José Alberto Sardinha, os sons e as vozes da Música Tradicional Portuguesa
Por António M. Nunes
Advogado na Comarca de Torres Vedras, o Dr. José Alberto de Morais Sardinha (JAS), nasceu em Angola vai para 50 anos. É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa. Jovem estudante, ainda membro do Coro da Juventude Musical Portuguesa, encetou as primeiras experiências de campo como recolector de música popular, instigado pelo maestro Francisco D’Orey. E não mais parou, desde esses anos já “remotos” de 1972-1973, tendo percorrido incansavelmente Portugal Continental e Insular em campanhas de recolhas ao vivo junto de cantores, cantadeiras, tocadores, violeiros, compositores e improvisadores populares. Os seus arquivos ascendem a milhares de horas de música gravada, complementados por entrevistas e fotografias.
Paralelamente, JAS, enriquece e actualiza permanentemente os seus estudos práticos com intensas pesquisas arquivísticas, aquisição de fundos documentais impressos e sonoros em Portugal e no estrangeiro. Além de investigador, cultiva complementarmente a divulgação didáctico-pedagógica por via da sua participação frequente em exposições, colóquios, jornadas e seminários. A este propósito, efectua regularmente conferências sobre a música tradicional portuguesa por todo o país a convite do INATEL, das Câmaras Municipais e dos mais variados organismos e associações culturais e tem participado em vários congressos de etnografia e folclore. Foi Coordenador do ciclo “Sons da Tradição” da EXPO98. É membro do CIOFF de Portugal.
Não foi seguramente como advogado que comecei a ouvir falar da obra de JAS. Foi antes como membro do Grupo Folclórico Ilha Verde, quando me achava a frequentar o Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, pelos anos de 1983-1985. Estava bem longe de sonhar que JAS em breve passaria por Ponta Delgada, com propósitos de gravar o excepcional tocador de Viola da Terra Miguel Pimentel, bem como a voz da cantadeira do Ilha Verde, Maria José Vitória (e não canta ela soberbamente o “Tanchão” no Cd Portugal. Raízes Musicais Nº 6. Algarve e Ilhas, de 1997?). O movimento folclórico na Ilha de São Miguel vivia então estagnado em pressupostos totalmente ultrapassados, que haviam sido herdados passivamente do período do Estado Novo. A viola da terra ainda se tocava, tendo mesmo entrado no currículo do Conservatório local em 1982, mas quanto ao resto eram os trajes adulterados tipo fardeta de teatro de revista, as coreografias modificadas pelo engenho dos ensaiadores, os lentos ritmos das antigas danças progressivamente acelerados, a retirada da viola da terra da roda onde outrora correra, e a omissão de praticamente todo o repertório que escapasse à programação turística. Vivia-se mesmo a “guerra dos tambores” entre alguns ensaiadores puristas da cidade o controverso director do Grupo Folclórico de Santa Cecília (Fajã de Cima) João Vieira Jerónimo que, extrapolando abusivamente dos ranchos de Natal e das Folias do Divino Espírito Santo, decidira correr arbitrariamente todas as modas do folclore micaelense a toques de tambor. Esta inverdade era tão escandalosa quanto todos os velhos tocadores e bailarinos vivos se lembravam de sempre se terem tocado os ritmos das danças nos tampos das violas da terra e não em tambores nem em pandeiretas.
No meio destas querelas (mal estar afinal comum a todo o país no que ao folclore respeitava), começara a afirmar-se no mundo da música tradicional local a Dra. Maria Antónia Esteves, professora de Físico-Química, nativa da Ilha das Flores, que nas horas vagas ia recolhendo, reconstituindo e editando, amostras consideráveis de um outro folclore que não era conhecido nem falado. Maria Antónia Esteves conhecia então muito bem a obra de JAS e em meio da década de 1980 já o indicava como nome maior e incontornável da etnomusicologia portuguesa. Curiosamente, ao longo dos anos de Coimbra, e sem conhecer JAS, continuei a contactar com o exemplo da sua obra. Assim aconteceu com aquisição do notável trabalho de recolha e salvaguarda da Viola Campaniça Alentejana (Cf. “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Miratejo, Contradança, 1986, trabalho que foi criminosamente plagiado em França), com produções da formação Ronda dos Quatro Caminhos (caso do LP “Fados Velhos”, Contradança, PL 87-01, 1987, o qual apresenta reconstituições de recolhas efectuadas na Beira Litoral e interpela de forma inovadora a clássica e revelhada teoria das origens da Canção de Coimbra), ou mesmo em intervenções a que andei ligado como os textos que serviram de apresentação ao Grupo Praxis Nova no LP “Coimbra em Canções”, de 1991. Quiseram os acasos da vida que só tenha vindo a contactar pessoalmente com JAS em 2000, na sequência do lançamento da obra “Tradições Musicais da Estremadura”.
Que lugar para corredores solitários como JAS e Maria Antónia Esteves, num tempo tão ávido de capelanias corporativas e até mesmo de confinamento académico de certas temáticas ciosamente vigiadas e guardadas pelos “orientadores” científicos?
Parece já não haver lugar para uma etnomusicologia à margem da institucionalização universitária. Daí o mal estar e os engulhos com que vai sendo acolhida a monumental e especializada obra de JAS. Na falta de argumentos consistentes, há quem tente desvalorizar-lhe o trabalho, objectando que não é professor universitário. Outros refugiam-se no argumento técnico, esgrimindo que não é músico. O caso protagonizado por JAS não é nem único, nem novo. No campo da investigação historiográfica, o melhor exemplo continua a ser o de Alexandre Herculano, cuja obra se construiu inteiramente à margem de qualquer universidade ou politécnico de oitocentos. Por vezes, o saber académico é de tal maneira formatado pelo corpo de investigadores detentores do monopólio discursivo, que a investigação sobre um determinado campo em vez de avançar e abrir-se, fecha-se sobre si mesma, com recurso a inqualificáveis artimanhas que passam pela não renovação do corpo docente, pela contratação daquele assistente que de antemão garante a ortodoxia investigativa do seu mestre, pela não publicação de novos trabalhos, pela não aceitação das propostas investigativas de alunos de seminários de licenciatura ou de temas destinados a teses de mestrado. Quantos e quantos alunos de licenciatura perseveram e desesperam em tentar mostrar aos seus formadores de seminários que vale bem a pena investigar o tema A ou B, temas esses que sendo desconhecidos do professor titular da cadeira, ou considerados de valia menor pelo mesmo professor, dificilmente reúnem hipóteses para vingar. Que o diga, o Dr. Fernando Marques, guitarrista laureado na 1ª edição do Prémio de Inéditos da CC Edmundo Bettencourt 2004, quando pretendeu concretizar como seminário de licenciatura em Sociologia um trabalho inédito sobre a história e economia da Queima das Fitas. Sempre seria melhor uma estatística sobre o trabalho feminino das cerâmicas do Concelho de Coimbra, ou o grau de satisfação dos reclusos em relação às actividades de oficina. E isto porque não havia favelas para estudar em Coimbra, pois em as havendo, bem iriam os licenciandos de Sociologia para as favelas.
Aceite a etnomusicologia nos estabelecimentos de ensino superior em Portugal, após 1974, ainda não apresentaram aquelas instituições trabalhos sólidos, extensos e credíveis, aptos a ombrearem com a obra de JAS. Não há comparação possível entre a monumental e exaustiva obra de uma vida, “Tradições Musicais da Estremadura” (2000) e o colectivo “Vozes do Povo. A folclorização em Portugal” (2003). Produzido por alunos e investigadores ligados ao Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, os artigos singulares ressentem-se quase sem excepção de linguagem e pressupostos teóricos decalcados nas aulas do formador académico, do abuso de uma grelha comum destinada a preencher itens previamente estipulados e da imposição de uma visão urbana sobre o que resta dos fenómenos rústicos. O trabalho de campo limita-se muitas vezes a uma visita acidental e epidérmica.
Definitivamente ligado à editora Tradisom, de José Moças, JAS tem vindo a questionar alguns dos aparentemente inabaláveis pressupostos sobre o “folclore” herdados da Monarquia Constitucional, Primeira República, Estado Novo e Movimento esquerdista de recuperação da música “popular”. A sua investigação, além de especializada em matérias como a Estremadura, as tunas rurais, a viola de arame alentejana, tem entrado progressivamente em campos minados como os conceitos de “autenticidade”, “antigo”, genuíno”, “sem autor”, “criação colectiva”, interpelando ainda a presença da guitarra em Portugal, o Fado, e até aquelas modas que o Estado Novo, por intermédio da FNAT, declarara sem apelo nem agravo características de certas regiões.
JAS tem realizado diversas campanhas de recolhas em concelhos da Beira Litoral, alguns limítrofes de Coimbra, como Sertã, Pampilhosa da Serra, Figueira da Foz, Mealhada, Montemor-o-Velho, tardando infelizmente uma incursão de fundo à Música Tradicional de Coimbra. Alguns dos seus trabalhos podem ser lidos proveitosamente como bons contributos teóricos para estudos comparativos sobre os diferentes papéis que a guitarra foi assumindo em Portugal, a exemplo do extenso capítulo dedicado à “Guitarra” (“Tradições musicais da Estremadura”, 2000, págs. 409-444, onde ocorrem fotos sobre a guitarra de tipo conimbricense. O autor defende a teoria da fusão Cítara/Guitarra Inglesa, optando por uma presença territorial e artística mais remota daquele instrumento, à semelhança do que também defende Pedro Caldeira Cabral), e do artigo apresentado no simpósio sobre a guitarra, promovido pela Universidade de Évora em 7-9 de Setembro de 2001 (“A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, Actas, 2003, pág. 117 e ss.).
Da “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, de que JAS gentilmente me ofertou exemplar autografado, saliente-se a exaustiva recolha sonora de campo, a conseguida salvaguarda/recuperação do cordofone a nível regional, a investigação densa, o percurso historiado das violas de arame em Portugal e Brasil, os arquivos sonoros anexos e o trabalho didáctico de construção integral de um exemplar do cordofone por Pedro Caldeira Cabral.
Com interesse para a história da Tuna Académica da Universidade de Coimbra e até para a paisagem musical coimbrã académica oitocentista, destaquemos o belíssimo estudo monográfico “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005, com 4 cds anexos de recolhas ao vivo, e capítulos notáveis pelo pioneirismo com que são abordadas questões como a origem histórica e percurso das tunas em Portugal, tipo de instrumentos utilizados, caracterização do repertório, produção e circulação de composições musicais.
Se no campo do “folclore” José Alberto Sardinha se distancia a passos largos das visões engajadas de homens pró-Estado Novo como um Armando Leça e um Mário de Sampayo Ribeiro, também não afina pelo diapasão do glorificado à esquerda Michel Giacometti, denunciando-lhe tiques como a instrumentalização ideológica do património recolhido e a invenção de “folclores puristas” em regiões aparentemente imaculadas como Trás-os-Montes e Alentejo (sobre esta e outras utopias românticas, veja-se João Pedro Oliveira, “Tradição popular erudita. Fenómeno esquecido da etnomusicologia, as tunas são objecto da última obra de recolhas de sons da tradição portuguesa. Uma proposta de José Alberto Sardinha”, Diário de Notícias, 12 de Setembro de 2005, págs. 36-37).
De José Alberto Sardinha esperamos nós muitas e boas surpresas, algumas delas para breve, e também colaboração neste Blog.
Obras publicadas:
-“Recolhas musicais da tradição oral” (ano de 1982. Antologia nacional em três discos, acompanhados da respectiva análise etnográfico-musical);
-“Por uma etnomusicologia portuguesa” (ano de 1982);
-“Viola campaniça - o outro Alentejo” (1986. Monografia sobre uma das mais arcaicas violas populares portuguesas);
-“Modas estremenhas” (ano de 1989. Recolhas musicais da tradição oral da Estremadura);
-“Música da tradição oral na região de Torres Vedras” (ano de 1991. Artigo na revista Torres Cultural);
-“A propósito de Folk-lore” (ano de 1995. Boletim Cultural da Câmara Municipal de Loures);
-“Romaria da Senhora do Almurtão” (ano de 1995. Prefácio a livro de António Silveira Catana);
-“Sobre a funcionalidade do adufe” (ano de 1995. Artigo no Jornal do Fundão);
-“Idanha-a-Nova - toques e cantares da vila” (ano de 1995. CD editado pela EMI -Valentim de Carvalho);
-“Em busca de um mundo perdido” (ano de 1996. Artigo de homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira);
-“Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular em Portugal” (ano de 1996);
-“Contribuições para o estudo do fandango” (ano de 1997);
-“Portugal, raízes musicais” (antologia de 6 CDs com recolhas musicais de todas as províncias e ilhas, editada pelo Jornal de Notícias em 1997);
-“Corais polifónicos em Esmoriz” (ano de 1997);
-“Falando da viola portuguesa” (ano de 1997. Boletim Cultural da Câmara de Loures);
-“A obra etnomusicológica de Virgílio Pereira” (ano de 1998. In Cancioneiro da Covilhã e outros concelhos);
-“Almanaque - um pouco de história” (ano de 1998. Texto para para a EMI - Valentim de Carvalho);
-“Sons da Tradição Rural” (Diário de Notícias, 1998. CD inserido na série Sons da EXPO);
-“A guitarra portuguesa - origens e tradição rural” (artigo na revista do jornal Expresso de 24/12/1998);
-entrada “Música Folclórica” para a actualização do Dicionário de Portugal de Joel Serrão, Suplemento 8, Tomo 2, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, páginas 583-585, coordenação de Maria Filomena Mónica e António Barreto;
-“Música de tradição oral no Fundão e na Cova da Beira” (colaboração no livro do 250.º centenário do concelho do Fundão, no prelo);
-“Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000 (monumental trabalho de recolha e de pesquisa documental, cuja envergadura, arcaboiço teórico e questionamento do objecto valem tanto como a tese de doutoramento de Fernand Braudel sobre “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II, defendida em 1947. Tem 800 páginas, 100 fotos, 120 partituras e 3 CD´s, sobre as tradições musicais naquela região, sendo prefaciado por Fernando Lopes Graça, e que conta com apoio do Instituto Português das Artes do Espectáculo, Instituto Português do Livro, Governo Civil de Lisboa, Associação de Municípios do Oeste e de várias Câmaras da região);
-“A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, Actas A Guitarra Portuguesa, Lisboa, ESTAR, 2003 (palestra lida na Universidade de Évora, no Simpósio Internacional sobre a Guitarra, nos dias 7 a 9 de Setembro de 2001);
-“A Viola Campaniça – o outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom (estudo monográfico e de salvaguarda patrimonial sobre uma das mais arcaicas violas populares de arame portuguesas, edição em capa dura com 208 páginas a cores, complementada com 2 discos compactos com 74 m cada);
-“Braga na Tradição Musical – a Rusga de S. Vicente”, Vila Verde, Tradison, 2002 (estudo sobre um dos grupos mais representativos da região do Baixo Minho, com um capítulo dedicado aos ranchos de representação folclórica e suas origens. O livro é uma edição com capa dura e 144 páginas a cores, contendo um CD com 37 faixas);
-“As Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005 (na continuidade dos seus estudos, José Alberto Sardinha aborda o fenómeno das tunas rurais, documentando a sua história desde as suas origens. O livro, contém informação inédita sobre um campo tradicionalmente desprezado. Edição em capa dura, 354 páginas a cores, contendo quatro CDs, num total de 90 faixas).
Agradecimentos: José Moças (Tradisom), Dra. Maria Antónia Esteves, Dr. José Alberto Morais Sardinha
Por António M. Nunes
Advogado na Comarca de Torres Vedras, o Dr. José Alberto de Morais Sardinha (JAS), nasceu em Angola vai para 50 anos. É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa. Jovem estudante, ainda membro do Coro da Juventude Musical Portuguesa, encetou as primeiras experiências de campo como recolector de música popular, instigado pelo maestro Francisco D’Orey. E não mais parou, desde esses anos já “remotos” de 1972-1973, tendo percorrido incansavelmente Portugal Continental e Insular em campanhas de recolhas ao vivo junto de cantores, cantadeiras, tocadores, violeiros, compositores e improvisadores populares. Os seus arquivos ascendem a milhares de horas de música gravada, complementados por entrevistas e fotografias.
Paralelamente, JAS, enriquece e actualiza permanentemente os seus estudos práticos com intensas pesquisas arquivísticas, aquisição de fundos documentais impressos e sonoros em Portugal e no estrangeiro. Além de investigador, cultiva complementarmente a divulgação didáctico-pedagógica por via da sua participação frequente em exposições, colóquios, jornadas e seminários. A este propósito, efectua regularmente conferências sobre a música tradicional portuguesa por todo o país a convite do INATEL, das Câmaras Municipais e dos mais variados organismos e associações culturais e tem participado em vários congressos de etnografia e folclore. Foi Coordenador do ciclo “Sons da Tradição” da EXPO98. É membro do CIOFF de Portugal.
Não foi seguramente como advogado que comecei a ouvir falar da obra de JAS. Foi antes como membro do Grupo Folclórico Ilha Verde, quando me achava a frequentar o Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, pelos anos de 1983-1985. Estava bem longe de sonhar que JAS em breve passaria por Ponta Delgada, com propósitos de gravar o excepcional tocador de Viola da Terra Miguel Pimentel, bem como a voz da cantadeira do Ilha Verde, Maria José Vitória (e não canta ela soberbamente o “Tanchão” no Cd Portugal. Raízes Musicais Nº 6. Algarve e Ilhas, de 1997?). O movimento folclórico na Ilha de São Miguel vivia então estagnado em pressupostos totalmente ultrapassados, que haviam sido herdados passivamente do período do Estado Novo. A viola da terra ainda se tocava, tendo mesmo entrado no currículo do Conservatório local em 1982, mas quanto ao resto eram os trajes adulterados tipo fardeta de teatro de revista, as coreografias modificadas pelo engenho dos ensaiadores, os lentos ritmos das antigas danças progressivamente acelerados, a retirada da viola da terra da roda onde outrora correra, e a omissão de praticamente todo o repertório que escapasse à programação turística. Vivia-se mesmo a “guerra dos tambores” entre alguns ensaiadores puristas da cidade o controverso director do Grupo Folclórico de Santa Cecília (Fajã de Cima) João Vieira Jerónimo que, extrapolando abusivamente dos ranchos de Natal e das Folias do Divino Espírito Santo, decidira correr arbitrariamente todas as modas do folclore micaelense a toques de tambor. Esta inverdade era tão escandalosa quanto todos os velhos tocadores e bailarinos vivos se lembravam de sempre se terem tocado os ritmos das danças nos tampos das violas da terra e não em tambores nem em pandeiretas.
No meio destas querelas (mal estar afinal comum a todo o país no que ao folclore respeitava), começara a afirmar-se no mundo da música tradicional local a Dra. Maria Antónia Esteves, professora de Físico-Química, nativa da Ilha das Flores, que nas horas vagas ia recolhendo, reconstituindo e editando, amostras consideráveis de um outro folclore que não era conhecido nem falado. Maria Antónia Esteves conhecia então muito bem a obra de JAS e em meio da década de 1980 já o indicava como nome maior e incontornável da etnomusicologia portuguesa. Curiosamente, ao longo dos anos de Coimbra, e sem conhecer JAS, continuei a contactar com o exemplo da sua obra. Assim aconteceu com aquisição do notável trabalho de recolha e salvaguarda da Viola Campaniça Alentejana (Cf. “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Miratejo, Contradança, 1986, trabalho que foi criminosamente plagiado em França), com produções da formação Ronda dos Quatro Caminhos (caso do LP “Fados Velhos”, Contradança, PL 87-01, 1987, o qual apresenta reconstituições de recolhas efectuadas na Beira Litoral e interpela de forma inovadora a clássica e revelhada teoria das origens da Canção de Coimbra), ou mesmo em intervenções a que andei ligado como os textos que serviram de apresentação ao Grupo Praxis Nova no LP “Coimbra em Canções”, de 1991. Quiseram os acasos da vida que só tenha vindo a contactar pessoalmente com JAS em 2000, na sequência do lançamento da obra “Tradições Musicais da Estremadura”.
Que lugar para corredores solitários como JAS e Maria Antónia Esteves, num tempo tão ávido de capelanias corporativas e até mesmo de confinamento académico de certas temáticas ciosamente vigiadas e guardadas pelos “orientadores” científicos?
Parece já não haver lugar para uma etnomusicologia à margem da institucionalização universitária. Daí o mal estar e os engulhos com que vai sendo acolhida a monumental e especializada obra de JAS. Na falta de argumentos consistentes, há quem tente desvalorizar-lhe o trabalho, objectando que não é professor universitário. Outros refugiam-se no argumento técnico, esgrimindo que não é músico. O caso protagonizado por JAS não é nem único, nem novo. No campo da investigação historiográfica, o melhor exemplo continua a ser o de Alexandre Herculano, cuja obra se construiu inteiramente à margem de qualquer universidade ou politécnico de oitocentos. Por vezes, o saber académico é de tal maneira formatado pelo corpo de investigadores detentores do monopólio discursivo, que a investigação sobre um determinado campo em vez de avançar e abrir-se, fecha-se sobre si mesma, com recurso a inqualificáveis artimanhas que passam pela não renovação do corpo docente, pela contratação daquele assistente que de antemão garante a ortodoxia investigativa do seu mestre, pela não publicação de novos trabalhos, pela não aceitação das propostas investigativas de alunos de seminários de licenciatura ou de temas destinados a teses de mestrado. Quantos e quantos alunos de licenciatura perseveram e desesperam em tentar mostrar aos seus formadores de seminários que vale bem a pena investigar o tema A ou B, temas esses que sendo desconhecidos do professor titular da cadeira, ou considerados de valia menor pelo mesmo professor, dificilmente reúnem hipóteses para vingar. Que o diga, o Dr. Fernando Marques, guitarrista laureado na 1ª edição do Prémio de Inéditos da CC Edmundo Bettencourt 2004, quando pretendeu concretizar como seminário de licenciatura em Sociologia um trabalho inédito sobre a história e economia da Queima das Fitas. Sempre seria melhor uma estatística sobre o trabalho feminino das cerâmicas do Concelho de Coimbra, ou o grau de satisfação dos reclusos em relação às actividades de oficina. E isto porque não havia favelas para estudar em Coimbra, pois em as havendo, bem iriam os licenciandos de Sociologia para as favelas.
Aceite a etnomusicologia nos estabelecimentos de ensino superior em Portugal, após 1974, ainda não apresentaram aquelas instituições trabalhos sólidos, extensos e credíveis, aptos a ombrearem com a obra de JAS. Não há comparação possível entre a monumental e exaustiva obra de uma vida, “Tradições Musicais da Estremadura” (2000) e o colectivo “Vozes do Povo. A folclorização em Portugal” (2003). Produzido por alunos e investigadores ligados ao Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, os artigos singulares ressentem-se quase sem excepção de linguagem e pressupostos teóricos decalcados nas aulas do formador académico, do abuso de uma grelha comum destinada a preencher itens previamente estipulados e da imposição de uma visão urbana sobre o que resta dos fenómenos rústicos. O trabalho de campo limita-se muitas vezes a uma visita acidental e epidérmica.
Definitivamente ligado à editora Tradisom, de José Moças, JAS tem vindo a questionar alguns dos aparentemente inabaláveis pressupostos sobre o “folclore” herdados da Monarquia Constitucional, Primeira República, Estado Novo e Movimento esquerdista de recuperação da música “popular”. A sua investigação, além de especializada em matérias como a Estremadura, as tunas rurais, a viola de arame alentejana, tem entrado progressivamente em campos minados como os conceitos de “autenticidade”, “antigo”, genuíno”, “sem autor”, “criação colectiva”, interpelando ainda a presença da guitarra em Portugal, o Fado, e até aquelas modas que o Estado Novo, por intermédio da FNAT, declarara sem apelo nem agravo características de certas regiões.
JAS tem realizado diversas campanhas de recolhas em concelhos da Beira Litoral, alguns limítrofes de Coimbra, como Sertã, Pampilhosa da Serra, Figueira da Foz, Mealhada, Montemor-o-Velho, tardando infelizmente uma incursão de fundo à Música Tradicional de Coimbra. Alguns dos seus trabalhos podem ser lidos proveitosamente como bons contributos teóricos para estudos comparativos sobre os diferentes papéis que a guitarra foi assumindo em Portugal, a exemplo do extenso capítulo dedicado à “Guitarra” (“Tradições musicais da Estremadura”, 2000, págs. 409-444, onde ocorrem fotos sobre a guitarra de tipo conimbricense. O autor defende a teoria da fusão Cítara/Guitarra Inglesa, optando por uma presença territorial e artística mais remota daquele instrumento, à semelhança do que também defende Pedro Caldeira Cabral), e do artigo apresentado no simpósio sobre a guitarra, promovido pela Universidade de Évora em 7-9 de Setembro de 2001 (“A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, Actas, 2003, pág. 117 e ss.).
Da “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, de que JAS gentilmente me ofertou exemplar autografado, saliente-se a exaustiva recolha sonora de campo, a conseguida salvaguarda/recuperação do cordofone a nível regional, a investigação densa, o percurso historiado das violas de arame em Portugal e Brasil, os arquivos sonoros anexos e o trabalho didáctico de construção integral de um exemplar do cordofone por Pedro Caldeira Cabral.
Com interesse para a história da Tuna Académica da Universidade de Coimbra e até para a paisagem musical coimbrã académica oitocentista, destaquemos o belíssimo estudo monográfico “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005, com 4 cds anexos de recolhas ao vivo, e capítulos notáveis pelo pioneirismo com que são abordadas questões como a origem histórica e percurso das tunas em Portugal, tipo de instrumentos utilizados, caracterização do repertório, produção e circulação de composições musicais.
Se no campo do “folclore” José Alberto Sardinha se distancia a passos largos das visões engajadas de homens pró-Estado Novo como um Armando Leça e um Mário de Sampayo Ribeiro, também não afina pelo diapasão do glorificado à esquerda Michel Giacometti, denunciando-lhe tiques como a instrumentalização ideológica do património recolhido e a invenção de “folclores puristas” em regiões aparentemente imaculadas como Trás-os-Montes e Alentejo (sobre esta e outras utopias românticas, veja-se João Pedro Oliveira, “Tradição popular erudita. Fenómeno esquecido da etnomusicologia, as tunas são objecto da última obra de recolhas de sons da tradição portuguesa. Uma proposta de José Alberto Sardinha”, Diário de Notícias, 12 de Setembro de 2005, págs. 36-37).
De José Alberto Sardinha esperamos nós muitas e boas surpresas, algumas delas para breve, e também colaboração neste Blog.
Obras publicadas:
-“Recolhas musicais da tradição oral” (ano de 1982. Antologia nacional em três discos, acompanhados da respectiva análise etnográfico-musical);
-“Por uma etnomusicologia portuguesa” (ano de 1982);
-“Viola campaniça - o outro Alentejo” (1986. Monografia sobre uma das mais arcaicas violas populares portuguesas);
-“Modas estremenhas” (ano de 1989. Recolhas musicais da tradição oral da Estremadura);
-“Música da tradição oral na região de Torres Vedras” (ano de 1991. Artigo na revista Torres Cultural);
-“A propósito de Folk-lore” (ano de 1995. Boletim Cultural da Câmara Municipal de Loures);
-“Romaria da Senhora do Almurtão” (ano de 1995. Prefácio a livro de António Silveira Catana);
-“Sobre a funcionalidade do adufe” (ano de 1995. Artigo no Jornal do Fundão);
-“Idanha-a-Nova - toques e cantares da vila” (ano de 1995. CD editado pela EMI -Valentim de Carvalho);
-“Em busca de um mundo perdido” (ano de 1996. Artigo de homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira);
-“Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular em Portugal” (ano de 1996);
-“Contribuições para o estudo do fandango” (ano de 1997);
-“Portugal, raízes musicais” (antologia de 6 CDs com recolhas musicais de todas as províncias e ilhas, editada pelo Jornal de Notícias em 1997);
-“Corais polifónicos em Esmoriz” (ano de 1997);
-“Falando da viola portuguesa” (ano de 1997. Boletim Cultural da Câmara de Loures);
-“A obra etnomusicológica de Virgílio Pereira” (ano de 1998. In Cancioneiro da Covilhã e outros concelhos);
-“Almanaque - um pouco de história” (ano de 1998. Texto para para a EMI - Valentim de Carvalho);
-“Sons da Tradição Rural” (Diário de Notícias, 1998. CD inserido na série Sons da EXPO);
-“A guitarra portuguesa - origens e tradição rural” (artigo na revista do jornal Expresso de 24/12/1998);
-entrada “Música Folclórica” para a actualização do Dicionário de Portugal de Joel Serrão, Suplemento 8, Tomo 2, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, páginas 583-585, coordenação de Maria Filomena Mónica e António Barreto;
-“Música de tradição oral no Fundão e na Cova da Beira” (colaboração no livro do 250.º centenário do concelho do Fundão, no prelo);
-“Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000 (monumental trabalho de recolha e de pesquisa documental, cuja envergadura, arcaboiço teórico e questionamento do objecto valem tanto como a tese de doutoramento de Fernand Braudel sobre “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II, defendida em 1947. Tem 800 páginas, 100 fotos, 120 partituras e 3 CD´s, sobre as tradições musicais naquela região, sendo prefaciado por Fernando Lopes Graça, e que conta com apoio do Instituto Português das Artes do Espectáculo, Instituto Português do Livro, Governo Civil de Lisboa, Associação de Municípios do Oeste e de várias Câmaras da região);
-“A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, Actas A Guitarra Portuguesa, Lisboa, ESTAR, 2003 (palestra lida na Universidade de Évora, no Simpósio Internacional sobre a Guitarra, nos dias 7 a 9 de Setembro de 2001);
-“A Viola Campaniça – o outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom (estudo monográfico e de salvaguarda patrimonial sobre uma das mais arcaicas violas populares de arame portuguesas, edição em capa dura com 208 páginas a cores, complementada com 2 discos compactos com 74 m cada);
-“Braga na Tradição Musical – a Rusga de S. Vicente”, Vila Verde, Tradison, 2002 (estudo sobre um dos grupos mais representativos da região do Baixo Minho, com um capítulo dedicado aos ranchos de representação folclórica e suas origens. O livro é uma edição com capa dura e 144 páginas a cores, contendo um CD com 37 faixas);
-“As Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005 (na continuidade dos seus estudos, José Alberto Sardinha aborda o fenómeno das tunas rurais, documentando a sua história desde as suas origens. O livro, contém informação inédita sobre um campo tradicionalmente desprezado. Edição em capa dura, 354 páginas a cores, contendo quatro CDs, num total de 90 faixas).
Agradecimentos: José Moças (Tradisom), Dra. Maria Antónia Esteves, Dr. José Alberto Morais Sardinha
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