sábado, dezembro 10, 2005

UM DOS FUNDADORES DA PRESENÇA
Reportagem de Paulo Antunes, revista EVA, Lisboa, Novembro de 1955
(transcrição e fixação do texto por António M. Nunes a partir de um recorte de imprensa existente no espólio documental de Edmundo Bettencourt, cedido pela viúva em 1998. Este texto já havia sido publicado na obra "No rasto de Edmundo de Bettencourt", Funchal, DRAC, 1999)
Não foi o Hilário, com certeza, o primeiro estudante de Coimbra que ali começou a cantar o Fado. Outros, antes dele, o fizeram. Mas foi, de facto, o cantor-estudante da nobre cidade onde se fazem os doutores que, cantando o Fado, atingiu as culminâncias da fama. Vitimado pela tuberculose em plena juventude, Hilário deixou após si um rasto de lenda romântica que ainda perdura.
A mais de um século de distância, a quadra que encerra o seu testamento de cantor-estudante e de boémio, continua a ouvir-se:

Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra...
A forma de um coração,
A forma de uma guitarra!...

Hilário cantou um Fado ainda não de todo emancipado do Fado de Lisboa, arrastado e monótono, nascido do pretexto para cantar uma história e, mais do que cantado, dito. Era, e é, depressivo e doentio o Fado de Lisboa. Todavia, Hilário deu-lhe a frescura da sua mocidade boémia e, arrancando-o às vielas onde essa toada que foi de escravos teve a sua génese, plantou-o na paisagem fresca de Coimbra.
Outros, depois de Hilário, mais afastaram o Fado de Coimbra do Fado de Lisboa. Manassés, boémio como Hilário, foi um deles. Mas é com os irmãos Menano que o Fado de Coimbra deixa de ser fado e se transforma em balada.
Com Edmundo de Bettencourt, chegado à cidade do Mondego por 1922, mais e definitivamente o Fado-Canção ganha foros de verdadeira autonomia. Com a sua clara voz de tenorino, e acompanhado à guitarra por Artur Paredes, ambos criam um estilo próprio e inconfundível. Não é a morte nem a desesperança o que dá o tónus à sua Arte. É a vida, a esperança! A voz de Edmundo espanta de vez o fatalismo que condicionava o cantar dos anteriores cultores do Fado. E, talvez, não será mesmo justo considerar Edmundo um fadista. Mais do que o Fado, interessa-lhe a genuina canção popular, a que ele dá foros de cidade.
A respeito de Edmundo de Bettencourt escreveu Alberto de Serpa na “Ilustração”, em 1929: “É português, é Poeta e (que delicioso Poeta!) sabe do fado e não é piegas”. Um retrato perfeito!

Menino das Ilhas
Edmundo de Bettencourt nasceu nas ilhas. Na cidade do Funchal, capital da formosa Ilha da Madeira, a 7 de Agosto de 1899. Aí decorreu a sua infância e a sua adolescência. Aí cursou o Liceu, compôs os primeiros versos e, pela primeira vez, cantou, em serenatas de estudantes adolescentes.
Até Lisboa, onde frequentou a Universidade, e até Coimbra, onde continuou a estudar e onde descobriram a maravilha da sua voz, a vida de Edmundo de Bettencourt foi como a de tantos estudantes que as ilhas mandam para Portugal à cata do canudo de doutor... Com a única diferença de que este estudante ilhéu não procurava apenas regressar à ilha, travestido de burocrata ou de advogado rábula. Bettencourt era poeta e havia nele uma inquietação que não se coaduna com a mediocridade dourada à força do decorar de sebentas.
Nota curiosa: o maior cantor-estudante de Coimbra, o rei dos cantores-estudantes, descende de um rei: Jean de Bettencourt, soberano efémero das ilhas Canárias que, vindo da Normandia, conquistou aos Guanches. Maciot de Bettencourt, sobrinho e herdeiro de Jean, é o mais antigo avô ilhéu de Edmundo de Bettencourt. Mas - descansai, grandes de Espanha! - Edmundo de Bettencourt é um descendente de rei que não levantará nunca problemas de reivindicação de trono. Nunca amou a pompa nem a glória, e é...republicano!

Tiros em Monsanto
Terminado o curso do Liceu, em 1918, Edmundo de Bettencourt preparou-se para a abalada, rumo à Universidade. Mas só no ano seguinte aportou a Lisboa. A guerra e a epidemia que sobreveio, a morte de Sidónio - tudo isto adiou para Janeiro a esperada abertura das aulas. Quando, com outros estudantes da sua terra, chegou a Lisboa, ouviam-se os derradeiros tiros de Monsanto. A capital estava em armas. Mas, no dia seguinte, reinava já a paz e os jovens ilhéus puseram-se a descobrir a grande cidade. E foram ter à Brasileira do Rossio, onde sabiam que o café era bom... Trajavam capa e batina. Mal entraram, viram que toda a gente os olhava com mal contida amizade. E sentiram-se satisfeitos pela acolhida que Lisboa lhes dava. Já sentados, um ocupante da outra mesa voltou-se para os jovens ilhéus e falou assim:
Vocês bateram-se bem em Monsanto. Bravo, rapaziada!
Entreolharam-se, confusos. Mas antes que os pudessem tomar por provocadores talassas, Bettencourt salvou a situação:
Nós chegámos ontem à tarde, no São Miguel. Já não tivemos tempo de defender a República!
Outro acontecimento inesquecível dos primeiros tempos da sua vida em Lisboa foi o Comício dos Novos, no Chiado Terrasse, onde os futuristas se apresentaram a arreliar o burguês: Gualdino a presidir e Almada a fazer um discurso geométrico...

Coimbra Menina e Moça...
Em 1922 passou a Coimbra e, quartanista de Direito, instalou-se na República do Funchal que, apesar do nome, não era somente povoada por madeirenses. Um dos seus companheiros que fora padre, ficou-lhe para sempre na memória: chorava quando ouvia tocar A Samaritana...
Pouco tempo volvido, numa noite de serenata na Alta, a sua voz impôs-se. Daí por diante não mais pôde escusar-se a cantar.
A boémia coimbrã, essa, não o seduzia. Por outra: fazia mais boémia literária que boémia pura. E, quanto a “feitorias” de estudante, também não marcou. A mais original terá sido esta: numa noite, por altura do centenário do descobrimento da Madeira, mudou o nome a três vias coimbrãs: a rua, as escadinhas e a travessa de S. Salvador, que passaram a chamar-se do “Funchal”. Por sinal que um merceeiro, ali estabelecido, decidiu solidarizar-se com os senhores doutores. E a mercearia de S. Salvador passou a chamar-se Mercearia Funchal...
Estava já lançado, tanto pela voz como pela figura inconfundível. E, como Alberto de Serpa conta num artigo que lhe dedicou, a estudantada mandava ao diabo as sebentas e vinha, ruas e calçadas foras ouvir a toada do seu canto:

Coimbra, menina e moça,
Rouxinol de Bernardim!
Não há terra como a nossa,
Nem há no mundo outra assim!

Edmundo a cantar e Artur Paredes a acompanhá-lo. Era um delírio! Quem quer que os ouvia, rapazes e moças românticas, burgueses respeitáveis e severos - todos ficavam tomados da magia do canto e da música. De tal maneira que, anos mais tarde, José Régio, no seu Fado, se refere assim ao grande tenorino:

Gritos de cristal e oiro
Que o Bettencourt alto erguia;
Que é da roda que algum dia
Vos sabia acompanhar?

e ao seu inseparável companheiro Paredes:

Ai choro com que o Paredes
Vibrando os dedos em garra
Despedaçava a guitarra
Punha os bordões a estalar!

A Espanha e Lisboa Conquistadas
Um dia, estamos em 1923, o Orfeon Académico abalou para terras de Espanha. Bettencourt e Paredes, este apesar de não ser estudante, mas companheiro imprescindível, lá estavam. Madrid, Valladolid, todas as terras por onde passaram os receberam triunfalmente. Os jornais não falavam de outra coisa. La Voz, de Madrid, publicava, na primeira página, um desenho humorístico que bem traduz o êxito da jornada.
Lisboa cedo se tornara também ponto de convergência para as tournées do Orfeon e da Tuna de Coimbra. E Bettencourt cá veio, uma vez ao Coliseu, na pessoa de...Tomás Alcaide. Foi o caso que, apresentando-se os estudantes na capital, com um programa em que figurava o nome de Bettencourt, este não pôde aparecer. Chegou a sua vez, e o público reclamava-o. A coisa ameaçava transformar-se em verdadeira desordem. E Tomás Alcaide, ainda estudante de Coimbra e longe de pensar ser o grande cantor que foi, teve de fazer de...Bettencourt.
O disco não levara ainda a voz de Bettencourt pelo País, e Lisboa só o conhecia pela fama que de Coimbra começara a alastrar. E assim, Tomás Alcaide obteve o seu primeiro êxito, a que tantos outros se somariam depois!

Cantor e Poeta Modernista
Postos de parte os estudos, já no quinto ano, Bettencourt foi ficando, até 1930, por Coimbra. E tanto como no Fado e na canção genuinamente portuguesa, o seu papel foi decisivo nos novos rumos da Literatura. Sé com a diferença de que, a Literatura não tem a mesma audiência...Poeta, colabora na revista Bizâncio e, depois, na Presença, de que foi um dos fundadores - com José Régio, Branquinho da Fonseca e Gaspar Simões - e a que deu o título. Data do seu último ano de Coimbra o livro de poemas O Momento e a Legenda, que, infelizmente, apesar de Bettencourt não ter abandonado a Poesia, não foi seguido de outros.
O grupo dispersava-se e, como os mais, Bettencourt deixou a cidade da lenda para correr os fados da vida. Eram os componentes desse grupo, além dele, Artur Paredes (hoje empregado bancário em Lisboa), Roseiro Boavida, que tocava e cantava (actualmente capitão de Artilharia), Afonso de Sousa (hoje advogado em Leiria) e Aires de Abreu, já então professor de Matemática nos Liceus, mas que, estando em Coimbra, confraternizava, nas lides do Fado, com aqueles jovens cheios de vida e de sonhos de Arte.

Correndo Mundo!
Tirando a ida a Espanha, em 1923, Edmundo de Bettencourt nunca saiu de Portugal. Mas a sua voz de ouro levou-o a todo o mundo, através do disco, nas suas gravações, feitas após contrato, para a Colúmbia.
Nos anos em que, praticamente, viveu dos seus direitos autorais, Bettencourt pôde saber que a sua voz o transportara para todos os continentes. Nas Américas; na Ásia, através da Rádio Pequim, em Hawaii, a sua voz era uma mensagem de Portugal - a única que tão longe levou Portugal, a única capaz de perdurar.
Só de uma vez, nos anos antes da guerra, Bettencourt recebeu 9 contos de direitos cobrados no estrangeiro. A quanto montariam, na realidade esses direitos, nunca o soube. Foi o que os ingleses lhe deram...Ele nunca teve jeito para o negócio e, lá no fundo, não gostaria, talvez, de se fazer pagar por cantar. Se lhe sobrava talento, faltava-lhe o espírito comercial, que faz a glória efémera de tantos outros!
Muito mais tarde, quando já não cantava, outra canção sua teve um destino que se pode chamar heróico. Intitula-se Liberdade, foi musicada por Lopes Graça e, traduzida ou adaptada a letra, os patriotas de um pequeno país cantavam-na combatendo contra a prepotência estrangeira que queria subverter-lhe a independência.

A outra Face da Vida
A vida de um homem que se tornou célebre não é sempre, ou quase nunca é, um mar de rosas. Em Lisboa, Edmundo de Bettencourt soube, bastas vezes, como a vida é dura. Mas a dureza da vida nunca o levou a tentar de novo ganhá-la cantando. Não que lhe faltasse a voz. Ainda hoje, com cinquenta e sete anos, Bettencourt mantém uma voz de bom timbre. No entanto, não quis. Preferiu o parco pão de modesto funcionário público e, durante anos, manteve-se num apagado lugar de amanuense da Secretaria dos Hospitais Civis de Lisboa. Foi depois funcionário corporativo, na Comissão Reguladora do Comércio de Metais. Mas nunca, também aqui, criou em si uma mentalidade de burocrata. Um dia teve de procurar outra vida, por um imperativo de consciência da própria personalidade. Hoje é delegado de propaganda de um Laboratório de Produtos Farmacêuticos. No fundo, apenas, e para sempre, a bela voz de tenorino que cantava o Fado de Santa Cruz (letra e música de Roma da Fonseca), a Senhora do Almotão, tantas outras maravilhas; no fundo, o Poeta do Movimento Modernista, o homem culto, esquivo à glória, o homem-artista que ama concretamente a vida concreta.
Pode e deve dizer-se: Bettencourt é sempre o mesmo que, acompanhado por Artur Paredes, grande artista que criou um estilo próprio de tocar guitarra, alargando-lhe os recursos e libertando-a da confusão com o bandolim; Bettencourt, dizíamos, é sempre o mesmo que um dia cantou:

Todo o bem que não se alcança
Vive em nós morto de dor.
Só eu não perco a esperança
E se morrer é de amor!

O homem passa, mas o Artista fica. Edmundo de Bettencourt não pode ser esquecido. Como cantor, teve uma importância enorme, indo influenciar a própria música culta, levando-a a ir ao encontro da Terra e do Povo de Portugal. Como poeta, é um renovador. Como homem, sabe passar despercebido, confundindo-se na turbamulta que enche Lisboa ou refugiando-se num canto de café, com um grupo de amigos, conversando e...brincando. Brincando, pudera! Pois não sabiam, amigos leitores, que o Bettencourt, a contar anedotas tem tanto talento como a cantar ou a escrever poemas? (...)

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