LUIZ GOES, Trovador do Tempo Novo.
José Henrique Dias[1]
Trago-vos um breve pré-texto. Pretexto para a resignificação de alguns sintagmas que fixam a música coimbrã. Vínculo subtil em que a cidade não é um lugar mas um estilo de vida. LUIZ GOES. A criatividade desvincula-se do passado morto, reinventa sonoridades e senta no regaço poesia de poetas.
Tudo começou em transgressão. A década de cinquenta do século passado mal espreguiçava os olhos e adolescíamos na esperança de um mundo novo. Foi em festa de finalistas no Liceu D. João III. O António Portugal aproveitava as lições do Flávio Rodrigues e já se atrevia ao Fado em Dó, o Manuel Mora ajeitava na guitarra aplicado diletantismo, o Costa Braz distribuía na viola acordes de rigor e austeridade, havia ainda a viola do António Serrão. Estava eu, que já passara por uma serenata na Sé Velha, e o Luiz Goes, que pela primeira vez em público arriscava o canto. Era o tempo de muitas proscrições. Esfrangalhara-se o coração da velha Alta e moviam-se na sombra ferezas censórias e perseguições ao livre pensamento. A mesquinhez praxística e freudianas incapacidades lançaram anátema sobre a Feiticeira do Ângelo Araújo, que Alberto Ribeiro cantara no Capas Negras, de Armando Miranda.
Tamanha era a tacanhez —não há universidade que nos tire da Idade da Pedra Lascada, como diz Torga —, tanta a ignara primitividade de uns tantos, que confundiam personagem com intérprete, que certa noite correram em arruído à Casa da Ponte, onde constara estar a jantar Alberto Ribeiro. Veredicto: ser rapado… porque no filme trajara capa e batina. Gorara-se a sentença praxista, porque avisado, o cantor partiu para Lisboa, mas ficara a mácula.
Certo é que ninguém mais se atrevera a cantar aquele fado do Ângelo a partir da obscurantista década de quarenta, obscurantismo a que resistiam alguns nas veredas do MUD e nas “pichagens” clandestinas do não se paga, a coberto da noite e do vesgo olhar da PVIDE, que assim foi crismada a sinistra polícia política PVDE, onde se inscrevia claramente o V da persecutória vigilância.
Naquela noite de que vinha falando, creio, em 1951, a fechar a festa liceal, o jovem Goes, revelando, para além da coragem, marcante personalidade, cantou a Feiticeira num timbre novo e bem definida maneira outra de interpretar.
Nascia ali o Trovador do Tempo Novo, que bebera com o povo de Coimbra diferente maneira de ser solidário, inovador aurático como aurática se havia de revelar a sua poesia e a sua música. Como escrevi há tempos para a edição integral da EMI, porque nascemos ambos em Coimbra, “passou cedo em nós a asa mansa da sua música, mas a ele tocara-o a sagração dos deuses e uma forma rara de transmitir o sentido. Primeiro revelara-se o grande intérprete, logo logo o compositor, também o poeta. Cedo aquele que transgride pela via do intimismo em “Coimbra de Ontem e de Hoje”.
O Ontem de alguns fados mudara o rosto na singularidade da sua voz, perdera a doença de alma e resignificava-se em pujantes interpretações. Que outro não é o seu Fado Hilário, reconduzido a uma dramaticidade que transforma a doença finissecular oitocentista em modelações que recusam tossicantes apelos à compaixão feminina, mas antes robusta efabulação de morte viril na matriz coimbrã, sem concessões… Quanta novidade presente nas suas primeiras gravações… O que ouvíramos, ouve-se então de uma maneira assumidamente renovadora. Muda-se a estrutura poética, quebra-se o cânone das duas quadras ou revigora-se em novas tonalidades, bate-se à porta de outras rimas, outros ritmos, a simplicidade é então uma geometria de rigor e exactidão interpretativa.
O Hoje, sim, era marcada ruptura com o tom lamechas de décadas de noites enluaradas e saudades-ais, renascimento retomado sobretudo da lição de Bettencourt, colhidos na voz do povo cantares que se urbanizam sem trair origens, como se regista na Toada Beirã. Na beira do rio Amélia contemplada em frio e medo, chamada com indizível ternura à companhia do trovador em partilha de solidão, ou Serra D’Arga de adeus a um amor nascente, também Penedo da Saudade de segredados enredos.
Tudo tonificado com uma sensibilidade que suporta o ritmo com divisões exactas e palavras rigorosamente marcadas, canto de timbre abaritonado de rara extensão.
O António Toscano já há muito pôs a claro os significantes e os significados, afirmando que ele, Luiz Goes, foi o protagonista de “ interpretações (…) enriquecidas por surpreendentes e inigualáveis modelações, íntimas de temática explorada, tão exigente esta em expressão dramática quanto incompatível com maneirismos vazios”. O Toscano referia-se à consciente recusa de prosseguir aquela maneira a que Artur Paredes chamara de “gatas miadeiras”, que vinha dos anos vinte e se decalcava e ainda hoje há quem decalque.
Quando aparece a fabulosa gravação a que a Philips chamara de Coimbra Quintet — uma coisa que nunca existiu —, com o António Portugal e o Jorge Godinho na guitarra, o Manuel Pepe e o Levi Baptista na viola, e a voz única de Luiz Goes, primeira gravação profissional da música de Coimbra, nada voltou a ser igual.
Disco de culto, qualquer que seja o formato, chegou a todas as partes do mundo, pela força da interpretação no canto mas também pela nova sonoridade das guitarras e violas, e justo será referenciar aqui o trabalho de António Portugal.
Correm anos e áfricas até ao encontro com João Bagão, para em acordes ágeis e articulações cromáticas enfatizar versos de Leonel Neves, Bettencourt, Torga ou Alegre, também a sua pessoal poética, redimensionando a sonoridade coimbrã em substância que só aos eleitos acontece.
Oiça-se essa intemporal Cantiga para quem sonha, do Leonel Neves, a que música de João Gomes confere notícias de porvir.
Canta, canta como uma ave ou um rio.
Dá o teu braço aos que querem sonhar.
Quem trouxer mãos livres ou um assobio
Nem é preciso que saiba cantar.
Mãos livres, as mãos livres do Luiz, sempre a rejeitar servilismos ideológicos mas comprometido, comprometido sem reservas e corajosamente:
— Contra nós há muitas bombas, / ódios, mísseis, ditadores,
solidário com os oprimidos e arauto de outra maneira de ser livre,
meu irmão morreu na guerra (…) meu irmão morreu de fome (…) meu irmão morreu de sede (…) vou chorar,
mas se meu irmão morreu de amor (…) se era livre, louco e moço vou cantar.
Livre com pássaros na garganta e de mãos limpas, cidadão exemplar.
Interventor na recusa de grilhetas e sem cartilhas, estranhamente ou talvez não, não consta das antologias do chamado Canto Livre. Ele que nos anos 60 cantou aquelas e outras palavras em gritos de revolta contida, falou do drama da emigração, dos que voltam de mãos vazias, aves feridas em desesperada busca do ninho e dois palmos de terra, mãe e berço em fusional encontro de regresso e morte, sem nada, como tantos dessa aventura maior em chão estranho, de um Portugal em hemorragia de sangue novo, tempo de fome e de desesperança onde não cabe a palavra perdão…
Pobre de quem regressa
Ao jardim e acha um deserto.
Já perdeu o que está longe,
Já não tem o que está perto.
Canto Livre, livre de uma liberdade criadora tangível aos limites da redescoberta do amor e do respeito pelo outro, dimensionalidade ôntica que recusa enfeudamentos espúrios, mas que a um tempo requalifica aqueles a quem a vida pouco deu irmanando-se em doação carnal a todo o homem que cumpre o ciclo de insondável, de irremediável solidão.
O que dá em gestos desmedidos o nada que foi seu, o que nunca a mitos se vendeu, o que, na dura solidão, permanece cativo do chão sagrado, seja homem de leme ou de arado. Mãos firmes a navegar destinos ou a revolver a terra, homem criador de distâncias ou semeador do pão, homem só, para um mundo no qual não terão futuro vendilhões da água das cascatas, tempo e lugar sem nenhuma cama com amantes clandestinos. Canto livre, metaforização de um sentido superior e íntimo de sagrar a Liberdade, em abertas ou subliminares mensagens.
Despertemos os sentidos para a Cantiga de Vagabundo e encontraremos a cristalinidade lírica de uma música coimbrã outra, seja na sonoridade do verbo, seja na textura melódica, ora na tessitura do canto, ora no conforto das guitarras, encontro sublime de palavras e acordes, que as subtilidades da voz de Luiz Goes entretecem de sensibilidade libertadora e de expressividade dramática, exaltante esteticidade que nos assalta e nos comove.
Se queres saber, amor, porque te quero
pergunta a um velho marinheiro
se uma aventura em cada cais
lhe faz perder o rumo verdadeiro.
Pergunta ao mar, eternamente azul,
a razão de ser da sua cor,
às vezes verde, às vezes cinza…
Mas é o céu o seu primeiro amor.
Se queres saber, amor, porque te quero,
pergunta a um velho vagabundo
se tanta estrada, tanta mulher,
matou de vez o seu primeiro mundo.
Pergunta à flor, que a noite emurcheceu
se quer abrir em nova madrugada
se o quase nada que a vida lhe deu
a faz morrer na minha mão fechada.
Novo é o tempo que faz ecoar nos canais do ser as vibrações etéreas das guitarras do Bagão, do Andias ou do Aires de Aguilar, o engastar dos harpejos e bordões das violas do Fernando Neto, do João Gomes, do António Toscano ou do Durval Moreirinhas, construções em que os instrumentos protagonizam, contracenam, replicam e se complexificam com, em companhia da voz do trovador.
Mas isto não se explica por palavras. Ainda que aqui ficasse todo o tempo que não tenho, mesmo que descobrisse em mim genialidades para pôr em discurso linguístico o que só pode ser filtrado pela fina rede da mais refinada capacidade de sentir, nada se poderia substituir à grandiosidade de toda a obra de Luiz Goes, quando canta os seus ou alheios versos, sempre de grandes poetas, quando magistralmente interpreta a sua música ou de outros compositores. O que se ouve, se soubermos ouvir, vem da raiz do tempo e é sempre um tempo novo.
O que fica de ouvi-lo é sempre o indizível, e essa indizibilidade permanece em nós na intemporalidade do génio criativo, canção nova que vive sempre além do momento e que faz de Coimbra uma heterotopia, a única que vale a pena projectar e guardar na memória, lugar hipostasiado na alma e na voz do trovador do tempo novo, tempo renovado em cada aventura, incessante procura da possível perfeição, plasmado do que de melhor existe na voz e alma do povo, seu mestre nunca recusado.
Sem estultos elitismos mas em si mesmo aristocrata pela diferença com que olha e se olha na mais elevada capacidade de sentir e ao sentir criar, também pela maneira de ser e estar, onde a solidariedade não se proclama mas se vive, essas identidade e mesmidade intensificam-se na recusa do triste e morto passado na canção coimbrã, reconfortando-nos nessa música-lareira, como sempre digo, música-lareira que nos aquece a alma, Luiz Goes, porque
Ao ouvir a voz do povo
é que se aprende a verdade;
quem ama nasce de novo
e vive sem ter idade.
Levar a vida a lembrar
um triste passado morto,
é como querer navegar
num mar sem água nem porto.
Ao ouvir a voz do povo
é que a verdade aparece;
amor novo é sangue novo,
até na velhice aquece.
Levar a vida a lembrar
um triste e morto passado,
é como querer habitar
um lar sem chão nem telhado.
Deixo-vos o pretexto, apetecido fruto maduro onde a Mulher não é mais angelical distância mas companheira, livre e igual, carne e desejo, expressão de beleza que se rigoriza nas suaves modelações da voz do trovador, graves inadjectiváveis que ecoam em nós e nos transformam, nos redimem, nos curam, porque ali descobrimos a Beleza, a Arte, mudanças que tocam as alturas e nos comovem, portentosa renovação do canto em confessional vivência do amor em visita, intensamente branca, voando o tempo indizivelmente breve da descoberta
Sonhei-te, quando chegaste
Como rosa desprendida
Da tirania da haste
Por te querer a meu jeito
Perdi-te na treva densa
Que trago dentro do peito
Amei-te no tempo breve
Que dura o voo da ave
Por sobre um campo de neve.
Em tempo breve também eu ousei falar-vos desse notável trovador do novo tempo, a partir de quem a canção coimbrã se universalizou. “ A sua clareza interpretativa, expressividade dramática e sensibilidade musical — conferimos com Jorge Cravo —aliadas a uma inquietante criatividade, a um grande rigor crítico e a uma forte consciência estetizante face àquilo que até hoje gravou, são algumas das características de uma escola de canto e de interpretação, do melhor que alguma vez a Canção de Coimbra gerou — a Escola Goesiana!!
Por tudo isto, Luiz Goes é — e cremos que sempre será— o protótipo desta Canção!”
Fixemo-nos em Canções Para Quem Vier, que recolhe tudo o que Goes gravou entre 1952 e 2002, meio século de inquietações e de uma funda consciência do acto criador, e perceberemos a grandeza da sua obra, se cegos não formos de ler, se ‘cegos’ não formos de ouvir, se não tivermos a alma empedernida.
Esse outro apetecido objecto de culto, expressão de funda portugalidade, pelo qual eu tanto reclamei em todas as minhas muitas intervenções sobre a música coimbrã, sobrepõe-se a quanto possamos dizer, a quanto se tem dito, é um monumento de consagração aos afectos, é o génio e a arte reificados, definitivamente além da própria memória. Canção Para Quem Vier, superação de todos os momentos, onde se demora a intemporalidade…
Quem vier,
que traga uma palavra amiga,
semente de esperança, na seara da vida.
Quem vier,
que traga uma canção de amor,
tão pura e sentida que a cantem de cor.
Quem vier,
quer creia neste mundo ou não
aqui sonhe o mundo que os filhos terão.
Com Amália e Carlos Paredes, Luiz Goes representa a mais bela e alta maneira de ser português, que é ser de todo o lado e de nenhum. Três grandes e geniais artistas. Com eles podemos fundamentar a patrimonial mundialidade de uma construção musical, intensamente portuguesa, com marcadas diferenças de expressão é certo, porém tangíveis no rigor e no sentir, na anatomia e sonoridade da genial guitarra, na singularidade de vozes que deuses escolheram para falar aos homens e os tornarem melhores.
Fico à espera que Coimbra, sem mal de inveja ou pequenez provinciana, perceba e estude em dimensão universitária a sua obra, mas acima de tudo consagre para todo o sempre, em lugar digno e material durável, o nome e a imagem de Luiz Goes, o maior de quantos criaram, renovaram e corporificaram a música coimbrã.
Trago-vos um breve pré-texto. Pretexto para a resignificação de alguns sintagmas que fixam a música coimbrã. Vínculo subtil em que a cidade não é um lugar mas um estilo de vida. LUIZ GOES. A criatividade desvincula-se do passado morto, reinventa sonoridades e senta no regaço poesia de poetas.
Tudo começou em transgressão. A década de cinquenta do século passado mal espreguiçava os olhos e adolescíamos na esperança de um mundo novo. Foi em festa de finalistas no Liceu D. João III. O António Portugal aproveitava as lições do Flávio Rodrigues e já se atrevia ao Fado em Dó, o Manuel Mora ajeitava na guitarra aplicado diletantismo, o Costa Braz distribuía na viola acordes de rigor e austeridade, havia ainda a viola do António Serrão. Estava eu, que já passara por uma serenata na Sé Velha, e o Luiz Goes, que pela primeira vez em público arriscava o canto. Era o tempo de muitas proscrições. Esfrangalhara-se o coração da velha Alta e moviam-se na sombra ferezas censórias e perseguições ao livre pensamento. A mesquinhez praxística e freudianas incapacidades lançaram anátema sobre a Feiticeira do Ângelo Araújo, que Alberto Ribeiro cantara no Capas Negras, de Armando Miranda.
Tamanha era a tacanhez —não há universidade que nos tire da Idade da Pedra Lascada, como diz Torga —, tanta a ignara primitividade de uns tantos, que confundiam personagem com intérprete, que certa noite correram em arruído à Casa da Ponte, onde constara estar a jantar Alberto Ribeiro. Veredicto: ser rapado… porque no filme trajara capa e batina. Gorara-se a sentença praxista, porque avisado, o cantor partiu para Lisboa, mas ficara a mácula.
Certo é que ninguém mais se atrevera a cantar aquele fado do Ângelo a partir da obscurantista década de quarenta, obscurantismo a que resistiam alguns nas veredas do MUD e nas “pichagens” clandestinas do não se paga, a coberto da noite e do vesgo olhar da PVIDE, que assim foi crismada a sinistra polícia política PVDE, onde se inscrevia claramente o V da persecutória vigilância.
Naquela noite de que vinha falando, creio, em 1951, a fechar a festa liceal, o jovem Goes, revelando, para além da coragem, marcante personalidade, cantou a Feiticeira num timbre novo e bem definida maneira outra de interpretar.
Nascia ali o Trovador do Tempo Novo, que bebera com o povo de Coimbra diferente maneira de ser solidário, inovador aurático como aurática se havia de revelar a sua poesia e a sua música. Como escrevi há tempos para a edição integral da EMI, porque nascemos ambos em Coimbra, “passou cedo em nós a asa mansa da sua música, mas a ele tocara-o a sagração dos deuses e uma forma rara de transmitir o sentido. Primeiro revelara-se o grande intérprete, logo logo o compositor, também o poeta. Cedo aquele que transgride pela via do intimismo em “Coimbra de Ontem e de Hoje”.
O Ontem de alguns fados mudara o rosto na singularidade da sua voz, perdera a doença de alma e resignificava-se em pujantes interpretações. Que outro não é o seu Fado Hilário, reconduzido a uma dramaticidade que transforma a doença finissecular oitocentista em modelações que recusam tossicantes apelos à compaixão feminina, mas antes robusta efabulação de morte viril na matriz coimbrã, sem concessões… Quanta novidade presente nas suas primeiras gravações… O que ouvíramos, ouve-se então de uma maneira assumidamente renovadora. Muda-se a estrutura poética, quebra-se o cânone das duas quadras ou revigora-se em novas tonalidades, bate-se à porta de outras rimas, outros ritmos, a simplicidade é então uma geometria de rigor e exactidão interpretativa.
O Hoje, sim, era marcada ruptura com o tom lamechas de décadas de noites enluaradas e saudades-ais, renascimento retomado sobretudo da lição de Bettencourt, colhidos na voz do povo cantares que se urbanizam sem trair origens, como se regista na Toada Beirã. Na beira do rio Amélia contemplada em frio e medo, chamada com indizível ternura à companhia do trovador em partilha de solidão, ou Serra D’Arga de adeus a um amor nascente, também Penedo da Saudade de segredados enredos.
Tudo tonificado com uma sensibilidade que suporta o ritmo com divisões exactas e palavras rigorosamente marcadas, canto de timbre abaritonado de rara extensão.
O António Toscano já há muito pôs a claro os significantes e os significados, afirmando que ele, Luiz Goes, foi o protagonista de “ interpretações (…) enriquecidas por surpreendentes e inigualáveis modelações, íntimas de temática explorada, tão exigente esta em expressão dramática quanto incompatível com maneirismos vazios”. O Toscano referia-se à consciente recusa de prosseguir aquela maneira a que Artur Paredes chamara de “gatas miadeiras”, que vinha dos anos vinte e se decalcava e ainda hoje há quem decalque.
Quando aparece a fabulosa gravação a que a Philips chamara de Coimbra Quintet — uma coisa que nunca existiu —, com o António Portugal e o Jorge Godinho na guitarra, o Manuel Pepe e o Levi Baptista na viola, e a voz única de Luiz Goes, primeira gravação profissional da música de Coimbra, nada voltou a ser igual.
Disco de culto, qualquer que seja o formato, chegou a todas as partes do mundo, pela força da interpretação no canto mas também pela nova sonoridade das guitarras e violas, e justo será referenciar aqui o trabalho de António Portugal.
Correm anos e áfricas até ao encontro com João Bagão, para em acordes ágeis e articulações cromáticas enfatizar versos de Leonel Neves, Bettencourt, Torga ou Alegre, também a sua pessoal poética, redimensionando a sonoridade coimbrã em substância que só aos eleitos acontece.
Oiça-se essa intemporal Cantiga para quem sonha, do Leonel Neves, a que música de João Gomes confere notícias de porvir.
Canta, canta como uma ave ou um rio.
Dá o teu braço aos que querem sonhar.
Quem trouxer mãos livres ou um assobio
Nem é preciso que saiba cantar.
Mãos livres, as mãos livres do Luiz, sempre a rejeitar servilismos ideológicos mas comprometido, comprometido sem reservas e corajosamente:
— Contra nós há muitas bombas, / ódios, mísseis, ditadores,
solidário com os oprimidos e arauto de outra maneira de ser livre,
meu irmão morreu na guerra (…) meu irmão morreu de fome (…) meu irmão morreu de sede (…) vou chorar,
mas se meu irmão morreu de amor (…) se era livre, louco e moço vou cantar.
Livre com pássaros na garganta e de mãos limpas, cidadão exemplar.
Interventor na recusa de grilhetas e sem cartilhas, estranhamente ou talvez não, não consta das antologias do chamado Canto Livre. Ele que nos anos 60 cantou aquelas e outras palavras em gritos de revolta contida, falou do drama da emigração, dos que voltam de mãos vazias, aves feridas em desesperada busca do ninho e dois palmos de terra, mãe e berço em fusional encontro de regresso e morte, sem nada, como tantos dessa aventura maior em chão estranho, de um Portugal em hemorragia de sangue novo, tempo de fome e de desesperança onde não cabe a palavra perdão…
Pobre de quem regressa
Ao jardim e acha um deserto.
Já perdeu o que está longe,
Já não tem o que está perto.
Canto Livre, livre de uma liberdade criadora tangível aos limites da redescoberta do amor e do respeito pelo outro, dimensionalidade ôntica que recusa enfeudamentos espúrios, mas que a um tempo requalifica aqueles a quem a vida pouco deu irmanando-se em doação carnal a todo o homem que cumpre o ciclo de insondável, de irremediável solidão.
O que dá em gestos desmedidos o nada que foi seu, o que nunca a mitos se vendeu, o que, na dura solidão, permanece cativo do chão sagrado, seja homem de leme ou de arado. Mãos firmes a navegar destinos ou a revolver a terra, homem criador de distâncias ou semeador do pão, homem só, para um mundo no qual não terão futuro vendilhões da água das cascatas, tempo e lugar sem nenhuma cama com amantes clandestinos. Canto livre, metaforização de um sentido superior e íntimo de sagrar a Liberdade, em abertas ou subliminares mensagens.
Despertemos os sentidos para a Cantiga de Vagabundo e encontraremos a cristalinidade lírica de uma música coimbrã outra, seja na sonoridade do verbo, seja na textura melódica, ora na tessitura do canto, ora no conforto das guitarras, encontro sublime de palavras e acordes, que as subtilidades da voz de Luiz Goes entretecem de sensibilidade libertadora e de expressividade dramática, exaltante esteticidade que nos assalta e nos comove.
Se queres saber, amor, porque te quero
pergunta a um velho marinheiro
se uma aventura em cada cais
lhe faz perder o rumo verdadeiro.
Pergunta ao mar, eternamente azul,
a razão de ser da sua cor,
às vezes verde, às vezes cinza…
Mas é o céu o seu primeiro amor.
Se queres saber, amor, porque te quero,
pergunta a um velho vagabundo
se tanta estrada, tanta mulher,
matou de vez o seu primeiro mundo.
Pergunta à flor, que a noite emurcheceu
se quer abrir em nova madrugada
se o quase nada que a vida lhe deu
a faz morrer na minha mão fechada.
Novo é o tempo que faz ecoar nos canais do ser as vibrações etéreas das guitarras do Bagão, do Andias ou do Aires de Aguilar, o engastar dos harpejos e bordões das violas do Fernando Neto, do João Gomes, do António Toscano ou do Durval Moreirinhas, construções em que os instrumentos protagonizam, contracenam, replicam e se complexificam com, em companhia da voz do trovador.
Mas isto não se explica por palavras. Ainda que aqui ficasse todo o tempo que não tenho, mesmo que descobrisse em mim genialidades para pôr em discurso linguístico o que só pode ser filtrado pela fina rede da mais refinada capacidade de sentir, nada se poderia substituir à grandiosidade de toda a obra de Luiz Goes, quando canta os seus ou alheios versos, sempre de grandes poetas, quando magistralmente interpreta a sua música ou de outros compositores. O que se ouve, se soubermos ouvir, vem da raiz do tempo e é sempre um tempo novo.
O que fica de ouvi-lo é sempre o indizível, e essa indizibilidade permanece em nós na intemporalidade do génio criativo, canção nova que vive sempre além do momento e que faz de Coimbra uma heterotopia, a única que vale a pena projectar e guardar na memória, lugar hipostasiado na alma e na voz do trovador do tempo novo, tempo renovado em cada aventura, incessante procura da possível perfeição, plasmado do que de melhor existe na voz e alma do povo, seu mestre nunca recusado.
Sem estultos elitismos mas em si mesmo aristocrata pela diferença com que olha e se olha na mais elevada capacidade de sentir e ao sentir criar, também pela maneira de ser e estar, onde a solidariedade não se proclama mas se vive, essas identidade e mesmidade intensificam-se na recusa do triste e morto passado na canção coimbrã, reconfortando-nos nessa música-lareira, como sempre digo, música-lareira que nos aquece a alma, Luiz Goes, porque
Ao ouvir a voz do povo
é que se aprende a verdade;
quem ama nasce de novo
e vive sem ter idade.
Levar a vida a lembrar
um triste passado morto,
é como querer navegar
num mar sem água nem porto.
Ao ouvir a voz do povo
é que a verdade aparece;
amor novo é sangue novo,
até na velhice aquece.
Levar a vida a lembrar
um triste e morto passado,
é como querer habitar
um lar sem chão nem telhado.
Deixo-vos o pretexto, apetecido fruto maduro onde a Mulher não é mais angelical distância mas companheira, livre e igual, carne e desejo, expressão de beleza que se rigoriza nas suaves modelações da voz do trovador, graves inadjectiváveis que ecoam em nós e nos transformam, nos redimem, nos curam, porque ali descobrimos a Beleza, a Arte, mudanças que tocam as alturas e nos comovem, portentosa renovação do canto em confessional vivência do amor em visita, intensamente branca, voando o tempo indizivelmente breve da descoberta
Sonhei-te, quando chegaste
Como rosa desprendida
Da tirania da haste
Por te querer a meu jeito
Perdi-te na treva densa
Que trago dentro do peito
Amei-te no tempo breve
Que dura o voo da ave
Por sobre um campo de neve.
Em tempo breve também eu ousei falar-vos desse notável trovador do novo tempo, a partir de quem a canção coimbrã se universalizou. “ A sua clareza interpretativa, expressividade dramática e sensibilidade musical — conferimos com Jorge Cravo —aliadas a uma inquietante criatividade, a um grande rigor crítico e a uma forte consciência estetizante face àquilo que até hoje gravou, são algumas das características de uma escola de canto e de interpretação, do melhor que alguma vez a Canção de Coimbra gerou — a Escola Goesiana!!
Por tudo isto, Luiz Goes é — e cremos que sempre será— o protótipo desta Canção!”
Fixemo-nos em Canções Para Quem Vier, que recolhe tudo o que Goes gravou entre 1952 e 2002, meio século de inquietações e de uma funda consciência do acto criador, e perceberemos a grandeza da sua obra, se cegos não formos de ler, se ‘cegos’ não formos de ouvir, se não tivermos a alma empedernida.
Esse outro apetecido objecto de culto, expressão de funda portugalidade, pelo qual eu tanto reclamei em todas as minhas muitas intervenções sobre a música coimbrã, sobrepõe-se a quanto possamos dizer, a quanto se tem dito, é um monumento de consagração aos afectos, é o génio e a arte reificados, definitivamente além da própria memória. Canção Para Quem Vier, superação de todos os momentos, onde se demora a intemporalidade…
Quem vier,
que traga uma palavra amiga,
semente de esperança, na seara da vida.
Quem vier,
que traga uma canção de amor,
tão pura e sentida que a cantem de cor.
Quem vier,
quer creia neste mundo ou não
aqui sonhe o mundo que os filhos terão.
Com Amália e Carlos Paredes, Luiz Goes representa a mais bela e alta maneira de ser português, que é ser de todo o lado e de nenhum. Três grandes e geniais artistas. Com eles podemos fundamentar a patrimonial mundialidade de uma construção musical, intensamente portuguesa, com marcadas diferenças de expressão é certo, porém tangíveis no rigor e no sentir, na anatomia e sonoridade da genial guitarra, na singularidade de vozes que deuses escolheram para falar aos homens e os tornarem melhores.
Fico à espera que Coimbra, sem mal de inveja ou pequenez provinciana, perceba e estude em dimensão universitária a sua obra, mas acima de tudo consagre para todo o sempre, em lugar digno e material durável, o nome e a imagem de Luiz Goes, o maior de quantos criaram, renovaram e corporificaram a música coimbrã.
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