quinta-feira, dezembro 22, 2005

Comentário ao Post "Fado Alentejano" e resposta ao comentário

Há algum tempo que visito de vez em quando este blogue, mas só agora faço um comentário.
Devia começar por um rol de elogios, mas confesso que me faltam as palavras certas. Talvez me deva ficar por um grande Obrigado!
Mas vamos à razão porque comento _agora_: sinto-me obrigado a isso, porque já ouvi o disco de Carlos Leal, e posso confirmar que o "Fado Alentejano" cantado nesse disco é o de Armando Goes.
O Carlos Leal em questão era um estudante da Faculdade de Medicina do Porto, cantor no Orfeão Académico do Porto e na Tuna Académica do Porto. Era natural de Vila do Conde e depois de formado foi médico anestesista na cidade do Porto. E quanto a pormenores biográficos, é tudo o que tenho na memória.
Uma correcção: o guitarrista era Amândio Marques, e não Armando Marques (se bem me lembro esse nome errado aparece na etiqueta dos discos). Amândio Marques estudou também no Porto, acompanhando Carlos Leal em muitas serenatas e espectáculos, mas transferiu-se depois para Coimbra (suspeito que antes de 1928), onde se terá formado em Direito (exerceu depois a advocacia no Porto). Imagino que no Porto tivesse estudado na Faculdade de Letras.
Sei que Armando Goes participou numa excursão ao Porto no carnaval de 1928 (que talvez seja uma que Amândio Marques organizou ou incentivou quando já estava em Coimbra). Mas se as gravações de Carlos Leal forem de 1926-27, essa excursão não explica a importação (desculpem o meu ponto de vista) do "Fado Alentejano". Creio que hoje em dia se subestima a mobilidade dos estudantes do início do século XX (quando havia currículos centralizados e burocraticamente era fácil ir fazer um ano a outra universidade). (1) Não me parece que o cultivo do Fado de Coimbra(2) pelos estudantes do Porto nessa época se devesse simplesmente à popularidade dos discos do Menano e outros cantores da moda; antes essa mobilidade devia ter consequências na transmissão de comportamentos e práticas culturais.
As notas acima são de memória, pois estou neste momento em Lisboa, afastado das minhas fontes. Mas posso dizer que estas quase se resumem a cópias das gravações de Carlos Leal e aos números únicos de 1938 e 1962 do jornal "Porto Académico", onde aparecem textos memorialistas de Carlos Leal e Amândio Marques (respectivamente).
Com as melhores Saudações Académicas (e desejos de Boas Festas),
João Caramalho
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Esqueci-me de um pormenor: salvo erro Armando Goes foi caloiro no Porto, mudando no segundo ano para Coimbra. Não terá mantido contactos pessoais com o Porto quando em Coimbra?
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(1) Um exemplo apenas: o recentemente falecido Emídio Guerreiro, estudante de matemática no Porto nos anos 20, fez um ano em Coimbra (ou antes, esteve um ano matriculado em Coimbra - segundo o seu testemunho pessoal, não estudou lá nada), tendo-se inscrito na Tuna Académica de Coimbra (como orador...) e participado na digressão ao Brasil (1924?) - factos recordados pelo próprio no seu discurso no jantar do Encontro Anual da Sociedade Portuguesa de Matemática realizado no Porto em Maio de 2004.
(2)Desculpem a insistência na designação tradicional; uso-a somente pelo seu carácter tradicional, e não porque ache que o Fado de Coimbra é um subgénero ou variante do Fado de Lisboa.
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Resposta
A gravação de Carlos Leal
Agradeço a prestimosa colaboração prestada pelo Sr. João Caramalho relativamente ao cantor Carlos Leal e ao guitarrista viseense Amândio Marques. Confirmo que Armando Goes já cantava no Liceu de Leiria, tendo feito a sua primeira matrícula de estudos superiores na UP antes de se fixar em Coimbra no ano de 1924.
Tudo isto nos levaria a uma quilométrica conversa, conversa essa que de alguma forma já tenho vindo a travar muito epidermicamente com o Sr. António Fernandes, Director Artístico do Grupo Folclórico do Porto.
Relativamente ao assunto que nos ocupa, há que assinalar uma longa prática da Guitarra Inglesa na cidade do Porto, pelo menos desde meados do século XVIII, instrumento que se veio a converter na Guitarra do Porto, com a sua famosa voluta em florão (caída em desuso). Há que assinalar a proliferação de métodos de Guitarra por autores/impressores portuenses, como António da Silva Leite, Reynaldo Varela, César das Neves e José Ferro. Há que assinalar em oficinas de violaria da cidade do Porto a intensa construção de guitarras para abastecimento da própria cidade, meios rurais circundantes (Douro Litoral) e Coimbra.
Importa referir que na cidade do Porto se desenvolveu, sobretudo no período duro do Ultra-Romantismo, a pecha das cançonetas sentimentalonas, próximas daquilo que veio a ser o etno-estilo conimbricense (foi lá que o compositor Paulo Brandão musicou O Noivado do Sepulcro).
Os cancioneiros oitocentistas estão bem nutridos de solfas comprovativas do que vimos afirmando. Dito de forma mais clara, na cidade do Porto cultivou-se intensamente o Fado (no estilo agora dito à Lisboa), mas também estiveram criadas quase todas a condições para a construção de um género artístico próximo do que veio a ser a Canção de Coimbra. E esta constatação não é assunto menor, sobretudo se tivermos em conta que já havíamos chegado a idênticas conclusões quando se comparam os repertórios de época em Coimbra e nos Açores. Como diria José Alberto Sardinha, na altura desenvolveu-se um ambiente propiciador ao cultivo e composição daquele tipo de peças sentimentais em determinados espaços geo-culturais portugueses. Até nos meios rurais se fez sentir esporadicamente o gosto pela entoação à maneira de Coimbra, sobretudo em espaços onde mantiveram grande dinamismo as tunas rurais. Aliás, ste assunto caba de ser estudado em profundidade por José Alberto Sardinha, para as tunas de Vila Real e Marão (Amarante). Não será demais relembrar o papel da ópera no Teatro Nacional de São João e a intensa impressão de repertório clássico e tributário do clássico para consumo de tunas, corais, filarmónicas, orquestras de teatros provinciais, regentes de capelas e igrejas, professores de música de colégios e liceus, professores de dança, canto e cordofones, e meninas burguesas adestradas nas artes do canto e do piano.
Os exemplos de produções locais e de importações/exportações multiplicam-se mercê da circulação dos agentes humanos, da edição de partituras impressas, da comercialização nacional e internacional de discos, do translado de solfas impressas para manuscritos e até da intensificação das práticas de retransmissão oral. Basta convocar, para finais do século XIX, a intensa produção de um artista como Reynaldo Varela, que nunca viveu nem estudou em Coimbra. Lembre-se também a monumental recolha de César das Neves ("Cancioneiro de Muzicas Populares", em 3 tomos), e as edições de partituras pelas casas Eduardo da Fonseca, Sassetti, Artur Barbedo e Moreira de Sá. Entre 1916 e 1920 algumas casas produtoras de vinhos do Porto lançaram em Portugal e no Brasil brochuras de partituras contendo cançonetas ligeiras, fados à Lisboa, e temas do repertório coimbrão. Posso citar o álbum dos vinhos "Constantino", contendo quase todo o repertório Manassés (1916), e o álbum de "Ramos Pinto" com peças de Lisboa, Coimbra e Porto. Muito antes, na década de 1850, João António Ribas, Director do Teatro de São João, recolheu e editou várias melodias de Coimbra, nelas incluindo o mais antigo título que se conhece com o designativo "fado de Coimbra" (O Fado Atroador).
O que se fazia em Lisboa era conhecido no Porto. O que se fazia em Coimbra era conhecido no Porto. O que se produzia em Portugal continental chegava aos espaços insulares mesmo considerando os meses ou os anos de atraso. O facto é que as melodias circulavam. De outra forma, como é que os ensaiadores de teatros amadores de uma recôndita aldeola de pescadores e pastores da Ilha do Pico conheciam à entrada do século XX amostras incríveis do que se estava a cantar em Lisboa, Porto e Coimbra?
Grande parte do que se produzia em Coimbra era conhecido no Porto. Não há, entre finais do século XIX e inícios do século XX produções musicais regionalmente estanques. Há (e lamento não corroborar a lenda) importações, adaptações e sincretismos. Como também não há "popular". Há, evidentemente, anónimo, desconhecido, popularizado. Na rubrica da TSF, Fado Maior, já tivemos o ensejo de frisar que não são de causar espanto gravações no estilo Coimbra feitas por um cantor brasileiro logo nos alvores do século XX. Só causariam estranheza se por uma questão de genuflexão à lenda das origens continuássemos a defender o indefensável. E o indefensável vem provar que um género artístico que já se encontrava tão popularizado em Coimbra, Lisboa, Porto, Rio de Janeiro e São Paulo, por volta de 1900, não poderia nunca ter começado a germinar apenas 10 anos antes das primeiras gravações discográficas conhecidas (estamos a falar da piedosa e falsa fundação hilariana).
O famoso e notável cantor Manassés de Lacerda também viveu, cantou e gravou discos no Porto. Foi aluno interno do Colégio de São Carlos. Por exemplo, em 1910, houve gravações ao estilo Coimbra por um Luís Ferreira, ao que parece activo no Porto, posicionado na esteira de Manassés. Na década de 1920 podemos referir as presenças em estúdio de figuras como Luís Eloy da Silva (tenor extenso, no estilo Paradela de Oliveira), Felisberto Ferreirinha (bastas gravações, este oriundo de Espinho), José Joaquim Cavalheiro (guitarrista misto, tocando no estilo Lisboa e no de Coimbra à antiga com afinação natural), e Carlos Leal.
A título de mera curiosidade, anotemos que foi Carlos Leal quem primeiramente gravou a famosa "Canção das Rendilheiras de Vila do Conde", creio que regravada em finais da década de 1960 pelo cantor angolano João Queirós (fugaz passagem por Coimbra, fixação profissional em Lisboa).
Nos anos 30 destacou-se nos cafés portuenses o jovem e desconhecido cantor, natural de Ermesinde, Alberto Ribeiro. Ribeiro interpretava então um repertório eclético, preenchido por fados estilo Lisboa, temas de Coimbra e canções ligeiras em voga. Na época em apreço já estavam definidos os cânones da CC, os quais Alberto Ribeiro nunca chegou a assimilar. Daí aquela forma de cantar, que de Coimbra apenas tem o "parecer" mas não a "escola". Da mesma época foi também o tenor Loubet Bravo, funcionário da CP no Porto, com inúmeras gravações nas décadas de 1960-1970, lamentavelmente acompanhado por tocata de fado de Lisboa. E creio que poderei citar para as décadas de 1950-1960 a presença e as gravações do cantor Ângelo Fernandes (??), acompanhado por tocadores activos em restaurantes, cafés e casas de fados no Porto (Marcírio Ferreira, Reto, Arnaldo Abreu...). Nestes casos nota-se, compreensivelmente algum desvio à estétiva vocal conimbricense, desfazamento repertorial e prolongamento anacrónico de mitemas nos textos cantados. Esta "tradição" da prática da Canção de Coimbra por artistas activos no Porto, mas posicionados fora dos circuitos estudantis, ainda prossegue em casa de fados com Valdemar Vigário e o guitarrista Samuel Paixão.
Importará também clarificar - estamos em conversa amena sobre intercâmbios - que foi a partir dos guitarristas portuenses (estilo Lisboa) António Mousão, José Joaquim Cavalheiro, António Barbeirinho e José Nunes, que se popularizaram nos meios lisboetas as "Variações Sobre o Fado João de Deus" (a peça original é de Coimbra) e a guitarrada "Fado Menor do Porto" (esta plagiada sem apelo nem agravo a uma composição de Manassés de Lacerda).
Sem querer entrar em atalhos que não são os meus, não poderei, face aos dados investigativos disponíveis, corroborar de modo algum a leitura explicitamente formulada pela equipa que em 2004 editou no jornal Público o CD “O fado do Público. Os Fados do Porto. Nº 13”, quando se pretendeu que o Fado nunca conheceu representatividade/produção no Porto. Enfim, a ideia agrada aos defensores do Fado como símbolo identitário de Lisboa, e também serve os portuenses cultores das rivalidades bairristas anti-Lisboa. Mas, a investigação não apoia nenhuma daquelas pretensões. A prática e a produção do Fado na cidade do Porto remonta pelo menos aos anos da juventude esturdiosa de Camilo castelo Branco (década de 1840), sendo bem conhecidos imensos nomes de agentes que nunca necessitaram de migrar para Lisboa para afirmarem a sua arte. Ajuda, de alguma forma, a aprofundar esta questão mal conhecida o cd produzido em 2001 pelo Grupo Folclórico do Porto, cujo título é "Fado do Porto".
Embora não tenha desenvolvido a questão, julgo que para os favores experimentados pela Canção de Coimbra no Porto, poderão ter contribuído a partir de certa altura as atitudes condescendentes de intelectuais locais como um António Arroyo, um João Arroyo, um Armando Leça, um Fernando Pires de Lima, um Vergílio Pereira, um Rebelo Bonito, como é sabido ferozes e implacáveis inimigos do "fado estilo Lisboa".
À entrada da década de 1960 podemos referir o estudante Casimiro Ferreira que, em rápida passagem por Coimbra, fez gravações com o grupo de António Portugal. Outros exemplos serão os configurados por António Pinho Brojo nos anos em que estudou Farmácia na UPorto e pelo cantor Napoleão Amorim. Recorde-se ainda que o guitarrista Paulo de Sá manteve nas décadas de 1930-1940 intensa actividade no Porto e na Granja, recebendo a colaboração dos cantores José Archer e do Governador Civil do Porto. Algumas das composições de Paulo de Sá foram de tal modo populares em certos meios portuenses ao ponto de se julgar erroneamente que o seu "Lá Longe" era do guitarrista Paupério.
Os contactos/importação cultural, que referimos muito ao de leve, vinham pelo menos do tempo da Escola Médico-Cirúrgica, a fazer fé numa impressa balada de despedida dos alunos de Medicina de 1902 (Manuel Monterroso e Campos Monteiro). A única diferença entre a balada referida e as que se produziam copiosamente em Coimbra reside apenas nos sujeitos produtores.
Como é sabido, as comunidades de cultores e de consumidores da Canção de Coimbra das duas cidades não se pautam propriamente por amistoso convívio. Em todo o caso, não deixarei de indicar para leitura formativa e esclarecedora sobre esta questão os textos já aqui editados pelo Prof. Doutor Armando Luís de Carvalho Homem.
Que a CC possa aproveitar em termos de produção, de conhecimento e de salvaguarda patrimonial, com estas bem vindas e oportunas colaborações. Melindres sempre os houve e sempre os haverá. Lamentavelmente a Canção de Coimbra ainda não conquistou aquele momento cultural próprio dos géneros artísticos arduamente historiados, como acontece com o Tango e com o Jazz. A prática da Canção de Coimbra e da música ao estilo de Coimbra na cidade do Porto também está por fazer. Mas, a omissão dos estudos não legitima a fraude cultural, pelo que a contrafacção e a ignorância apenas aproveitarão aos predadores da Galáxia Sonora Coimbrã.
(Caso tal seja possível, agradecemos envio de exemplares das gravações que refere, por forma a incorporarem o nosso acervo documental).
António Manuel Nunes

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