do estilo vocal ultra-romântico seguido por Menano, Paradela, Junot.
[5] A afirmação carece de ser matizada. António Menano – que também foi um cultor do Fado de Lisboa – formou-se em 1923. Até meados da década de trinta, diversos cantores e guitarristas de Coimbra continuaram a cultivar fados ao estilo de Lisboa, sobretudo nos palcos.
[6] Neste particular, o cronista limita-se a enunciar as ideias feitas que então corriam na boca dos detractores do Fado de Lisboa.
[7] Edmundo de Bettencourt anota, junto a estes dois versos: “Não está certo, quem o cantou primeiro fui eu”.
[8] Este e outros parágrafos da crónica reflectem influências do artigo de João Seabra, Rouxinóis do Mondego, 1944.
[9] Generalização abusiva, não confirmada documentalmente. A Canção de Coimbra não pode ser lida como uma soma de contributos regionais. Ela própria tem origem regional, no sentido de que é coimbrã. Falcato sugere o inverso, isto é, que este género musical seja lido como uma panóplia fragmentada de contributos provinciais.
Foi numa noite enluarada. Numa dessas noites “vestidas de melancolia”, que só existem nos versos dos poetas... e em Coimbra.
Subia lentamente o Quebra-Costas. Quando galguei o último lanço da escadaria vi as pedras da Sé Velha envolvidas por uma mancha de luz suave e fixa, a deixar que os meus olhos recortassem nítida, no pórtico da igreja, a figura do Julião, garganta afamada na Academia. Havia serenata.
A mancha de centenas de capas negras estacionava no Largo, a escutar em silêncio. A solidão das ruas desertas parecia também escutar. A terra inteira parecia estar aguardando a voz daquele estudante. Fiquei preso do encanto da noite doce e da emoção da expectativa. Ia ouvir cantar pela primeira vez o fado de Coimbra no cenário próprio.
Bagão, doutor em guitarra, lá estava também, cingindo com amor aquele coração de madeira donde arrancava harmonia de acordes que enchiam os ares.
No momento em que a figura do Julião, envolto na capa negra, se tornou hirta, como estátua em nicho de igreja, pareceu-me que se suavizaram ainda mais os tons macios da lua. E a voz subiu, elevou-se, matando o silêncio:
Passam-se noites inteiras
Sem que me possa deitar...
Melodiosa e branda, a guitarra acompanha o chorado da letra.
E no meio do silêncio fundo dos que ouviam, a voz, de novo, ganha volume e ternura:
E a lua já tem olheiras
De tanto me alumiar!...
A cantiga ouvia-se nas ruas próximas, soturnas e desertas. Todos os estudantes continuaram quietos, parados, como que presos ao eco da cantiga que aumentava e se repetia, ao longe, por sobre a fita de prata velha do Mondego.
Senti-me tomado por uma tristeza opressiva e pesada. Aquela voz a elevar-se no silêncio nocturno duma terra vazia, tinha acordado em música o eco das amarguras que me minavam.
Depois tocou-me também a beleza da canção trovadoresca, onde havia mocidade e, de mistura, sonhos de amor. E sem querer, a caminho da Alta, enquanto acariciava brandamente a minha capa ainda nova, fui recordando os nomes de alguns estudantes que com as suas canções encheram Portugal.
Num colóquio de noctívago, perdido das horas e alheio ao descanso, fui perguntando:
Teria sido o Hilário o primeiro estudante que começou a cantar o fado?
Certamente não foi[1]. Outros o fizeram antes dele. Mas sem dúvida foi o primeiro estudante a atingir as culminâncias nessa arte.
Temperamento romântico, ajoelha para cantar frente a João de Deus, numa homenagem simbólica da Academia a um antigo estudante que a soube honrar.
Cantando, fez o seu testamento, como se, por um divinatório dom de boémio, tivesse sabido que a sua vida seria bem curta:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra...
A forma dum coração,
A forma duma guitarra!
Hilário canta ainda um fado que não está de todo emancipado do Fado de Lisboa, mas que já tem a mais a mocidade de quem o canta e o ambiente onde o canta. Tem a mais a moldura admirável duma paisagem encantada e temas da saudade que os vinte anos sabem interpretar[2].
Manassés - outro estudante ligado à boémia coimbrã - canta um fado diferente do Fado Hilário[3]. É já uma canção! Uma canção com arrancos de vivacidade que se afasta cada vez mais do gosto decadentista do Fado de Lisboa, arrastado e monótono[4]. É uma mensagem de mocidade gritada à lua em noites de inesquecível beleza.
Em breve, essa canção vai ganhar mais características próprias. Só espera para o conseguir, que entre em Coimbra, cantando, uma geração de estudantes músicos e poetas. Então sim. Esse desabafo eleva-se para as pedras velhinhas da Sé, ouve-se nas ruas tortuosas e sujas que os estudantes calcorreiam, como coisa própria. O Fado de Lisboa ficará limitado a Lisboa, sem eco em Coimbra[5]. Quis romper a sua muralha e foi assimilado, vencido pela mocidade. Nascido do pretexto para contar uma história, mais dito que cantado, sem equilíbrio de peça musical, perdeu-se por não oferecer variedade de música, acordes, equilíbrio, e conservar sempre o aspecto depressivo[6].
Atenção, senhoras e senhores: entrou em Coimbra e já sobe aos Gerais, cantando, a mais extraordinária geração de estudantes músicos e poetas que a Lusa Atenas viu: os Menanos!
Feliz momento. Neste grupo vem de tudo: poetas, músicos e uma preciosa voz de tenorino que vai encantar Coimbra, enfeitiçar o país e levar longe, a terras estranhas, a beleza duma nova canção.
Francisco Menano - hoje ilustre magistrado - anima toda a actividade musical. A partir deste momento, nem as fogueiras se fazem sem a sua presença, nem as festas sem a recitação dos seus versos.
Mas é António Menano que vai consagrar na mais admirável voz de tenorino, o sabor da “Canção de Coimbra”:
Igreja de Santa Cruz,
Toda de pedra morena[7].
Foi a loucura! Os seus harmoniosos trinados, as suas notas de cristal, trazem a Coimbra milhares de pessoas para o ouvir cantar. Vem a Lisboa e recebe ovações apoteóticas como nunca se fizeram às maiores celebridades líricas[8]. Ninguém se apercebia, porém, que aquele entusiasmo significava a morte do Fado que se cantava em Coimbra, a emancipação total de uma forma decadente e o aparecimento duma nova canção cheia de mocidade e de beleza.
É que o segredo daquele encanto residia no sabor musical das Beiras que António Menano imprimia ao que cantava. O estilo ganhou melancolia e uma nota ainda forçada de sentimentalismo. Mas a maneira doce, e até os motivos, são os regionais. Aconteceu com ele o que iria suceder, a partir daí, com todos os que em Coimbra cantavam.
Cada estudante traz das suas terras, da sua província, o seu folclore. Hilário já não conhecia o “Fado de Coimbra” se a morte o tem poupado. Aquela “canção” transforma-se numa espécie de rapsódia portuguesa, onde o sabor alentejano vai ganhar primazia[9].
Mas ainda Portugal não tinha despertado da enfeitiçante voz de António Menano, e já Coimbra fica deslumbrada ouvindo o maior artista que por lá passou:
Coimbra Menina e Moça
Rouxinol de Bernardim!
Edmundo de Bettencourt ficará para sempre, o maior cantor da nossa terra, e sua canção o grito mais puro que uma garganta humana pode entoar:
Não há terra como a nossa
Não há no mundo outra assim!
Onde está a tristeza decadente do Hilário? A voz do Bettencourt varreu-a em notas cristalinas. Afastou todo o sentimentalismo doentio para criar a popular “Canção de Coimbra”. Ao mesmo tempo, a guitarra é obrigada a novos prodígios e Artur Paredes, com as suas mãos de maravilha, cria um estilo novo. A guitarra fica, mercê da sua Arte, o instrumento próprio para acompanhar esta canção. Alarga-lhe os recursos e liberta-a da confusão que possa ter com o bandolim.
A partir desse momento, tocar no estilo coimbrão é tocar dentro do estilo criado por Artur Paredes. A guitarra, afagada por mãos prodigiosas em carícias da mais pura arte, fica o instrumento próprio para acompanhar Bettencourt na interpretação das canções regionais.
Surge a Senhora do Almotão: encontro maravilhoso da voz de Edmundo de Bettencourt e da riqueza de expressão de Paredes:
Senhora do Almotão,
Ó minha rosa encarnada.
Ao cimo do Alentejo
Chega a vossa nomeada...
Ou ainda esta canção que nas noites quentes e doces de Coimbra gerações de estudantes repetem, nas serenatas do Mondego ou às portas das noivas, altas horas da madrugada:
Todo o bem que não se alcança
Vive em nós, morto de dor.
Só eu não perco a esperança,
E se morrer é de amor.
O Fado de Coimbra estava definitivamente moldado na forma artística que durante muito tempo lhe vieram imprimindo. Balada de mocidade onde a saudade ainda é um motivo amoroso.
Outros a cantaram e de nomeada: Armando Gois, Paradela de Oliveira e quantos... quantos mais?!
Mas foi Edmundo de Bettencourt, o maior artista de todos os cantores-estudantes, aquele que a vazou em definitivo, no tom de desabafo e de amor que ficou encerrado nesta quadra:
Coimbra, Menina e Moça,
Rouxinol de Bernardim!
Não há terra como a nossa,
Nem há no mundo outra assim!
[1] Questão eivada de grande ingenuidade. Estudando com alguma profundidade a prática e os “saberes” dos principais intérpretes da Canção de Coimbra activos até finais do Estado Novo, detecta-se elevado grau de desconhecimento sobre as origens e evolução do género musical cultivado. O cronista intui que talvez Augusto Hilário não tenha sido uma figura fundacional. Porém, desconhece tudo o que se fez e praticou antes de Hilário.
[2] Este parágrafo pressupõe, de acordo com a ideia dominante na época, que a Canção de Coimbra tivera origem no Fado de Lisboa e a partir dele se transformara localmente. Em favor dessa hipotética transformação, Falcato aduz a juventude dos intérpretes (vitalidade, energia), e o papel desempenhado pelo “meio físico e social”. Falcato reproduz acriticamente ideias dos senso comum, hoje insusceptíveis de corroboração.
[3] O autor confunde o “Fado Hilário Moderno” com dois espécimes da autoria de Hilário, respectivamente “Fado Serenata do Hilário” (1894) e “Último Fado do Hilário” (1895).
[4] Os dados decorrentes das investigações mais recentes não confirmam o processo de transição invocado. Manassés de Lacerda foi um tenor lírico de grande expressividade. Os seus discos sugerem-nos um cantor de “opereta ligeira”, situado nos antípodas do estilo vocal ultra-romântico seguido por Menano, Paradela, Junot.
[5] A afirmação carece de ser matizada. António Menano – que também foi um cultor do Fado de Lisboa – formou-se em 1923. Até meados da década de trinta, diversos cantores e guitarristas de Coimbra continuaram a cultivar fados ao estilo de Lisboa, sobretudo nos palcos.
[6] Neste particular, o cronista limita-se a enunciar as ideias feitas que então corriam na boca dos detractores do Fado de Lisboa.
[7] Edmundo de Bettencourt anota, junto a estes dois versos: “Não está certo, quem o cantou primeiro fui eu”.
[8] Este e outros parágrafos da crónica reflectem influências do artigo de João Seabra, Rouxinóis do Mondego, 1944.
[9] Generalização abusiva, não confirmada documentalmente. A Canção de Coimbra não pode ser lida como uma soma de contributos regionais. Ela própria tem origem regional, no sentido de que é coimbrã. Falcato sugere o inverso, isto é, que este género musical seja lido como uma panóplia fragmentada de contributos provinciais.
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