domingo, dezembro 04, 2005

VIAGEM PELO CANTO E PELA GUITARRA DE COIMBRA
(Organização, programação e apresentação pelo Grupo Serenata de Coimbra. Tarde de Domingo em Alenquer, estúdio do Pintor João Mário, 6 de Abril de 2003)

Apresentadores: José Anjos de Carvalho, Francisco de Vasconcelos, Fernando Murta Rebelo
Cantores: Alcindo Costa, José Barros Ferreira, Tito Costa Santos, Tomé Medeiros, Victor de Carvalho e como convidados José Anjos de Carvalho e Augusto Camacho Vieira
Violas: João Figueiredo Gomes, Rodrigues Pereira e Manuel da Costa Brás
Guitarras de Coimbra: Alexandre Bateiras e António Serrano Baptista

Abertura, por Francisco de Vasconcelos
Em meados da década de 50, havia em Coimbra um jovem estudante, o Mac Mahon, do qual os desse tempo ainda se lembram: era o porta-estandarte do Orfeon, e principiava sempre as suas apresentações com as palavras: “SENHORAS MINHAS E MEUS SENHORES”. Como não podia deixar de ser, ficou-lhe logo a alcunha de “Senhoras Minhas” e eu, hoje, e aqui, vou parafraseá-lo também, começando por vos englobar a todos nesta saudação de boas-vindas: Senhoras minhas e meus Senhores, muito boa tarde. O Grupo Serenata de Coimbra deseja-vos uma agradável viagem através do Canto e da Guitarra de Coimbra.
Vou ainda contar uma breve história coimbrã, passada no primeiro exame de anatomia que o então estudante Barrigas de Carvalho protagonizou: chegada a sua hora, foi feita a chamada e o Barrigas de Carvalho aproximou-se do Mestre. Pergunta este: “O senhor é que é o Barrigas de Carvalho?” Resposta imediata dele: “Sim senhor, Barrigas por parte da minha Mãe e Carvalho por parte do meu Pai.”
Vem esta história a propósito do seguinte: os textos que acompanham as diversas peças deste percurso coimbrão foram todos escritos pelo nosso companheiro José Anjos de Carvalho que, se fosse apresentado pelo Barrigas, certamente diria que o Anjos de Carvalho é Anjos por parte da Mãe e Carvalho por parte do Pai. Para todos vós, uma agradável sessão.

I – INDICATIVO do grupo (Balada de Coimbra, solo de Guitarra por António Serrano Baptista)
Acabámos de ouvir uma BALADA DE COIMBRA, uma peça composta em Lourenço Marques no ano de 1949, da autoria de Francisco Serrano Baptista. É o indicativo do Grupo Serenata de Coimbra, o seu cartão de visita, o sinal que precede as actuações do Grupo e o identifica. Esta Balada fez enorme sucesso em Lourenço Marques, cantada e tocada na Guitarra por Serrano Baptista, que se fazia acompanhar no violão aço pelo autor da letra, Dr. Luís Paiva. Foi também editada em Portugal pela casa Olímpio Medina, de Coimbra.
Perguntar-se-á, quem foi Francisco Serrano Baptista? O Dr. Serrano Baptista foi um dos mais destacados estudantes da UC da Década de Oiro da Academia, a década de 1920: cantor, compositor, guitarrista, violonista, orfeonista e tuno com boa formação musical. Nasceu em Mação no ano de 1910, fixou-se em Coimbra aos nove anos, cidade onde fez sucessivamente o Liceu e o curso de Direito (1932). Radicou-se em Lourenço Marques, Moçambique, no ano de 1944, onde trabalhou como Director Comercial dos Caminhos de Ferro. Faleceu em 1954. É autor de algumas composições emblemáticas para canto e solos de guitarra. Foi em sua homenagem que o Grupo Serenata de Coimbra adoptou este indicativo.

II – Da 2ª metade do século XIX até ao início de 1920
FADO DAS TRÊS HORAS, interpretação vocal de José Anjos de Carvalho
A nossa viagem tem seu início na 2ª metade do século XIX. Vamos primeiramente ouvir o que, em termos musicais é, e tipicamente se chama, uma “serenata”. O tema foi improvisado de madrugada, a desoras, numa noite de paródia, em 1887 (época estival), no rio Vizela, vogando de barco os seus autores. Embora com o título Canção da Noite, esta serenata é vulgarmente mais conhecida por Fado das Três Horas, nome com que os seus autores primeiro a baptizaram, por ser àquela hora da noite que tal improvisação aconteceu.
A música é de Reynaldo Varella, de seu nome completo Reynaldo Augusto Álvares Pereira Leite da Silva Pinto Varella, natural de Ponte de Lima, onde nasceu em 1867, descendente dos morgados de Tabuaço, excelente cantor, compositor, professor de música e um grande guitarrista, tanto que foi apelidado de “o Liszt da Guitarra”.
A letra original, naquela altura também improvisada, é de Bráulio Caldas, de seu nome completo Bráulio Lauro Pereira da Silva Caldas, distinto poeta, natural de Vizela, então quartanista de Direito da UC.
Esta serenata, de tipo estrófico, constituiu um sucesso espantoso naquela época, sucesso que perdurou por décadas, de tal forma que foi logo gravada na sua versão original, precisamente no ano em que foram feitas as primeiras gravações portuguesas, isto é, no ano de 1904. Posteriormente, foi adaptada a esta serenata uma outra letra, duas quadras de Guerra Junqueiro, extraídas do livro “A Morte de D. João”, e, acompanhando os gostos da época e por influência do chamado “estilo Manassés de Lacerda”, foram-lhe introduzidos alguns “ais”, cuja duração se podia prolongar ad libitum, isto é, à vontade do intérprete.
Este Manassés de Lacerda, de que falaremos mais adiante, foi antigo escolar do Liceu de Coimbra no início do século XX. Como cantor, foi o criador de um estilo muito próprio, estilo esse caracterizado por prolongar de forma sustentada e muito expressiva as notas mais agudas através dos referidos “ais” de duração ad libitum. É esta versão do Fado das Três Horas, no chamado estilo Manassés de Lacerda, que vamos ouvir.

FADO HYLARIO MODERNO, interpretação vocal de José Maria Barros Ferreira. Palavras de contextualização por Fernando Murta Rebelo
O chamado Fado Hilário, tal como se canta, nunca o Hilário o cantou, ou o ouviu cantar, nem consta no Cancioneiro de César das Neves, publicado na última década do século XIX.
O Fado Hilário que presentemente se canta e iremos escutar, compreende três partes musicais:
A 1ª parte é constituída exclusivamente pelo Fado Serenata do Hilário, composição de Augusto Hilário que veio a lume em 1894;
A 2ª e 3ª partes são constituídas integralmente pela música do chamado O Último Fado, do Hilário, composto e oferecido por ele a César das Neves, no verão de 1895, com o pedido que reservasse para mais tarde a sua publicação no Cancioneiro, quando ele, Hilário, o tivesse já composto definitivamente.
Meses depois, nas férias da Páscoa de 1896, Hilário morre sem ter concluído a pretensa versão definitiva e César das Neves acaba por vir a publicar, no dito cancioneiro, a versão original que Hilário lhe entregara meses antes.
Ao certo, ao certo, não se sabe quem teria tido a ideia de reunir estes dois fados do Hilário (o Fado Serenata e O Último Fado) num só fado, e bem assim a forma feliz como a junção foi feita, mas é voz corrente que tal junção se deve ao já referido Manassés de Lacerda, inspirado compositor e um dos melhores e mais célebres cantores de Coimbra de todos os tempos, excelente tenor, dotado de bela voz, extensa, potente e bem timbrada, que na primeira década do século XX criou um estilo de cantar muito sui generis, o chamado “estilo Manasses” (ou Manassés de Lacerda), caracterizado, como já se disse, por prolongar de forma sustentada e muito expressiva as notas mais agudas através de “ais” de apreciável duração.
Nessa junção dos dois citados fados do Hilário e por influência do chamado “estilo Manasses”, foram introduzidos os “ais” de duração ad libitum, tal como aconteceu com o Fado das Três Horas, e modificados o compasso e os tons originais.
Este novo fado, designado inicialmente por Fado Hilário Moderno, agora com duas partes musicais, foi cantado e gravado pelo próprio Manassés de Lacerda, no seu estilo muito próprio de cantar, em meados da 1ª década de 1900, fado cuja respectiva partitura foi editada na 2ª Série de “Fados e Canções Portuguesas cantadas por Manassés de Lacerda para cilindros e discos de máquinas falantes”. Na partitura do chamado Fado Hilário Moderno, inserto, como se disse, na 2ª série de Fados e Canções Manassés já os referidos “ais” se encontram introduzidos e integrados na respectiva notação musical.

FADO MANASSÉS (=FADO MARIA), interpretação vocal de Víctor de Carvalho
O chamado Fado Manassés é um fado da 1ª década do século XX. Manassés de Lacerda, de seu nome completo Manassés Ferreira de Lacerda Botelho, era natural de Sabrosa, Trás-os-Montes, onde nasceu em 1885. Foi antigo escolar de Coimbra no início do século 20, mas não chegou a entrar na UC.
Inspirado compositor e inegável cantor de eleição, deixa Coimbra e vai para o Porto em 1905, onde, logo nesse mesmo ano de 1905, grava numerosíssimos fados. É de referir e salientar que o ano de 1905 é o 2º ano em que foram feitas em Portugal as gravações dos primeiros discos.
Manassés da Lacerda casa em 1908 em Miragaia e, a seguir, emigra com sua mulher Margarida para o Brasil, onde se fixa e vem a morrer em 1962.
Na sua versão original, este fado tem por título "Fado Maria", sendo um dos muitos fados gravados por Manassés de Lacerda entre 1905 e 1906-07.
Além das referidas gravações de discos, foram também publicadas, entre 1905 e 1907, três séries de edições musicais sob o título de «Fados e Canções Portuguesas cantadas por Manassés de Lacerda para cilindros e discos de máquinas falantes», contendo, cada uma dessas 3 séries musicais, a letra e a notação musical de 10 composições, num total de 30, portanto. A editora dessas três séries de partituras foi a casa Arthur Barbedo, que tinha sede na Rua Mousinho da Silveira, 310-1º, Porto, e cada série de 10 composições custava 600 réis. Além da edição Barbedo, saíram duas outras importantes edições do repertório Manasses: em 1914, a edição portuense da casa Moreira de Sá; em 1916, a edição portuense e brasileira de promoção ao vinho do Porto Constantino Quinado. Como se pode ver, Manassés foi o primeiro cantor de Coimbra a alcançar promoção comercial internacional através de partituras impressas e de discos de 78 rpm, sendo de lamentar que as partituras impressas nunca mencionem autorias de músicas e de letras.
A serenata que vamos ouvir vem inserida na 1ª Série dos referidos Fados e Canções Manassés, sob o título Fado Maria, precisamente por ter sido dedicada por Manassés a uma jovem Maria. O seu nome, porém, viria a generalizar-se com uma outra letra, sob o título Fado Manassés.
É um fado que exige do aparelho fonador excelentes atributos vocais e uma voz muito moldável, tal como acontece com o Fado Hilário que ouvimos há pouco, cantado com “roupagens” ao estilo Manassés de Lacerda. Está em compasso 4/4, à semelhança de quase todo o repertório Manassés. A letra escolhida, não é a original, correspondendo à matriz fixada em disco por António Menano no final da década de 1920.

VALSA DE OUTROS TEMPOS, solo de Guitarra por António Serrano Baptista. Palavras de apresentação por Francisco Vasconcelos
A VALSA DE OUTROS TEMPOS compreende duas partes musicais. A 1ª parte desta valsa é da autoria de Gonçalo Paredes, pai de Artur Paredes, valsa que foi completada por seu filho Artur Paredes quando em 1923 pretendeu homenagear a sua noiva e futura esposa. Convirá referir aqui que a forma de dedilhar a Guitarra de Coimbra foi evoluíndo ao longo dos tempos e que o próprio instrumento sofreu sucessivas transformações na morfologia da sua construção.
Antigamente, as guitarras eram mais pequenas e a sua sonoridade bem menor. Uma outra inovação foi o acompanhamento dos solos de guitarra passar também a ser feito com uma 2ª guitarra, o que constituiu outra acentuada melhoria. Esta evolução nos sons das guitarras, convirá aqui referir, deve-se em grande parte ao genial guitarrista que foi Artur Paredes. Vamos pois ouvir a Valsa de Outros Tempos, não propriamente como antigamente se tocava, mas como presentemente se interpreta a partir da versão de Carlos Paredes.

SAMARITANA, vocalização de José Anjos de Carvalho, palavras de apresentação por Fernando Murta Rebelo
Este fado-canção começou a generalizar-se nos primeiros anos da implantação da República Portuguesa e o seu autor, quer da música, quer da letra, foi e é Álvaro Cabral (contudo, na discografia de cantores de Coimbra, em vez de Álvaro Cabral vem erradamente o nome de Álvaro Leal como autor. Deve ter surgido, mais coisa menos coisa, entre 1914 e 1916. A confusão autoral é, digamos, um erro que já se tornou sistemático – este Álvaro Leal é um compositor e escritor teatral, natural do Funchal, antigo aluno do Colégio Militar, falecido em Lisboa com apenas 38 anos, em 1931).
Álvaro Cabral, o autor da Samaritana, nasceu em Vila Nova de Gaia em 1865, pelo que é apenas um ano mais novo do que Augusto Hilário. Estreou-se como actor no teatro da Rua dos Condes, em Lisboa, em 1890. Desempenhou primeiros papéis em diversas revistas e operetas e foi também autor de algumas revistas, nomeadamente em colaboração com João Bastos ou com Penha Coutinho.
Além de compositor e letrista, Álvaro Cabral era um boémio muito espirituoso e um bom e grande conversador. Morreu em 1918, no Porto. Tinha 53 anos e era primeiro actor e director de cena da companhia que trabalhava no Teatro Nacional de São João.
Este fado-canção não foi, nem é propriamente, um Fado de Coimbra. Mas também não é um fado de Lisboa com melodia padronizada, facto que ajudará a explicar grande parte do sucesso que veio a conquistar em Coimbra. Acontece que, a partir de 1928, ano em que foi gravado por Edmundo Bettencourt, a Academia de Coimbra apropriou-se dele e muitos cantores de Coimbra o têm cantado e gravado, tendo-se tornado num dos Fados de Coimbra mais emblemáticos. A versão que vamos apresentar é a herdada de Edmundo Bettencourt, importando referir que foi conhecida uma outra na voz de António Menano, a qual não conquistou palmarés. Relativamente aos meios fadísticos lisboetas, este fado-canção caíu no esquecimento. Foi no entanto gravado no estilo Lisboa pelo fadista Nuno da Câmara Pereira, pelos idos de 1986, num registo que gerou enorme polémica em Coimbra.

FADO SEPÚLVEDA, vocalização de Victor de Carvalho
A música deste fado é de Júlio César Afonso Sepúlveda que, em finais do século XX, princípios do século XX, era despachante na Alfândega de Lisboa.
Afonso Sepúlveda era mais conhecido entre os amigos da boémia lisboeta pela abreviatura VEDA, isto é, pelas duas últimas sílabas do seu nome (Sepúl+VEDA).
É um Fado de Lisboa, do fim do século XIX. Compreende duas partes musicais e foi gravado inicialmente, na sua forma original, pelo actor e tenor António de Almeida Cruz, ainda nos tempos da Monarquia Portuguesa. A partitura deste fado, feita na Alemanha, foi editada no início do século XX pela casa Raul Venâncio, sita então na Rua do Ouro, n.º 63, em Lisboa. Deste fado de Lisboa, foi apenas aproveitada a 1ª parte musical para a sua adaptação, com uma outra letra, a Fado de Coimbra, tendo sido gravado em 1927 por Lucas Junot, um estudante brasileiro que cursou na UC e que foi um dos mais famosos cantores do seu tempo.

III – Década de Oiro, palavras e contextualização por José Anjos de Carvalho
Estamos agora a chegar à década de 1920, a chamada DÉCADA DE OIRO DA ACADEMIA DA COIMBRA. Entenda-se que estamos a falar de “Década de Oiro” apenas no âmbito do foro musical coimbrão, pois outros géneros musicais como o Tango também individualizam artisticamente uma “Idade de Ouro” (1920-1935).

CANÇÃO DAS LÁGRIMAS, vocalização de Alcindo Costa
O seu autor foi o estudante Armando Goes (1906-1967), que frequentou a UC entre 1924 e 1930, ano em que se licenciou em Medicina.
Armando Goes foi um fino compositor e um dos mais notáveis cantores da chamada “geração de oiro”. Dotado de uma voz portentosa, doce e maleável, cantava, com um tão inexcedível sentimento, que a todos encantava e embevecia, tendo gravado, entre os anos de 1927 e 1930, uns oito discos de duas faces para a His Master’s Voice, enquanto era estudante.

VARIAÇÕES EM RÉ MENOR Nº 1, solo de Guitarra por Alexandre Bateiras, palavras de Francisco de Vasconcelos
As variações que se seguem são do mais genial guitarrista de Coimbra. Tal como aconteceu com o cantor Manassés de Lacerda, outro tanto aconteceu com o guitarrista Artur Paredes. Aquele criou um estilo muito próprio de cantar e este criou um estilo muito próprio de tocar guitarra e de fazer o acompanhamento dos cantores.
Natural de Coimbra, Artur Paredes nasceu em 1899, filho de Gonçalo Paredes, um dos maiores guitarrista de Coimbra do seu tempo. Artur Paredes, tal como Manassés de Lacerda, também nunca frequentou a UC mas conviveu intimamente com o meio estudantil.
Artur Paredes viveu em Coimbra até 1934, altura em que, sendo funcionário do Banco Nacional Ultramarino, pediu e obteve transferência para Lisboa, cidade onde fixou residência e viria a falecer em 20 de Dezembro de 1980.
Artur Paredes foi o grande fenómeno da Guitarra de Coimbra, apartando-a e individualizando-a completamente dos modelos mais comuns em voga em Lisboa e no Porto.
Foi Artur Paredes quem, em estreita colaboração, numa primeira fase com o guitarreiro Joaquim Grácio, e numa segunda fase com o notável guitarreiro João Pedro Grácio Junior, introduziu várias transformações na morfologia da construção da Guitarra Toeira de Coimbra: alargou e abaulou a escala, reformou a voluta, elevou o nível da pontuação e aumentou a altura das ilhargas, introduziu o vigamento da caixa com três barras, ampliando a caixa de ressonância na procura da obtenção de uma maior pureza de notas, quer isoladas, quer em acordes.
Artur Paredes revolucionou também a dedilhação, servindo-se de um novo sistema de afinação e criando uma nova forma de digitação, em contraponto com a tradicional forma lisboeta da “verticalidade linear”, e distanciando-se dos toques singelos usados pelos tocadores de folclore da Beira Litoral. À “verticalidade linear” contrapôs a “movimentação digital no sentido da lateralidade”, captando efeitos polifónicos, proclamando a supremacia do acorde com o emprego simultâneo de todos os dedos, técnica que, por sua vez, veio facilitar o uso de dissonâncias.
A Artur Paredes se deve também a inovação do emprego de uma 2ª Guitarra de Coimbra no acompanhamento do solista. De Artur Paredes se diz que reinventou e renovou a Guitarra de Coimbra e que, no foro musical coimbrão, o seu contributo foi de tal ordem que há um “Fado de Coimbra” antes de Artur Paredes e, um outro, depois dele.
Esta "variação" é um clássico de inícios da década de 1920, ainda hoje muito tocada em espectáculos e ensaiada para efeitos de gravação em estúdio. O tom de Ré era muito querido pelos tocadores de Coimbra já em oitocentos, permitindo aproximações ao Fado (e neste caso, temos mesmo no trecho final um galope sobre o "Fado de Mario Gayo" em corrido menor). Mas na época a que nos referimos, e até às gravações do compositor/autor em 1927, Artur Paredes idealizara já uma média de 4 a 5 peças distintas por forma a explorar em maior e menor as cordas da Guitarra de Coimbra na nova afinação que estava a ser implementada e testada.

CANÇÃO DO ALENTEJO, vocalização de Tito Costa Santos, palavras de Fernando Murta Rebelo.
Trata-se de uma canção de raiz acentuadamente folclórica, de que a Academia de Coimbra se apropriou através da voz privilegiada de Edmundo Bettencourt, que a gravou em 1928, com Artur Paredes na orquestração e no acompanhamento. Nela também se notam alguns ais de duração variável, sustentada à vontade do gosto do cantor, os ditos ais ao estilo Manassés. A versão apresentada é a de Edmundo Bettencourt, sendo conhecida mas não praticada a de António Menano.

VARIAÇÕES EM RÉ MENOR, solo de Guitarra por Alexandre Bateiras
Flávio Rodrigues nasceu em Coimbra em 1902 e morreu em 1950, com apenas 48 anos de idade. Homem do povo de Coimbra, barbeiro de profissão e grande virtuoso da guitarra, é outro dos grandes vultos do foro musical coimbrão, mestre de guitarra de várias gerações de estudantes nas décadas de 30 e de 40. Gravou alguns discos de guitarradas em 1927, participou na 1ª se´rie de registos de António Menano em Paris, e é autor de diversas peças e variações, entre as quais as Variações em Ré Menor que vamos ouvir.

MENINA E MOÇA, vocalização de José Maria Barros Ferreira, palavras por José Anjos de Carvalho
A música original de Menina e Moça é a do Fado da Récita de Despedida do V Ano Médico de 1919-1920. Este fado Menina e Moça, usando a habitual terminologia aplicada aos “Fados de Récitas”, deveria antes designar-se por “Fado do V Ano Médico de 1920”. O fado primitivo é, portanto, o Fado da Récita de 1920. O seu autor foi Fausto de Almeida Frazão, então quintanista de Medicina, e foi precisamente ele, Fausto Frazão, quem, na dita récita, cantou o referido fado.
Fausto Frazão foi, sem dúvida alguma, um dos grandes cantores daquela época, com actuações públicas em Coimbra, Lisboa e Paris. Infelizmente não chegou a gravar disco algum, pois, tempos depois de formado, foi para Angola como médico e por lá ficou. Foi Deputado à Assembleia Nacional, por Angola, e Presidente da Câmara de Benguela, cidade onde viria a falecer em 1946.
Menina e Moça é um dos mais emblemáticos Fados de Coimbra, pelo que tem sido cantado e gravado por numerosos cantores ao longo de sucessivas gerações.
Na discografia aparecem frequentemente erradas as autorias, quer da música, quer da letra, e o título vem muitas vezes substituído pelo seu 1º verso, ou seja o incipit. Além disso o nome de Edmundo Bettencourt figura por vezes como co-autor, o que também está errado, pois ele nada tem a ver com a autoria, quer da música, quer da letra. O fado é de 1920 e Edmundo Bettencourt só foi para Coimbra em fins de 1922.
A letra do Fado da Récita de 1920 é de Américo Cortez Pinto, que também era quintanista de Medicina, letra que compreende 4 quadras e cuja 1ª quadra é também, simultaneamente, a 1ª quadra do fado Menina e Moça. Porém, a 2ª quadra do fado Menina e Moça, não é do Fado da Récita, nem é de Américo Cortez Pinto, é uma quadra popular.
O fado Menina e Moça foi gravado pela primeira vez no Porto, em 1928, por Edmundo Bettencourt, acompanhado à guitarra por Artur Paredes e Albano de Noronha e, à viola por Mário Faria da Fonseca. António Menano também gravou este fado em Dezembro de 1928, com o mesmo título e música, mas adaptou-lhe uma outra letra que não ganhou muitos aderentes.

ALEGRIA DOS CÉUS, canta Victor de Carvalho
ALEGRIA DOS CÉUS é também um fado da Década de Oiro, os anos 20. Foi gravado em 1929 por Edmundo Bettencourt. O autor da letra é José Campos de Figueiredo, antigo estudante de Coimbra daquela década e, o autor da música, é Mário Faria da Fonseca, o violonista que, tal como Artur Paredes, sempre acompanhou Edmundo Bettencourt em todas as suas gravações.

FIM DA 1ª PARTE
INTERVALO

SEGUNDA PARTE
IV – ANOS 40 e 50, palavras por Francisco de Vasconcelos
Senhoras minhas e meus Senhores: antes de continuarmos a nossa viagem musical coimbrã, queremos informar os senhores passageiros deste mágico autocarro que acabamos de chegar aos anos 40 e 50 do século XX.

FEITICEIRA, canta Alcindo Costa
A FEITICEIRA é uma serenata ligeira dos anos 40, música e letra de Ângelo Araújo. O seu primeiro divulgador foi o famoso Manuel Simões Julião, que após transito pelo Liceu de Coimbra, foi caloiro de Direito no final da década de 1930, tendo frequentado Histórico Filosóficas de 1940 a 1945. Este solista do naipe dos 1ºs tenores do Orfeon Académico nasceu na Pampilhosa, Mealhada, em 1915. Trabalhou longos anos como funcionário administrativo, primeiro na Câmara Municipal de Aveiro, e mais duradouramente na Secretaria da Câmara Municipal de Mortágua. Faleceu em 1982.
Aquando da preparação do filme “Capas Negras”, de Armando Miranda, esta serenata era muito conhecida em Coimbra e estava na moda. Foi por isso que o dito fado acabou por ser aproveitado e escolhido para fazer parte desse mesmo filme. A Alberto Ribeiro coube no filme o papel principal, de estudante e cantor, e foi ele, sem dúvida, o grande divulgador deste fado por todo o país e Brasil, o que constituiu um grandioso sucesso, quer pessoal, quer do próprio fado. Apesar do enorme sucesso de bilheteira, o filme levantou enorme reacção na Academia de Coimbra. A primeira gravação conhecida desta serenata foi feita no Brasil, em disco de 78 rpm, pelo próprio Alberto Ribeiro.

VARIAÇÕES EM LÁ MENOR, solo de Guitarra por António Serrano Baptista
João Bagão, nasceu na Figueira da Foz, completou o curso dos liceus em Coimbra e frequentou a Faculdade de Ciências durante três anos.
Em 1948 abandonou Coimbra e os estudos e fixou residência em Lisboa, tendo trabalhado como agente de propaganda médica (Figueira da Foz, 14/07/1921; Lisboa, 09/12/1992).
Amante de música, tocou bandolim, viola, piano e guitarra. Definitivamente atraído para guitarra, tornou-se num dos melhores guitarrista de Coimbra do seu tempo.
João Bagão sofreu notória influência do estilo revolucionário e inovador de Artur Paredes, tocava com invulgar virtuosismo e foi, em certa medida, um renovador, quer a compor, quer a fazer os acompanhamentos.
Esta composição, de meados da década de 40, foi popularíssima em Coimbra e nos repertório de grupos activos no Porto, sendo vulgramente conhecida por "Lá Menor das Feiras".

ADEUS A COIMBRA, canta Augusto Camacho Vieira, palavras de Fernando Murta Rebelo
A música e a letra são de Edmundo Bettencourt. O fado foi gravado pela primeira vez em 1957 por Augusto Camacho, acompanhado à guitarra por Carlos Paredes e, à viola, por António Leão Ferreira Alves, disco que viria a ser editado no ano seguinte, em 1958. Dois anos depois, em 1960, este mesmo fado voltaria a ser gravado pela voz de Paradela de Oliveira, acompanhado à guitarra por João Bagão e José Amaral e, á viola, por Arménio Silva.

AGUARELA PORTUGUESA, solo de Guitarra por António Serrano Baptista, palavras de Francisco de Vasconcelos
A guitarrada AGUARELA PORTUGUESA é da autoria de António Portugal, guitarrista de nomeada, a quem a CC muito deve. António Portugal teve como mestres de guitarra dois barbeiros de profissão, os irmãos Rodrigues da Silva, o Flávio, «o barbeiro da Velha Alta» e o Fernando, «o barbeiro da Académica». Estes dois grandes mestres, o Flávio e o Fernando, eram filhos de António Rodrigues da Silva, também ele um notável guitarrista no seu tempo. António Portugal participou logo em 1952 nas primeiras gravações que houve de Fados e Guitarradas de Coimbra depois de 1930. Era então um jovem estudante de 21 anos, trabalhando como 2º guitarra de António Brojo.
Em 1956-57 é 1º guitarra do célebre grupo Coimbra Quintet, que grava os primeiros discos de vinil, e nunca mais pára até que a morte o levou em 1994, tinha ele 63 anos. Praticamente, António Portugal dedicou toda a sua vida de adulto à música e CC.
Aproveito para pedir a vossa especial atenção para o facto de, não sendo esta uma das mais ricas guitarradas de Coimbra, é das poucas que permite um diálogo permanente entre as duas guitarras, numa conjugação musical difícil de encontrar.

RUA LARGA, canta Tomé de Medeiros, palavras por José Anjos de Carvalho
O fado RUA LARGA foi composto por Carlos Figueiredo em 1958, em Angola, destinado propositadamente para ser cantado nas comemorações da Tomada da Bastilha que tiveram lugar em Novembro desse mesmo ano de 1958. O fado veio depois a ser gravado por Luiz Goes em 1967, com João Bagão e Aires de Aguilar nas guitarras e António Toscano e Fernando Neto Mateus da Silva nas violas. A letra evoca uma antiga rua da Alta de Coimbra, que ia do Arco do Castelo, junto aos velhos Hospitais da UC, até à Porta Férrea da UC.

V – ANOS 60 E CANTARES DE INTERVENÇÃO, palavras por Francisco de Vasconcelos
Vamos continuar a nossa viagem musical atravessando agora os anos 60 e os Cantares de Intervenção.

CANTIGA PARA OS QUE PARTEM, vocalização de Tito Costa Santos, na versão gravada por Adriano
Começamos pela CANTIGA PARA OS QUE PARTEM. A letra é de Rosalía de Castro, que foi inspirada poetiza galega do século XIX. A música foi composta por José Niza para uma peça de teatro ensaiada em 1969, e logo perseguida pela censura. Foi gravada por Adriano Correia de Oliveira sob o título CANTAR DE EMIGRAÇÃO e, por António Bernardino, sob o título CANTIGA PARA OS QUE PARTEM.
As letras são ligeiramente diferentes, são duas variantes literárias sobre o mesmo tema, devendo considerar-se versão correcta a gravada por Adriano Correia de Oliveira.

FLORES PARA COIMBRA, vocalização de Augusto Camacho Vieira
A letra é de Manuel Alegre, a música é de Joaquim Fernandes e o arranjo musical é de Francisco Martins. Foi António Bernardino, o nosso saudoso Berna, quem primeiro gravou esta canção, cujo disco constitui um gritante testemunho sonoro da grande Crise Académica de 1969, precisamente o ano em que o disco foi editado. Joaquim Fernandes da Conceição, natural da Freguesia de Cedofeita, Porto, era companheiro de António Bernardino no Quartel Militar de Santa Clara de Coimbra, na Secção de Transportes Rodoviários, quando Berna lhe pediu que pusesse em música o poema de Manuel Alegre para um disco que pretendia ensaiar e gravar no segundo semestre desse ano de 1969. Fernandes entrou em Santa Clara no mês de Março de 69, tendo idealizado a composição por Junho desse ano, na sua casa de família no Porto. Tocou a melodia ao piano e fez um trauteio, que depois de passados a cassete foram entregues em mão a António Bernardino. É uma linda canção em compasso 4/4, e modo maior, com duas partes musicais, que Fernandes ajudou a ensaiar na casa de António Portugal. Terminado o serviço militar, Joaquim Fernandes regressou ao Porto, tendo trabalhado como jornalista no "Jornal de Notícias", e após Licenciatura em História na FLUP (1989), e mestrado (1996), passou a trabalhar como docente na Universidade Fernando Pessoa. O arranjo de guitarra proposto por Francisco Martins é de belo efeito, nem sempre lhe sendo dado o devido valor, uma vez que a autoria este trabalho costuma ser erradamente confundida com o nome de António Portugal.

MELODIA Nº 2, solo de Guitarra por Alexandre Bateiras
Carlos Paredes nasceu em Coimbra em 1925. É filho de Artur Paredes, neto de Gonçalo Paredes e sobrinho-neto de Manuel Rodrigues Paredes, pelo que provém de uma família de destacados guitarristas de Coimbra (m., Lisboa, 2004).
Quem não conhece Carlos Paredes? Compositor e intérprete de alto gabarito e grande inovador, a ele principalmente se deve a universalização da Guitarra de tipo conimbricense como instrumento musical. Esta composição aparece gravada pela primeira vez em 1967, no Lp “Guitarra Portuguesa”, com participação de Fernando Alvim na viola de acompanhamento.

TROVA DO VENTO QUE PASSA, canta Tomé de Medeiros
A música é de António Portugal e de Adriano Correia de Oliveira, a letra é de Manuel Alegre. Peça estrófica, passível de ser entoada em coro, foi gravada por Adriano Correia de Oliveira em 1963, após a Crise Académica de 1962 e depois por António Bernardino durante a Crise Académica de 1969, no Lp “Flores para Coimbra”. A autoria a música costuma figurar sempre com o nome de António Portugal, embora se saiba de fonte segura nos meios conimbricenses que foi Adriano quem compôs os rudimentos da melodia, a qual foi completada e aperfeiçoada por Portugal.

VI – ANOS 80 E SEGUINTES, palavras por Fernando Murta Rebelo
A nossa viagem entra agora pelos anos 80

MEMÓRIA, canta José Maria Barros Ferreira
Musicada por José Maria Barros Ferreira, que é também seu intérprete, esta canção tem letra de Francisco de Vasconcelos, que com ela quis homenagear a memória do Alferes Linhares de Almeida, morto em combate na Guiné em 1966. Composta por estes dois elementos do Grupo Serenata de Coimbra, aqui fica esta “memória”. Trata-se de uma composição inédita que oportunamente poderá vir a ser gravada.

ENCERRAMENTO
Caríssimos Amigos: chegámos ao fim da nossa viagem. De todos nos despedimos com a “Balada de Despedida do 5º Ano Jurídico de 1906-1907”. A música é do maestro Rebelo Neves e, a letra, é de Cândido Guerreiro, quintanista de Direito no ano de 1906-1907.
Esta Balada de Despedida foi recuperada pelo Grupo Serenata de Coimbra, que fez o arranjo que lhe deu a actual “roupagem”. De realçar a sensibilidade poética e a inspirada melodia que facilmente entra no ouvido e que, sendo cantada sempre no mesmo tom, permite apreciar o timbre das vozes dos diferentes solistas.
Convidamos o auditório a cantar o “Refrão”.
Como foi dito logo no início pelo nosso companheiro Tito Costa Santos, nas guitarras de Coimbra estiveram, Alexandre Bateiras e António Serrano Baptista e, nas violas, João Figueiredo Gomes, José Rodrigues Pereira e Manuel da Costa Braz, que, a finalizar, nos vão deliciar com a célebre Balada de Coimbra, de José Eliseu, na versão instrumental concebida por Artur Paredes.
Esperamos que a viagem romântica e sentimental que vos propusemos pelo Canto e Guitarra da cidade encantada de Coimbra, tenha sido do vosso agrado.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Da nossa parte, foi um prazer estar convosco.

Nota: texto proveniente do arquivo particular do Coronel José Anjos de Carvalho, prestimoso colaborador do Blog “guitarradecoimbra”, cuja formatação e grafismo foram adaptados para efeitos de edição on line. De salientar que se trata da única proposta de alinhamento temático-cronológico alternativa ao projecto “Tempos de Coimbra”, divulgado em 1983 na RTP pela formação de António Brojo/António Portugal (não consideraremos ao mesmo nível o percurso proposto por José Manuel Beato e Patrik Mendes no DVD "História do Fado de Coimbra", editado pelo Diário de Coimbra em 2004, esgotado, reeditado em Dezembro de 2005 e de novo esgotado). Há alguns períodos artisticamente omissos, como as décadas de 1930 e a de 1970, merecedoras de maior individualização e diversificação. Em todo o caso, ressalvem-se o especial valor didáctico conferido aos textos, o tom coloquial do encontro, a substancia bem documentada da informação veiculada ao público, e o terrível esforço que é condensar em escassos minutos mais de 100 anos de composições musicais. Esta memória vinha acompanhada da rigorosa transcrição integral de todas as letras cantadas no espectáculo, as quais foram omitidas por necessidade de economia do texto (António M. Nunes).

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